sábado, 17 de agosto de 2024

Descobrindo Mariene de Castro

 Por Ronaldo Faria

 


Já dizia o poeta que aroeira que bate em Pedro bate em qualquer um, de presto. E se não disse, certamente gostaria de tê-lo feito, sobre Pedro, o bíblico santo, ou no resto. Na rua, nua de gente e ausente de qualquer amor, um pé de amora mora solitário defronte da esquina que leva ao mar e sua moradia, um oceano que junta e afasta continentes e traz brisa boa e maresia.
Nesse ínterim, itinerante do mundo, estava Deocleciano. Disseram que seu pai assim o quis para juntar o nome de seu avó – Deoclécio – ao oceano que nunca vira. Homem de poucas patentes na guerra da vida e nos exércitos que viajavam ofegantes pelo destino, ia tropicando entre os trópicos que as pernas bambas criavam a cada nova passada. Se norte ou sul, pouco importava.
Para Deocleciano, a perda de ser era diuturna lição desde o amanhecer. Dormia com os erros do dia, tinha pesadelos mil, com enredos loucos e hollywoodianos. De vez em quando, surgia uma linda dama com seu entregue ânus. Noutras, apenas uma fuga eterna dessa que se mostra em toda a terra. Mas se isso era viver, ele estava no enredo e no descalabro que, calados, eram caiados de sofreguidão.
Ser efêmero, de destino negado e naufragado há muito, fortuito caminhante nas trilhas de falácias e poucas acácias, era um querubim. Senão, demônio que alguns chamariam de Sinfrônio – o dono do som sinfônico que traz com o mar. Mas, para quê questionar? O melhor era esperar num parapeito qualquer a lua chegar. Senhor de si, sem saber o fim que virá, brincava de querer rimar.
-- Deocleciano, vai ficar aí, deitado embriagado, na porta do bar que já está fechado?
Ele sequer ouviu a frase de Machado, seu parceiro. Dormiu a sorrir como se fosse um preto na demanda do reino de qualquer gueto livre e guerreiro. Estaria no Brasil ou em Luanda? O som que lhe chega é dos atabaques ou de uma banda? Nesse canto há realejo? O que o pássaro preso lhe daria de destino? Na casa perto, Maria balança a cabeça de pena. Essa nunca descobrirá a sentença.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ele e ela, no forró

Por Ronaldo Faria


Ele e ela, Marivaldo e Lisbela, dançam agarrados e atarracados no pouco salão. Um xote descompassado se arrasta no chão que recebe as notas do sanfoneiro e no batuque do triângulo e zabumba. Longe da terra da rumba, parecem dois dançarinos de qualquer tragédia grega a se rir da flor que cai do pé de tangerina.
Ele e ela, dois a brincarem de doar o dízimo do amor, entregue a qualquer maledicente pastor, viviam seus passos a se cruzarem e revirarem pernas e desejos. No ensejo que tem mote até na onça mais ferina, subiam e desciam no céu que vive diante da retina. No rosto dele, no rosto dela, metamorfose de uma incoerente quimera.
Ele e ela, Marivaldo e Lisbela, mistura de mar e Oswaldo, Elisabeth e coisa bela, nem se lembravam de que a vida é só passagem e logo ali, noutra paragem, outra paisagem far-se-á. Com certeza, o forró não existirá, o trio que toca agora será apenas tempo frio e a melodia, ao contrário de uma orgia, pedirá fim e muita agonia.
Ele e ela, a verem jorrar água de moringa nos corpos suados, aguados nas ondas de um amor distante, equidistante ao traçado planejado do destino, vão ao desatino na rima de um chororô. Mas agora, nessa hora, o que conta é rodopiar e se atirar no mundo da ilusão. Se já são, o serão. Corpos colados, agarrados e atarracados no salão. O que virá depois? Nesse momento, unguento do amor, pouco importa o que a porta da casa de forró lhes dará. Outra vida, decerto, se tudo der certo, mesmo nessa vida finda um dia virá.
Do palco o sanfoneiro pede uma pausa para fazer xixi...
 
(Aos grupos de forró)


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Maestro da Rua

Por Edmilson Siqueira

 

