Por Ronaldo Faria
Escrevo sobre este CD que você não encontrará em lugar nenhum onde ouvir ou comprar para relembrar um passado em que Campinas tinha vida cultural noturna. Na verdade, quanto ao disco, nem o astro dele tem um original. Ele ganhou uma cópia de mim. É o É a Lama Mess!, de Mário Lúcio & Los Lúcios – Pablo e Escobar, sua big banda principal. No endereço https://www.youtube.com/channel/UCiQGfpLJlRglM5ifm_gckHg você verá um pouco desse autodenominado “maior e melhor cantor pop-pornô-brega do universo”. Mas, se procurar pelo nome na internet terá acesso a outro artista, um homônimo cantor, compositor, escritor e pensador de Cabo Verde, na África. Mas o Rebelde Apaixonado tratado aqui ainda é um punhado de cacos na internet que você terá de juntar para ter noção exata daquilo que ele foi.
Mas, então, por que falar de um artista de um único CD que nem o próprio tem? Talvez porque ele faça parte do meu acervo particular e, mesmo perdido entre dezenas de milhares de discos, tenha um espaço no coração e no tempo. Senão, porque este blog seja dedicado à música e até aquilo que não pode ser registrado como música maior seja maior do que a razão de sê-lo.
É a Lama Mess!
é, como eu disse numa reportagem maior para o site Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/),
um verdadeiro estupro sonoro, entre composições
próprias de Los Lúcios e amigos e um hit da época. Todas inclusas no melhor
brega musical que Campinas já viveu na década de 1980. Mas, como já escrevi, quem,
em sã consciência da maior embriaguez ou do cigarro do capeta, não foi ao delírio a ouvir, por exemplo, Feiticeira, sucesso de Carlos Alexandre,
com direitos comprados por trezentos reais para ser reproduzida em mil CDs e
cantada de forma tão desafinada nos mesmos? Quem não sonhou em vestir terno de
gosto duvidoso e malha cacharréu e subir no palco para pagar um mico que virou
sucesso na terrinha?
Mário Lúcio é um
fenômeno do acaso musical, que interrompeu há vários anos a carreira para a dor
de suas fãs, mesmo que a maioria delas já esteja às portas da menopausa ou
deixado essa há tempos. O nome no RG de Mário Lúcio é Marcelo José do Canto.
Ele era um então estudante de Jornalismo e garçom no bairro boêmio de Campinas
(Cambuí) no tempo em que lá existia música ao vivo para todos os bares e
gostos. Foi num desses bares, o Ilustrada, na despedida da vida de garçom para
assumir a vaga de repórter da editoria de Esportes no extinto e centenário Diário do Povo, que surgiu o mito das
máriolucetes ou lucinetes.
“O show do
Ilustrada eu acho que foi no dia 18 de dezembro de 87. Eu não lembro direito.
Na época eu morava com Pablo e Escobar, também conhecidos como Márcio Denni
Pontes, um baterista conceituado nacionalmente, e Ricardo Botter Maio, um
tecladista também conceituado, até internacionalmente. Eu morava numa república
com eles. E pensando essas baboseiras todas chego em casa e eles estavam
ensaiando porque iam fazer um show com um grupo que o Ricardo tinha na época.
Daí eu entrei e falei: ‘Gente, eu vou fazer um show de despedida no Ilustrada.
Vocês topam fazer comigo?’ Mas eles disseram: ‘Pô, mas você nem canta’. Daí eu
disse para eles ficarem frios que eu ia armar e inventar tudo direitinho. Só
queria saber se eles estavam comigo. Eles aceitaram e daí matutei, matutei,
matutei e decidi fazer um show brega. Não era ainda Mário Lúcio, não sabia nome
e nem nada. Me remeteu também essa criação à minha irmã mais velha, Maria
Vitória, que escutava coisas bregas como Ângelo Máximo e Rádio Tupi. Daí decidi: vou cantar Ângelo Máximo, Carlos Alexandre,
Evaldo Braga e Wanderlei Cardoso.”
