Por Ronaldo Faria
Tom em tons de amarelo que se perdem
pelo céu azul e invadem o escuro da redação em caixote branco. Tom de um Jobim
carioca que se esgueira em cada nota acústica e reverbera no silêncio calado de
ideias em profusão meteórica. No meio de tudo, a metamorfose em que nos
transformamos de criadores em simples criaturas. Pequenas máquinas a pararem no
tempo que corre lá fora num eufemismo lúdico. A poesia fica estática e fora de
questão. Nas entrelinhas, saudade da vida, da areia quente, das ondas, do mais
grato e incrédulo coração.
Do tempo de subúrbio entre as ruas do
Méier e a métrica divisória de bairros entre as zonas Norte e Sul. Entre o cinza e o azul. Do tempo de
ladeiras, eiras e beiras a beirarem os berros dados na noite, açoites de um
corpo no outro, línguas entrecortadas de lábios, afagos ofegantes num Opala que
corre no escuro de avenidas e vidas retintas de fim.
Tempo do Tom, de cubas libres e gins
com tônica. E Cuba não era tão livre e nem o gim se fazia a tônica da cena.
Para ambos, cacofonia de palavras repetidas e ditas, ceifadas de separações e
dores latentes, odores de creolina no ar e telefonemas inauditos a tocar. Tudo
com verso ou nota ao piano. Como gelo que derrete no copo e, translúcido, viaja
ao cérebro para a brincadeira de mais Luizas e Marias, Gabrielas e Anas, curvas
em carne e portos de pele. Lá fora, a aurora de uma Primavera se desfaz
devagar. No céu, o Sol se prepara para vagar entre a escuridão e o desejo de
ser apenas ensejo numa cama qualquer.
Afora o mundo, o aforismo repetitivo se
deixa de luz e negror. A eterna transição entre o olhar disperso e a pressa da
noite chegar. Num canto qualquer, homem e mulher se preparam para amar. Vestem-se
de nudez e dão ao outro corpo algo muito além da cópula final. Haverá festa de
copos, suores a escorrerem numa só gota, canções a saírem de um canto qualquer
como canto único e uníssono a embalar a dança de dois em um.
Daqui, a ouvir Tom entoar versos e
notas, anoto apenas que lá fora há vida a seguir sua transitória existência que
roda no eixo mágico. Aqui, a criação que a nada leva e remói saudades e sons,
gatos pardos numa lagoa de São Sebastião do Rio de Janeiro. E o tempo, onde há
vida a fluir, fora deste caixote, passa único e igual, multiforme e desigual,
passageiro e causal. E a dor no piano esbarra em cada tecla a esperar o tom
derradeiro chegar. Lá, muito longe, ainda há o cheiro, o gosto e até a quentura de
um mar.