Em 2001, Zezé e eu realizamos nossa primeira viagem internacional juntos. Ela já conhecia Londres, onde havia passado um ano fazendo um curso de inglês bem antes de me conhecer. Em ternos "internacionais" eu tinha ido uma vez, de ônibus, até o Paraguai, naquela cidade da fronteira para comprar muamba... bem, não pode ser chamada de viagem internacional...
Mas em 2001, tomamos coragem, compramos as passagens, reservamos hotéis, compramos alguns travellers cheques (alguém aí se lembra do que era isso?) e partimos para a Europa. Roma, Paris e Londres (lira, franco e libra eram as moedas, o euro só viria no ano seguinte, a libra continua até hoje) era o nosso roteiro. Um mês longe de casa.
Mas como esse não é um site de turismo, vou logo ao assunto. 
Passeando por Londres, mais exatamente no Vitoria Embankment, um conjunto cultural, ao lado do Tâmisa, inaugurado em 1951 pelo então príncipe, hoje rei, Charles, encontramos ali, embaixo de uma árvore, um senhor numa cadeira de rodas, tocando um clarinete suave e bonito. Com um equipamento que reproduzia um acompanhamento simples, ele fazia solos e improvisos jazzísticos. Paramos pra ouvir. Numa pequena prateleira no chão, vários CDs. Chegamos mais perto e vimos que eram discos dele, à venda ali. 
Timidamente, tentei levar um papo, disse que éramos do Brasil e se ele tocava alguma coisa de Jobim. Antes de dizer se tocava ou não, disse que tinha uma relação muito grande com o Brasil: era casado com uma brasileira. E, claro, Jobim estava no seu repertório, como provou logo depois tocando "Wave".
Seu nome artístico e apelido era Teddie. Como explica o texto na contracapa do CD, Edward "Teddie" Hook nasceu na pobreza, em 1924 (se estiver vivo - não encontrei referência alguma a ele na internet - estará completando 100 anos) e foi criado num orfanato. Seu talento para o clarinete foi logo descoberto e assim que pôde foi trabalhar profissionalmente em bandas de baile e, depois, em shows em cabarés. Logo se tornou um comediante de sucesso e multinstrumentista. Tinha tudo para uma carreira de sucesso, mas em 1980 sofreu um grave acidente de carro que o levou, depois de um bom tempo de recuperação, a depender de uma cadeira de rodas. Essa recuperação teve a grande ajuda de Tercila, sua mulher, a quem o texto nomeia como "uma charmosa brasileira". 
Da descoberta toda ali no Embankment, trouxemos um CD dele que se chama, mui propriamente, "Pavement Maestro!" ou "Maestro de Rua" numa tradução livre.
Acompanhado de piano, bateria e contrabaixo, Teddie desfila tranquila e talentosamente com seu clarinete pelas 15 faixas do disco, das quais duas são de sua autoria: "Big Brown Eyes" e "Coração do Amor", assim mesmo, em português, com certeza dedicada a Tercila.
Pelas outras faixas descobrimos clássicos do jazz como "Unchained Melody", "Let's Fall in Love", "Alfie" e "Satin Doll"; um clássico - "Bolero" de Ravel - e outras canções menos conhecidas, mas todas agradáveis de se ouvir. 
Infelizmente, o CD não pode ser encontrado por aí. Talvez a venda sempre tenha sido feita por ele mesmo, ali no parque ou em apresentações em outros locais, direto para seus fãs antigos ou eventuais que, como Zezé e eu, nos encantamos pela qualidade de sua música, pela doçura de sua conversa e, depois, passamos a admirá-lo ainda mais pelo que sofreu e superou. Mesmo numa cadeira de rodas, continua distribuindo, a quem quiser ouvir, seu talento ao som de um clarinete muito bem tocado, como um maestro da rua.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Asdrúbal e o nosso trombone

 Por Ronaldo Faria

 


A onda rebate na areia que agradece o arrefecer do calor que a queima ao sol causticante. A lua, que brilha nalgum lugar do céu, não quer nem saber de chegar. “Com esse bafo a brotar na Terra, não sou nem louca de entrar em órbita”, pensou.
Mas num canto onde o instantâneo não é uma linha de fogo e a sombra de um e outro coqueiro faz de esmero uma brisa mínima, o casal crê que o amor ainda é provável. No afável toque de mãos, surge o abraço. Depois, a lambida e o afago.
Um trago de cachaça jogada no limão para amenizar e brincar com pedras de gelo, o enlevo que antecipa as tempestades, a rara saudade. Nos corpos desnudos e suados, mil cabeças, pernas, braços. Cafuné pra dar um pouco de carinho e de fé.
No céu, a se rir e esbugalhar os olhos para assistir o homem e a mulher, o sol até pensa em diminuir para não atrapalhar o amor. Mas qual, sacana, senhor do apocalipse fetal, prefere fazer de seus raios um arraial de danças que emergem das brasas.
Assim, a derreter as últimas neves do Himalaia e do Nepal, a cantar seu próprio hino nacional, o astro rei chama novas chamas para iluminar a apoteose letal. No seu cantinho, o casal finalmente goza em orgasmo total e fatal. O sol? Ele, esse cretino, descobriu por fim que de nada adianta querer escrever todo o final...

(Ao Asdrúbal Trouxe o Trombone)

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

A cor dos cheiros, no samba

 Por Ronaldo Faria


Incenso de rosas amarelas para Exu Bará a queimar e exalar. Odor de dor e esperança. Afinal, abaixo do quadrilátero que existe entre a lucidez e a loucura, pouco há ou haverá Talvez um axé calado e exalado dos poros que suam ebó e marafo. Nos portos perdidos de Angola, Maria Conga dava ao menino os ensinamentos certos para desbravar o coração da índia que dançava linda no salão.
José, rapa de um tacho cheio de pormenores e tristezas, como se a vida pedisse perdão permanente na mente, ao menos estava em encontro consigo mesmo, na mata que escondia a cachoeira que desce em cascatinhas da pedra que existe há milhares de anos. E foi o beijo primeiro, a língua enroscada, a fábula desnaturada de amor desvairado no telefone que pedia linha para discar.
Incenso a se desdobrar em voláteis texturas de crendices etéreas e efêmeras saudades. Num ônibus qualquer o motorista exorciza seus medos a correr quilômetros em efemérides do tempo que o Rei mandou e a vida parecia não ter desamor. Na memória, a eufórica tragédia que a ilusão guardou para se fazer blasfêmia. Na ilusão da felicidade, a iniquidade daquilo que o nevoeiro escondeu.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Rio e Pirajá, no samba

 Por Ronaldo Faria

 

