Por Ronaldo Faria

-- Saravá, mizifio!
-- Saravá.
-- O que suncê quer?
-- Nem eu sei, minha mãe.
Estou que nem barco em maré: sem areia, chegada e nem pé.
-- Aí é ruim...
-- Eu que o diga.
-- Mas e a fé? Tá junto?
-- O que é fé? Se for
esperança, há muito já perdi.
-- Pode ser esperança ou pode
ser lembrança. Lembrança de coisas boas, tardias de riso à toa.
-- Sei. Então até isso está
difícil.
-- Pense que ao menos você
ainda está aqui pra falar, ver, andar, respirar.
-- Só que tudo bem pouco e
quase nada.
-- Mas é do pouco que vem o
muito, mizifio. Pensa nisso. E saravá. Que Oxalá esteja contigo.
-- Saravá! Vou rezar pra isso.
Francisco levanta e sai do
centro a deixar a cantoria e os atabaques para trás. Sai pelo portão e chega à
rua. A chuva cai fina, quase nenhuma. Mas o asfalto, já molhado, brilha nas
luzes que o poste traz e proseia com as poças que o tempo faz. O cheiro de
alfazema e sete ervas toma conta do lugar. Devagar, segue entre as árvores que
trazem abrigo. Uma ou outra marquise também alivia o cair de pingos que
aumentam a cada passo. Mas, como diz o ditado, na chuva há que se molhar.
Nesses dias em que a vida é, melhor com as intempéries não brigar. Logo
encontrará um bar. Irá entrar, puxar uma cadeira, sentar, pedir a gelada e se
deixar levar. Certamente o destino não desatará, mas, aos poucos, com uma
porção de costelas de porco, o afoito e louco sofrer irá tentar sumir um
momento só para não perder de vez o corpo que o carrega para todo o lugar.
II
-- Que família mais linda!
Parabéns, Zefa. Fosse comercial de margarina não poderia ser mais bonita. É
muita boniteza demais! Além da conta.
-- Obrigado, Pafúncia. A sua
também é muito linda.
-- Para, Zefa. A minha não
chega nem aos pés da sua. Ela é só sorriso e ternura. Se tivesse concurso de
família, a sua seria o Clóvis Bornay. Ia desfilar só pra ser hors-concours. Mas,
tudo bem. Quem tem, tem. Borogodó e fashion.
-- Não é tanto assim.
-- Pelamor! Querida, você não
nasceu com a bunda pra lua. Nasceu com a bunda, o peito e o dedão do pé. Deixa
de querer ser humilde. Não faz que nem a Gertrudes...
-- Tudo bem, Pafúncia. Aceito
os elogios. Quer mais um champanhe?
-- Amiga, e eu vou desprezar
uma francesa legítima pra tomar? Nem morta!
Sentadas nas cadeiras à beira
da piscina onde uma competição de veleiros poderia acontecer sem problema, as
amigas acendem um Gitane tradicional e que grita em francês quando o fogo do
isqueiro Cartier, o queima: “Me brûle, mais fais-le avec amour”.
-- Rodrigo, me traz outra garrafa de champagne Louis
Roederer Rosé Vintage, mas a da safra
2013. Não vá errar. Desça na adega e se certifique que é de 2013.
-- Sim senhora,
madame.
-- O quê? Fale
direito, pra Pafúncia ver.
-- Oui, madame...
-- Agora sim.
Pode ir. E passa na cozinha e diz para Beatriz trazer uns petiscos de caviar e
salmão.
-- Oui, madame...
-- Zefa, como
você mantém um serviçal que se esquece de falar francês?
-- Ele é
bonzinho, Pafúncia. E sabe que essa gente, honesta, está difícil de encontrar.
Você demite um e não encontra outro em cem.
-- É verdade. Uma
tragédia total. Fosse em Mônaco, não seria assim.
-- Mas deixa pra
lá. E Clarêncio? Quando volta dos Alpes?
-- Amiga, nem te
conto...
Aos poucos a noite vai chegando e se
aconchegando na mansão que descansa num bairro jardim. As duas vão se
abrigar perto da lareira e sorvem agora um Bollinger Special Cuvée acompanhado
de ostras de Coffin Bay e trufas brancas de Alba. Não se ouve um barulho externo
sequer no inebriante lugar. No alto da serra, com vidros blindados e
antirruído, o som que rola é apenas das vozes das amigas e do show do Alok,
particular.
-- Mas é isso, sua família é o
baobá...
-- Pafúncia, você é hilária!
-- Vamos tomar. Alok, toca
Raul!
III
-- Saudade da Dona Ivone Lara.
Se samba tem clássicos, um desses clássicos vinha de lá, daquela mulher, devagarinho.
-- Pode crer. Essa era uma
dama do samba.
Zé Emerenciano e Mestre Jardel
fazem uma resenha forte na birosca sob a escuridão quebrada por uma ou outra
lâmpada de poste que resistiu aos tiros da milícia, do tráfico e dos alemães
que passam pelo lugar.
-- E o Flamengo? Viu a lambada
que ele deu nos gringos que vieram aqui no Maraca?
-- E não... Não fui lá porque
a grana está curta, mas vi pela tevê. Nosso time é foda. O tal de Tite se
tivesse levado o Mengão nas duas Copas, hoje seria heptacampeão.