“De repente, começou a pintar tudo na cabeça e iria chamar o meu personagem de Adriano Roberto, que é o nome do Adriano Rosa, fotógrafo e amigo. Mas aí ele falou: ‘Vai por o meu nome como cantor brega?’ Daí teve a Vera Longuini, outra amiga, que estava com uma caderneta de chamada da faculdade que eu peguei e comecei a olhar. Olhei para antes do Marcelo, que era o meu nome, e vi que tinha alguém que se chamava Lúcio, mas não era da minha sala. E depois vi Mário. E ficou Mário Lúcio & Los Lúcios. Depois expliquei tudo para o Denni e o Ricardo. E eles gostaram da ideia. Arranjamos 20 músicas e já tinha tudo – repertório e nome. Só faltava eu aprender a cantar as músicas. Então fiz uma pastinha, copiei as letras e formatei o show.”
“Depois do show,
deu um prazo de 15 dias e começaram os convites de vários lugares para eu me
apresentar. E olha que todos os bares do circuito campineiro tinham música ao
vivo. Então eu decidi cobrar um cachê um pouquinho alto para a realidade da
noite campineira, porque eu sabia quanto era cobrado na noite e os músicos
ganhavam. E o mais incrível: o pessoal começou a pagar. A gente estranhava
porque o Denni e o Ricardo faziam shows na noite. O Denni era do Soma, um dos
melhores grupos que eu já ouvi em Campinas, junto com A Bandida. O Ricardo
fazia shows. A família dele é de músicos, com gente até na Suíça e nos Estados
Unidos. Mas aí começou a rolar a grana e cada vez mais nos apresentávamos.
Nisso entra 1988 e a moçada que viu o show marioluciano aqui já indicava para festa
brega na sua cidade. De repente, a gente estava fazendo show fora, dentro das
possibilidades, porque eu já trabalhava no Diário,
até sábado e domingo. A gente pegava essa Rodovia Anhanguera e fazia show para
todo o lado. E eu na correria de conciliar a minha vida como jornalista
esportivo e o personagem que começou a criar corpo.”
Se pararmos para pensar, porém, no inusitado e naquilo que é divertido, no que rompe as barreiras do normal e libera sonhos e grilhões, Mário Lúcio foi um torpedo a destruir a métrica e a rítmica. Num momento em que o Brasil mal acabara de sair da ditadura militar, onde os jovens ainda se embrenhavam numa estrada meio sem volta, talvez ele tenha sido o reflexo onde o anormal de monstros e monstrinhas, como ele chama os fãs, animais que viviam presos em cada um e soltos na noite, se libertavam junto ao cantor performático e carismático. “Em 2003 foi o último show que nós fizemos. Em 2004 íamos fazer um na Estação Cultura, mas no dia tive um problema de falecimento na família e não fiz. E nesse dia foi muita gente ver e até levaram faixa e tudo. Mas não teve.”
Passado tanto
tempo, restou, para quem se aventurou a comprar É a Lama Mess!, gravado e mixado em 1996, ter em mãos um exemplar
da MPB esculachada, divertida e despretensiosa. Ao todo são 13 faixas. Cada uma
com a certeza de ouvir algo entre o riso e a tosquice da boa. Tem desde Feiticeira até composições dos Los
Lúcios. Do Mário mesmo, nada, além da voz desafinada e engraçada. Há desde o
bolero El Tesón Del Cone Sul (um épico)
a Douglas and Juraci, passando por Blackout no Rodízio, Discarada, Ébria Maria e Pastor Alemão. Junte Lover Man, O Penúltimo Rebelde, Hole of Lock
(O Buraco na Fechadura), Foguete Indomável, Perfume Raro e Agora, o Último Rebelde. Ponha tudo num
liquidificador sensorial e terá um misto de brega e besteirol. A "arte" de Mário
Lúcio se encaixava entre Falcão (o Mário Lúcio que deu certo), Premeditando o
Breque e Língua de Trapo. Mas, como diria o Chacrinha, tudo foi um programa que
acaba quando termina. Quem viu, viu. Quem não viu, nunca mais verá. Pois, como cantava
Cazuza, o tempo não para. Só que, para Mário Lúcio e tristeza dos fãs, ele parou...