Batuque no boteco traz saudades e arritmias, vertigens e blasfêmias mínimas. Semínimas ínfimas. “Desce um chope, chega outro, que venha mais um e tantos mais.”
-- A chopeira esvaziou. Pode mandar umas Brahmas? Com direito a saideira...
-- Fazer o quê. Não tem um, vai outras...
Na mesa, reminiscências, dormências, sofrências, parcimoniosas inocências. Gente a trocar olhares, alhures desejos. Fabrício e Jennifer olham para o céu que brilha azul chapiscado de nuvens brancas e disformes, nas mil formas que o vento lhes dá. De algum lugar um cambono grita na gira que o saravá é de Exu. Na mesa ao lado, um homem diz que graças a Deus, Oxalá.
Um partideiro resolve colocar a voz para sambar e soar e logo a morena mais brejeira sai a dançar. Outros tantos loucos da vida, em caixas de fósforos ou latinhas vazias, harmonizam a falsa dramaticidade da cena carioca. Há quem cante junto, quem evolua longe do sambódromo, num asfalto só seu, quem voe entre falsetes e notas complacentes nos quatro dias de folia. No caixa, Felismino reclama do preço da dose e diz que vai levar para o Procon “a absurda verdade da exploração do povão pelo português invasor”. No fim da discussão, vai tudo para a pindura que já soma mais papel do que goles tragados.
-- Moçada, vamos reduzir a sede. O estoque está indo pro cacete!
Fabrício pega Jennifer pelas mãos e começa a girar feito volta e ida, ida e volta. Aos poucos, grudam os corpos, se beijam em línguas e lânguidos desejos desesperados. Volta e meia se deixam parados para viverem às entranhas as estranhas fagulhas que cobrem os olhos. E brincam de amar feito fossem adolescentes ainda. Na indistinta maneira de buscar prazeres, relembram a brandura que a brancura das recordações traz. E viajam em mil lugares, proseiam com outros amantes delirantes, dizem que outrora foram mais felizes, que em caminhos errantes erraram sobremaneira.
Devagar, o luar toma conta do lugar, a chegar e farrear de brincadeiras utópicas o espaço de falácias e nostalgia. O dono da birosca já explica que a Brahma dançou. Quem quiser agora tem buscar a série B das geladas. “Aqui na comunidade essa briga de milícia e comando tem reduzido a chegada da entrega”, vocifera. “Fazer o quê? Desce a tal Série B! Depois de umas tantas, tanto faz”, gritam os frequentadores em ardores ébrios.  
Aos poucos, na procrastinação final, a noite revela que as velas que lutam contra um mar imaginário são o porto onde deixar o corpo cair depois que as pernas bambeiam a revoar. Fabrício e Jennifer, colados de corpo e alma, se fazem prosopopeia e epopeia, quimera irreal. Devagar, o tempo passa e as pombas que antes comiam restos de pão e do que caísse no chão, já dormem dependuradas nos galhos que ainda sobram feito quadro de Portinari. As portas, antes entreabertas, agora se fecham, sem soberba, para a vida. O casal da prosa se despede e pede que algum dia talvez volte a se ver. Afinal, cada rever é cobrar carnavais do passado, postergar sambas que nunca serão cantados e saber que porta-bandeira e mestre-sala irão dançar separados até o porvir do fim.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Derradeira ao som de Vinicius de Moraes

 Por Ronaldo Faria


Na rabeira da derradeira, a feira do amanhã. Haverá banana, legumes e alhures, queijo artesanal e sorrateiro, peixe arrancado sabe-se lá há quanto tempo do rio ou mar, roupas dependuradas em varais nunca tocados, pedaços de animais mil. E pastel! Claro, mesmo numa feira de só quatro bancas, não haveria de faltar pastel. Seu nome? Misael.
“É de meter ou aproximar?”
Se o amor fosse meter ou aproximar, haveria poetas a divagarem a cadência de rimar solidão e ser? Certamente não. Na negritude dos dias que teimam em solarizar a entrância que a reentrância que existe no desejo de amar e sofrer dá, a espera de acordar. E se dar. No futuro, sete dias pedirão para não se acabar num mesmo final e eflúvio saravá.
“É de meter ou aproximar?”
Na Rua Nascimento e Silva 107, talvez as respostas estejam postas em si. Ensimesmadas quem saberá. Daqui, travestido sem vestido de crer, no crédito primaz, Misael sou eu e tantos mais. Brincadeira de banir os imbróglios demais. Derradeira brincadeira de quem conheceu Elizeth e ouve que o amor, finito e inútil no seu mundo incapaz, pode doer em paz.


sábado, 3 de agosto de 2024

O eterno Otis Redding

Por Edmilson Siqueira


Ninguém cantou soul music como ele e, dificilmente alguém cantará. Ele saiu de um emprego comum onde ganhava pouco, aos 15 anos para entrar na banda de Little Richard e ganhar algum dinheiro a mais e ajudar a família. Onze anos depois, ele morreu num acidente de avião. Nesse curto espaço de tempo, se transformou num dos maiores cantores do EUA e, com certeza, no maior, até hoje, de soul e  rhythm and blues. 
Estou falando de Otis Redding, nascido na cidade de Dawson, na Georgia, em 1941. Sua carreira foi meteórica. Após participar do grupo que acompanhava Little Richard, dois anos depois juntou-se à banda de Johnny Jenkins, The Pinetoppers, com quem fez uma excursão pelos estados do Sul como cantor e crooner. Uma apresentação em uma sessão de gravação da gravadora Stax, levou-o a assinar um contrato para gravar seu primeiro single, "These Arms of Mine", em 1962.
A própria Stax lançou o álbum de estreia de Redding, "Pain in My Heart", dois anos depois. Inicialmente popular principalmente entre os afro-americanos, Redding mais tarde alcançou um público mais amplo de música pop americana. Junto com seu grupo, ele fez pela primeira vez pequenos shows no Sul dos Estados Unidos. Mais tarde, ele se apresentou no popular clube noturno de Los Angeles Whiskey a Go Go e viajou pela Europa, se apresentando em Londres, Paris e outras cidades importantes. Ele também se apresentou no Monterrey Pop Festival em 1967, poucos meses antes do fatídico voo.
A Spotfy anuncia sua discografia de estúdio completa em dez álbuns e, claro, ele não pode ter gravado mais que isso em apenas onze anos, já que sua principal atividade eram as excursões, inclusive fora dos EUA.
Seu estilo único, derivado do gospel e sua facilidade de interpretação, aliada a uma voz marcante e sincera, fizeram dele, rapidamente, um ídolo. Sua facilidade em enveredar pela música, fazendo improvisos que poucos conseguiram ou conseguem, deram a ele um lugar de destaque num mercado musical que já era gigantesco na metade dos anos 1950. 
Seu primeiro disco já continha cinco composições suas, provando que ali estava nascendo um fenômeno. Acompanhado de uma banda enxuta - três metais, guitarra, bateria e contrabaixo - Otis colocava sua voz como mais um instrumento, sem jamais perdeu a profundidade de seu canto e a sinceridade de interpretação.
Um dia, navegando pela  Amazon, deparei com uma oferta de uma caixinha com cinco CDs de Otis Redding e outra de Sergio Mendes. A dos brasileiros já foi assunto aqui. Eu me lembro que dei uma vasculhada na oferta e descobri que eram cinco discos de estúdio de Otis, todos eles com as capas originais - o que, aliás, torna impossível ler os textos das contracapas que, na cópia para o tamanho CD, ficaram quase microscópicos. 
Mas eram os cinco discos iniciais de Otis, o que me daria, além do prazer de ouvi-lo cantar, uma boa ideia da carreira desse fabuloso astro. 



Além de "Pain in my Heart", a caixa traz "The Great Otis Redding Ding Soul Ballads", "Otis Blue - Otis Redding Sings Soul", "The Soul Album" e "Complete & Unbelievable - The Otis Redding Dictionary of Soul". 
Entre as 59 músicas - são 12 em três discos e 11 nos outros dois, que era o que cabia nos LPs - estão alguns de seus maiores sucesso, como "Pain in my Heart", "Stand By Me", These Arms of Myne" e Lucille", todas do primeiro disco. No segundo, destaques para "That's How Strong My Love Is", Nothing Can Chance my Love" e Home in your Heart". No terceiro, logo na segunda fa0xa, "Respect", um megassucesso de Otis e, na quinta, "I've Been Loving You Too Long", que depois foi gravada também pelos Rolling Stones.  E ainda há "My Girl" (outra gravação dos Stones) e, invertendo o jogo, "Satisfaction" o eterno hit da banda inglesa, que nunca escondeu suas origens no soul e rhythm and blues. Aliás, essa gravação de Otis virou cult e até hoje é lembrada pelos amantes do rock. 
O quarto disco traz um texto na contracapa, sem identificação do autor, que começa assim: "Há muitos cantores de soul, mas grandes cantores são raros. Otis Redding é um dos grandes. Em poucos anos ele se tornou conhecido, através das suas gravações de sucesso e suas excitantes apresentações, como um digno sucessor dos legendários cantores de blues do passado.  É um disco onde as interpretações de Otis atingem quase um ápice.
O quinto e último disco da caixa, começa com outro sucesso: "Fa-Fa-Fa-Fa-Fa (Sad Song)", mas contém uma das melhores interpretações de Otis, que até hoje é muito tocada em rádios voltadas ao jazz e ao soul: "Try a Little Tenderness", grava por muita gente depois dele. Outra, digamos curiosidade do disco, é a versão dele para "Day Tripper", de Lennon e McCartney. 
Os discos lançados depois desse, ou eram gravações que ele já havia feito em estúdios para lançamentos futuros, ou gravações ao vivo de seus muitos shows, não só nos Estados Unidos.



E do seu maior sucesso, a composição sua e de Cropper, "Sittin' on the Dock of the Bay", que a tantos encanta até hoje, ele não desfrutou. Seu lançamento foi póstumo, como póstumos foram muitos prêmios que ele recebeu, bem com a criação de prêmios com seu nome, a inclusão em vários Halls of Fame e a colocação de seus discos em muitas listas de melhores de todos os tempos.
Enfim, o mundo perdeu, precocemente, um artista que, com certeza, tinha muito ainda a nos mostrar nas décadas seguintes. Se vivesse até hoje, teria 83 anos, só três anos a mais que Mick Jagger que ainda está por aí, esbanjando energia e talento.
A caixa com os cinco CDs está à venda por aí, nos bons sites do ramo. Vale a pena.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A Caetanear a blasfêmia do chegar

 Por Ronaldo Faria

 

Ele estava deitado, sem consternação ou o caralho. Apenas estava. Como diria o poeta, num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Estava a beber decilitros e poesia. A caminhar na imaginação tardia. A sublimar o tempo para que o agora não seja o momento da canção. Quanto tempo faltaria? No tempo verbal que o poeta não sabe dizer qual na gramática seria, saber-se-ia.
Ele sobrevoava entre as favas secando ao sol, à espera de brotar, e um arcanjo malandro que faz trovas para que as virgens que sobem ao céu achem que as nuvens são púrpuras. No cantar da saudade, a performance das notas que denotam a natureza em perdão. No universo que se esmera entre a imensidão e o trovão, a púbere voz da amada que se faz díspar e volátil a se ouvir e redimir.
Ele, cancioneiro sem esmero de si mesmo, plágio das músicas e seus poetas, efeméride de algo que surge nalgum lugar, profana a forma e alude o descrente crer em outras línguas desse mundo a mais. Filho do antes da ditadura, da Capital Federal, vive até hoje a acreditar que há um socialismo a se esconder na semente à espera de um planeta, num canto de continente, a brotar e chegar.
Ele, carcinoma pungente e escondido que logo irá chegar, planteia o pranto que os olhos nem sabem como traduzir. Os raios de Sol que dentre em pouco voltarão, volteiam a ínfima procrastinação. Nas palavras frias e frígidas da imensidão da loucura em antemão, a servidão. Mas para que serve a vida? Ávida de lavradios tardios não vem a malfadada ternura, a lânguida e pura fervura.
Ele, conspurcado de si em medos e blasfêmias, amante de todas as fêmeas, amanhã não irá enlouquecer ou beber. Um túnel atemporal irá lhe tragar e trazer a eterna e a sempre amada. E então, o que vier, virá. No antever do descrer, jusantes vão se entrelaçar. E se bastar só um olhar, um prosear de passados e a incerteza do nunca chegar, já terá valido o que o inválido do amor nunca terá.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

A ouvir Caetano

 Por Ronaldo Faria


-- Foi isso que você previu anos pra caralho atrás?
-- Certamente não. Num apartamento de Ipanema, quase na Globo pra criar documentários,  eu previa outra realidade. Mas, essa foi a verdade que sobrou...
Cândido, famélico ser do passado, conversava com Afrânio, que não era nem de melô ou franco. A mesa do bar juntava saudade e realidade. E a Zona Sul no seu azul iluminado agora pela lua que não sabe se é cheia ou meia que vê tudo. Tanto faz. No fim, tudo vai ser o que tiver de ser. A mesa de bar tinha cheiro de maresia, futura azia e cheiro de outra maresia, dessa que sobe, segura e dá barato geral. Pertinho, tinha ondas com espumas claras e volatilidade. Talvez saudade. Sangue a fluir na melhor idade.
Cândido, guerreiro desde o momento que surgiu e ungiu de destino o istmo entre a lucidez e a loucura, passou a batalhar com suas dicotomias e essências cadentes e urgentes, seus medos e desvelos, bastardas politomias e sabe-se lá o quê. E se escondeu em retalhos, atalhos, cadafalsos falsos, sofismas mil. Para ele, cadáver vivo nas férias dos vivos, qualquer bobagem já é manchete de parar as máquinas. E ouvir as decrépitas rotativas ativas a colocarem letras pretinhas e fotos coloridas no papel branco, aos seus trancos.
-- Foi isso que você previu anos pra caralho atrás?
-- Sei lá. Foi o que me foi dado, por surpresas e buscas, momentos de bruscas verdades e certos azares. Afinal, não é isso que é a realidade?  Utopias, sangrias, orgias, perfídias, fábulas e fulgurantes dias, cinzentos, cheios de unguentos e passos diários e lamacentos.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Milton, com toda nobreza

Por Edmilson Siqueira


 
As últimas apresentações de Milton Nascimento durante sua despedida dos palcos me despertaram um pouco de pena do gênio mineiro. Embora todas a qualidade de sua música estivesse ali presente, Milton se esforçava para cantar do jeito que já cantou. E quem ouviu, por décadas, o brilho incomparável de sua voz, não poderia ficar totalmente feliz com a performance de um grande cantor que, agora já com idade avançada, não era o mesmo, nem poderia ser. Há poucos Jagger e Matogrosso no mundo. E mesmo o brasileiro faz ótimos shows poupando agudos e danças pelo palco.
Claro que o fato de a voz de Milton não ter o mesmo brilho de forma algum empalidece sua carreira. O último ano em que ele passou pelos palcos foi uma despedida sincera, de gala eu diria, relembrando uma obra imortal.
E como não teremos mais aquele mesmo Milton ao vivo e como dificilmente ele vai gravar novamente, o jeito é curti-lo indiretamente, através de grandes artistas que não só preservam sua obra regravando-a, mas fazendo de forma magistral.
É o caso do CD que está rodando agora no meu Panasonic: "Milton - Por Monica Salmaso e André Mehmari". Ouvi uma música acho que foi no YouTube e nem esperei terminar para encomendar o bichinho.
Quando chegou foi um completo deleite.  
Monica acho que dispensa apresentações. É uma das melhores cantoras brasileiras atualmente, com um repertório e parcerias irrepreensíveis. 
André Mehmari é pianista (toca marimba de vidro também no disco). Além disso é compositor e arranjador. Dois parágrafos da Wikipedia bastam para deixar qualquer um de boca aberta: "Suas obras foram executadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), Orquestra Petrobras Sinfônica e Orquestra Amazonas Filarmônica, dentre outras importantes formações brasileiras. Na música popular, gravou discos com o bandolinista Hamilton de Holanda e cantora Ná Ozzetti.
Em 2010 assinou contrato com um dos mais importantes selos italianos de jazz, EGEA, que representa o artista na Europa e para o qual vai lançar cinco discos solo. O primeiro deles ("Miramar") foi gravado no Oratorio Santa Cecilia, no centro histórico de Umbra (Itália) e já foi lançado nesse país."
Ou seja, o cara é muito bom.  
E, além dele, há ainda a participação especial de Teco Cardoso tocando flauta baixo e sax soprano.
O resultado dessa união é um disco que dá prazer em ouvir do começo ao fim, colaborando para tanto as incríveis interpretações de Monica, o piano meio mágico e André e o acréscimo em duas faixas, do colorido do sopro de Teco.
"A Lua Girou", canção que inicia o disco, composta só por Milton, é quase uma oração pedindo a devida proteção aos deuses da música para abrir os trabalhos. O casamento entre a voz de Monica e o piano de André é perfeito.
Após o longo respiro da primeira faixa, o piano se encorpa a seguir para "Noites do Sertão, com música de Milton e singela poesia de Tavinho Moura.  
A terceira faixa é uma dessas que se tornaram clássicas, não só pela beleza da música e da letra, mas pelo conjunto apontar para um tempo em que não vivíamos sob o tacão da ditadura militar. "Saudades dos Aviões da Panais" ou "Conversando no Bar", de Milton e Fernando Brant, é dessas músicas que, a gente tinha prazer de dizer quando Milton a lançou, enganaram os censores do regime de exceção que a tudo proibiam.
Nova canção só de Milton, "Morro Velho" dá sequência às pérolas que Monica e André nos presenteiam. Interpretação no ponto certo, com o mesmo clima que Milton criou lá atrás e que ainda retemos na memória.



A quinta música une as genialidades de Milton e Caetano. À melodia rápida e à letra complicada, mas com todo sentido, é feita a leitura de um trecho do conto homônimo de João Guimarães Rosa, do livro "Primeiras Estórias". Fica tudo muito bonito e adequado, pois André deixa o piano para tocar marimba de vidro, à qual é acrescentada a flauta baixo de Teco Cardoso.    
"Canção Amiga" é o resultado dessas uniões mágicas que só a música e a poesia podem proporcionar. Um poema de Carlos Drumond de Andrade musicado por Milton, se transforma em sons imaginários que agarram as palavras do poeta e as torna mais belas ainda.
A faixa seguinte não é de autoria de Milton e sim da artista chilena Violeta Parra. Está no disco não só por sua excelência e significado, mas porque Milton a gravou no Clube da Esquina 2. Composta por Violeta em 1953, essa música fez parte da peça produzida por Leonard Bernstein para inauguração do "John F. Kennedy Center for the Performing Arts", em 1971.
"Paixão e Fé", composta por Tavinho Moura e Fernando Brant ficou nacionalmente conhecida na voz de Milton. Aqui, Monica faz jus à interpretação do mineiro e o piano de André a povoa com um brilho especial, num arranjo sensacional.
"Milagres dos Peixes", de Milton e Fernando Brant foi uma dessas canções que a cretina censura da ditadura proibiu de ser executada. O jeito foi inseri-la no disco, na ocasião do seu lançamento, sem a letra. Depois que a ditadura acabou, pudemos conhecer a letra e percebemos que a poesia era apenas um canto de amor de amor ao próximo, coisa da qual, certamente, os obtusos censores não entendiam. O sax de Teco Cardoso, aliado à voz de Monica e ao piano de André dá o tom certo e preciso para a bela canção.
"Credo", de Tavinho Moura e Fernando Brand, é a faixa seguinte. Canção forte, de esperança em dias melhores, é acrescida de uma citação à clássica San Vicente que lhe dá o devido ímpeto final em mais um grande trabalho vocal e instrumental da dupla.
"Paula e Bebeto" de Milton e Caetano Veloso, fecham esse momento precioso da música popular brasileira. Quase nada a acrescentar aqui à excelência do disco como um todo. A mensagem universal da música ("Qualquer maneira de amor vale a pena") hoje é quase um mantra que se espalhou por aí e deve ter produzido frutos muito bons.
Encerro com uma boa notícia: o disco pode ser ouvido - e assistido como um show particular! - na íntegra no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=af1cJBh4pj0 e, claro, está à venda por aí nos bons sites do ramo.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Azáfama da playlist de cozinhar e cantar

 Por Ronaldo Faria


Azáfama da dificuldade de juntar dois. Horários, sacrários, metamorfoses, doses, entorses, fetos, netos, métricas vontades, os outros que fazem parte. Coisa estanque, feito tanque de roupa que nunca lavou um guardanapo de pano sequer. Coisa grandiloquente de décadas e comédias e tragédias. Idas e vindas, todas findas e infindas. Entre beijos, corpos entrelaçados, risos, lágrimas, fábulas, fastios e fátuas poesias. Coisa de Zeca Baleiro a cantar na noite que tem a boca de um dragão. Senão...
 
José seguia seu mundo até o fundo no mais profundo e macambúzio espaço do terreiro que juntava a janela do acertamento ao mundo. E percorria estradas, ria de alforjes vazios que passavam no seu caminho, transitava às ventanias de tantos lugares. Alhures delimitava a frágil união entre o início do nada e o fim de tudo. Com um cheiro de rosa vermelha, a falácia da felicidade se desfaz a cada momento no lamento diuturno do erro do passado.
Maria vivia seu passeio pela pele na essência da vida: sentença carcomida e falta de fotos, fatos, nomes, paisagens e quase nada. Toques do amor desejado, separações forjadas, tramas achadas, veleidades castradas, presságios em adágios vazios. Sentada no alpendre onde a lua se deixa translúcida para a vida renegar, cata o restante de histórias histriônicas, emoções catatônicas, frases afônicas e cheias de tonicidades e sonoridades quiçá icônicas.
Para José, um Tom Zé sem fãs ou canções, as luzes da noite e os botecos entre mil ticos e tecos, terços, troças, truques, no toque entre toques de graduações e ações, o momento era de cercanias do lamento. No ausente casamento, há muito inexistente, volatiliza a ferida aberta e nunca obstruída. E segue à margem da vida, a temer seus medos, beber seus degredos, glamorizar o que não tem porque seguir a estrada travada em mandrágoras.
Para Maria, tardia canção de um amanhecer sobremaneira fugidio, o caminho não tem volta, mesmo na revolta próspera da prosopopeia do cavalo a fugir pelo descampado que é o coração do amado. Em casa caída e deplorável e cada forjar o afável, sobe a ladeira a vencer volúpias e ventanias altaneiras. No seu mundo paralelo, o parabélum parece ser o translúcido alcaide da ópera sem tenor ou personagem principal. Na viela lateral, o cheiro mortal.
 
Ato 2
 
José está sentado no bar. Ainda tem todos os neurônios a funcionar. Ou, ao menos, parece ter. Vive de letras impressas e meras trovas, torvelinhas canções. Há também unções e amores, conquistas de todos os tipos, díspares e multiformes. Disformes à poesia. E fugidias formas de rolar em tantas camas mil, transitar e orbitar olhos, seios, pernas, corpos, vaginas. Um oceano múltiplo e tântrico. E línguas a sugar outras iguais, suores a respingar em tantos poros fatais, performances e quebrantos bêbados, afagos e fados escorrendo em quartos que se podem ser. Para José, o momento era tudo e rotundo na intrínseca busca do ter. Na fuga permanente da ausente e infausta solidão.
José, com seus santos e exus, a caminhar no altar e matas, cabelos negros da amada e chás que acharão seu porvir entre diarreias e alcateias, sobrevive e vive, bebe e bolina, olha a noite que se antecipa à madrugada tragada de ausências e anuências, luzes coloridas nos semáforos ou faróis, postes preocupados com motoristas primatas e atos que só a loucura maior da lucidez dá. Na mesa defronte, a fronte da mulher faz alternar beleza e quase mágica. Na trágica realidade das pessoas que passam na rua e perpassam o momento e a íris estrábica e as trazem para o sempre, o esmero do desespero mutante. Agora, José é apenas frágil e redundante mutante de si mesmo, a esmo.

sábado, 27 de julho de 2024

Sentença da solidão com Renato Teixeira

 Por Ronaldo Faria


A casa de fazenda descansa muda e seca à vida que habita a secular sequência entre o tempo de entranhas marcadas a chibatadas e o recomeçar. Parece um quadro de pinceladas malfeitas a se esgueirar no tempo que a cada dia a Terra dá. Como a esquecer da dor, caminho entre os portos e a resistência daqueles que não foram mortos até o interior do lugar que lhes iria profanar. Na prosa que já não proseia, a teia da aranha apanha das intempéries a sobreviver.
-- Rosinha, você casa comigo? Te prometo cama da boa, de palha, e te encher de filhos e filhas pra alegrar a casa. E juro que vamos criar todos pra serem donos desse mundão que Deus, do alto, vê.
-- Sei não, Honório. Emprenhar um monte de vez, dar de mamar, desmamar e dar de mamar outra vez. E se a parteira um dia não puder vir? Quem vai vencer as léguas até a cidade para fazer a criar sair?
-- Vou ter uma charrete rápida, colocar uns quatro cavalos pra guiar. Nada de carro de boi, com canga pra segurar. Garanto que a gente chega rapidinho no médico que der pra pagar. Senão, a Dona Vitória vai ter que estar a esperar. Ela nunca falhou com as mulheres daqui.
-- Honório, você vai me desculpar, mas não dá pra arriscar. O bucho é meu.
-- Rosinha, então você casa e a gente só deita quando você souber que não vai dar cria. Mas eu queria ser pai de uns dez, no mínimo. Filho é a certeza de que a gente continua vivo mesmo depois de morrer.
-- Honório, deixa de pensar besteira. Eu é que vou ter de parir a vida inteira.
Desacorçoado, o rapaz monta no alazão e sai em disparada pela estrada. No céu, a lua cheia recheia de visão o caminho até o lugarejo onde já tem luz de eletricidade a pipocar. Ele para o cavalo cansado e suado diante de um cocho, amarra o bicho e entra na casa que a luz vermelha faz cenário à beira. Se Rosinha não o quer, uma outra mulher do mundo há de querê-lo. Afinal, para quem está só, qualquer quirela de amor deve servir.
-- Honório, você por aqui?
Telma, vinda da Capital, dona do bordel, cumprimenta o visitante raro como fosse alguém que está lá todos dias, noites e tempos.
-- Dona Telma, Amora está aí?
-- Está com cliente. Mas esse é rápido. Parece andorinha. Logo ela volta pra sala. Quer tomar uma canjebrina?
-- Pode descer uma e mais outra.
-- Jeremias, desce uma da boa pro Honório! E já manda duas.
Enquanto espera por Amora, ele vê os casais se encontrarem, se beijarem, entrarem nos quartos ou sair no galope, gritarem ou sussurrarem na noite que está a brilhar no luar. Da sua cabeça, porém, Rosinha não sai. Estava tudo bem para virar semente diante do padre e depois chegar o amém. Mas qual, ela prefere virar freira ou enjeitada a ter dez ou doze filhos pra botar na estrada.
Quando Amora deixou o homem que demorou nem tanto tempo, ele a pegou pelo braço, levou para o quarto e fez tudo o que podia até quando o sol resolveu dizer para a lua ir buscar seu quintal. Amou, desamou, beijou, xingou, esbravejou, fez súplicas de amor, promessas até de altar. A moça, como já estava acostumada às bravatas dos seus amantes delirantes e errantes, bêbados e largados, apenas dizia a tudo que sim. Quando o gozo findasse e a realidade retornasse a Honório, ela sabia que tudo seria um sono demente a suspirar. Quiçá, o roncar de um boiadeiro.
Quando a manhã raiou, não rara em demora nesses tempos de agora, onde tudo parece já ter acontecido outrora, Aurora acorda Honório. “Já está na hora de pegar estrada boiadeiro.” Com seu pensamento a sorver o que ainda resta de entranha, Honório se levanta, lava o rosto na pia que pinga e pega seu rumo. Malvado, o cavalo amigo, está lá, ainda selado, a lhe esperar. Ele pede desculpas ao animal e toca a espora para onde for o destino final. Numa curva da estrada de terra, contudo, o cavalo trupica e cai desalmado. Malvado depois consegue se levantar, mas Honório bate a cabeça numa pedra grande de danada. Sangra até morrer na última morada. É encontrado horas depois por vaqueiros e sua vaquejada. Enterrado no local, com uma cruz bonita, colorida de azul e bem cortada, não teve tempo sequer de saber que Rosinha decidiu se mudar pra Capital e virar professora de maternal.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Bebida pro santo e João Bosco

 Por Ronaldo Faria

 

-- Pai Bastião, eu acho que o homem está bebendo bem.  Não deu uma semana e já foi quase tudo.
-- É que a coisa deve estar feia, meu zifio. Pra limpar tudo que veio, vem e virá só com muita oferenda...
-- Tudo bem, não me nego. Nunca me neguei. Mas nos últimos tempos a coisa evapora rápido demais.
-- Talvez porque seja para impedir que os últimos tempos virem o último tempo, o derradeiro suspiro, o fim de tudo.
José aceitou a explicação e agradeceu a resposta. Com certeza, na presteza da realidade tardia e vadia, Pai Bastião, filho de Oxóssi com Iemanjá, está certo. Decerto, mesmo que o calor extremo possa ter ajudado, outra explicação mais lúcida terá razão. Assim, o que antes era até 15 ou 20 dias virou menos de uma semana. Na artimanha da manhã ainda por vir, a esperança de um novo porvir. E a espera do samba geral.
Constrito, nunca consternado, José se ajoelha diante do congá e agradece em prece todos os orixás, relembra a índia que amou primeiro na vida e lembra do batismo, da confirmação e dos santos que desciam para trazer Ogum e Preto Velho ao lugar. Assim, no enfim que os anos trazem em décadas vividas, novas esperanças tragam heranças para que o copo possa se encher de novos ares quando secar. Salve o novo, Oxalá!

terça-feira, 23 de julho de 2024

Adeus 2023

 Por Ronaldo Faria


-- Vade retro, 2023. Vá para o limbo da eternidade da história e não volte nunca mais!
-- O que é isso, Demerval? Foi tão ruim assim pra você?
-- Cê tá louco? E pra você, foi bom?
-- Sei lá... acho que não cheirou e nem fedeu. Foi um ano a mais.
-- Então, parabéns. Enfim achei alguém que curtiu esses 365 excrementos diários.
Demerval tinha até do que reclamar. As chuvas famosas de início de ano haviam derrubado o barraco construído com tanto esforço de comprar material a prazo, surrupiar de outras obras, improvisar quando o cobrador vinha à sua moradia cobrar as prestações atrasadas. Mas não foi só. Maria, cansada de ser mulher de verdade, mesmo sem se chamar Amélia, resolveu em agosto, mês do desgosto, deixá-lo. Fernandão Pé de Mesa conquistou a morena com promessa cama, casa de alvenaria, comida e noites de gozo só.
Antes, porém, lá por março, como a falta de um cadarço, Demerval havia tropeçado no trabalho. Tinha faltado quatro dias seguidos. Deu por esquecido, tentou dizer que teve amnésia profunda advinda de uma queda soturna, mas o bafo de cachaça não convenceu o mestre de obras. Rua sem direito nenhum. Durante uns dias fez bico de segurança numa boate em Copacabana, vendeu capinha de celular na Rua do Ouvidor, sentiu dor no coração, mas curou no centro de umbanda que funcionava no Méier. Depois, como tudo que tem que piorar tem sempre um depois, depôs na 13ª DP sobre a agressão contra um turista boçal que tinha chamado ele de resto de Carnaval. “Seu delegado, mexeu com a minha Mangueira ou meu Flamengo, eu não tenho sustento na mente.” Para seu azar, o delegado era vascaíno e portelense e levou três meses no xadrez.
-- Você acredita que o pessoal da facção queria que eu fixasse um posto na comunidade. Eles diziam que eu tinha personalidade. Mas, pra quem já fodido, não vale a pena se foder e meio.
Quando saiu da cana, Demerval tentou vaga de flanelinha, apontador de bicho, pintor de parede. Acertou em alguns trampos, mas por pouco tempo. Chegou em novembro já meio mais pra lá do que pra cá. Para ele, sobrou um cartaz de “compra-se ouro e prata” no peito, em plena Avenida Suburbana, agora Dom Hélder Câmara. Dava para o trem e uma gelada na promoção. Vez ou outra vinha um extra como camelô cobrindo a falta de um parça. Ia se virando como dava. Mas Demerval sabia que o pior estava por vir. Dezembro era o seu mês de angústia. Neste, o Papai Noel filho da puta nunca tinha lhe dado nada em infância. Não seria agora, num 2023 tão morfético, que um velhinho iria lhe dar refresco.
-- O meu velho, dia após dia me enchia de porrada. Você acha que outro velho, que mora lá no Polo Norte, ia me trazer sorte?
-- Porra, Demerval, também não é assim. Eu conheci o Seu Vitalício e ele até que era bacana. Tirando bater na Dona Carola às vezes e chegar bêbado em casa sempre, tinha seus momentos de bom pai.
-- Cacete, tu tá aqui pra conversar ou pra me sacanear?
-- Desculpa, foi ruim.
Mas dezembro, quando vagas pululam no comércio e outros afins, Demerval acreditava que seria um mês melhor. Correu o comércio da Vila da Penha, Madureira, Honório Gurgel e Vicente de Carvalho. Ao fim das corridas, a mesma palavra: “caralho!” Ninguém tinha vaga pra nada. Nem bico aleatório. Por fim, conseguiu um trampo passageiro num crematório. “Fica aí que nesses fins de ano sempre aumenta a procura”, disse o gerente a lhe mostrar os macetes da fornalha. Agora, na folga, no boteco do Carlão, com as brejas descansando na mesa e o amigo do lado, um resto de porção de torresmo a servir de aeroporto das moscas em voos rasantes, Demerval só pensa no próximo Carnaval. Um companheiro de agruras já lhe prometeu vaga na Cidade do Samba para ajudar na montagem dos carros alegóricos da Verde e Rosa.
-- Em 2024 eu tenho a certeza de que as coisas vão mudar. Sabe que eu estou até de prosa com a Dora. De repente, ela aceita ir pro meu cafofo novo. É pequeno, de três cômodos, mas dá pra dois corpos. Se ela não se incomodar de morar meio longe e ter de ouvir o trem passar, dá rolo. Eu sei que no próximo ano a coisa vai virar. Como Exu Bará vai ser o regente, quem sabe não dá jogo. Vai ter que dar.
Na rua logo do lado duas Patamos passam chutadas e rápidas. Deve ter bala sobrando logo ali perto. Mas deixa pra lá. “Eles que são PMs, milicianos e traficantes que se enfrentem e se entendam.” Para Demerval, já quase na virada do ano, o importante é esquecer o que não foi e torcer para aquilo que deve vir ou virá. O Réveillon vai ser no Piscinão de Ramos, com direito a show no palco e fogos de artifício. Com Dora, claro. Afinal, a vida tem a mágica de transformar bosta em ouro. Basta crer que acreditar é ainda o maior tesouro.
-- Carlão, manda a saideira de 2023. Melhor, desce logo três pra rimar com este ano que vai arder no calor do inferno. Aliás, que calor do cacete que está nesse mundo.
Suando como camelo, Demerval espera logo mais não ser uma cifra a mais nas pesquisas dos ausentes.
 
(Ao som de João Bosco)

Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...