-- É verdade. Mas tudo tem
esquema. Você acha que a imprensa, os empresários, os outros clubes, a CBF
teriam aceitado? É claro que não. Foda-se a seleção. O que conta é o cifrão.
-- O pior é que é verdade.
Do lado de dentro do balcão, o
espanhol nascido em Portugal faz o sinal para saber se a dupla da Agremiação e Escola
de Samba Baba de Quiabo e Camarão quer mais uma garrafa.
-- E precisa perguntar,
Manolo? Manda logo ver!
-- Mas traz aquela que você ia
levar pra casa e tomar com a cumparsita.
O calor de outono que pensa
ser verão atrasado traz uma brisa mansa e amiúde. Os copos, suados de gotas de
prazer, transbordam pela mesa de plástico. No morro hoje, ao menos, não há um
morto novo. As estatísticas, imprecisas e sisudas, ficarão paradas. Talvez um
marido espanque a mulher, ela o denuncie à polícia, uma criança morra de desnutrição, um ou uma qualquer
perca seu emprego de salário mínimo e ínfimo. Mas qual, ali todos estão acostumados
no abandono e esquecimento. Por outro lado, também, alguém subirá sua casa de
alvenaria com dez sacos de cimento. Fará a sala, o quartinho e o banheiro. E um
amor gostoso e verdadeiro irá rolar. Olhares irão se cruzar. A mãe pedirá para
o filho ter cuidado a ir e quando voltar. A vida continuará em pandeiro, destino
e tamborim. Afinal, no final das contas que não fecham, tudo apenas irá se
repetir. Logo, pra que dar piti?
-- Na epifania da vida, pitaco
só dá quem tem saída!
-- Bonito, Mestre Jardel. Podia
ser enredo de samba. Já imaginou o senhor a comandar a bateria com um samba
assinado junto?
-- Zé, você já bebeu demais.
Manolo traz a conta!
Refeita de emoções e coberta
de risos bons, os dois amigos sobem o resto da rua para se guardarem nos recintos
devidos.
-- Boa madrugada, Mestre
Jardel. Que os deuses nos deem a fidalguia da porta-bandeira e a beleza da
passista na avenida.
-- Onde tem quizumba? É só
dizer que eu desço a navalha!
-- Calma, João Exu. Não é quizumba.
É quizomba. É festa!
-- Aí então, se otário se
fizer, dou navalhada na testa.
-- Tudo bem, a gente sabe. Mas
fica na sua, fica bem.
João Exu, como o nome diz, era
filho do senhor das ruas. Mas quem disse que essa entidade é do mal? Ao
contrário, ela traz a paz para as encruzilhadas. Põe ordem nas demandas e
arruma e destranca as vidas que estão em dívidas com trancas antigas e nuas. É
o rei das noites e madrugadas infaustas e rotas, causticas e tronchas. Aquele
que bebe com os solitários, os sonhadores e flagelados perdidos pelo dia a dia.
Quisera todos fossem como ele. Com certeza a vida seria uma festa sem hora pra
começar e nem momento de acabar. Sequer haveria um novo Calabar. Só o bom e ritmado
som de macumba.
-- Você vem com a gente?
-- Vou ver. Talvez sim, quem
sabe não.
-- Então desce essa branquinha
e decide. O busão já está no horário.
-- Tudo bem, vamos lá.
Subiram os quatro, pagaram a passagem,
cruzaram a catraca, deram boa noite ao motorista (para alguns chofer) e sentaram
no fundão, perto da porta de descer. Viram as ruas e avenidas, esquinas e
faróis (para outros semáforos) passarem. Vez ou outra, o ônibus para num ponto
e sobe gente e desce gente. Uns mais e outros menos.
-- Chegando lá, é entrar na
prosa, na troça e deixar rolar a vida. Se deixarem no palco, damos uma cancha.
-- Se a resenha mudar de lugar
e os caras deixarem o bicho pegar, eu retalho meia dúzia.
-- Calma, ninguém vai entregar
ninguém. João Exu, relaxa.
No ponto desejado o quarteto
desce. O som do pagode cresce e o cheiro de manga rosa permeia a madrugada. Não
dá cinco minutos e eles estão na folia. Afônico, o partideiro convida o Trio
Candura pra dar uma deixa. Carlão da Cuíca pede a João Exu que fique na mesa a
beber e curtir o que é raiz. Mas, enquanto o furdúncio se esmera, o cabra da
mesa recebe Juliana e a vê sentar. Entre vozes e algozes que tiveram a sorte de
não ter as gargantas decepadas no amanhecer, o casal se acasala ali mesmo, sem medo
de ser feliz. Num canto, sentado solitário na mesa cercada de garrafas vazias
de cerveja, o criador da história ri de quem achava que tudo ia acabar em
tragédia. João Exu e Juliana hoje têm cinco filhos – três garotos e duas
meninas – e vivem felizes no bairro do subúrbio que Deus lhes deu. Ele é
segurança de supermercado e nunca em ninguém sequer bateu. Ela é confeiteira de
festa de casamento, batizado, bodas de ouro e velório. Ao derredor, só existe o
verdadeiro amor...
V
-- E a agamia? Você viu? Está
se tornando preponderante no mundo jovial.
-- Eles não estão errados.
Fosse eu nos tempo atrás, devia ter seguido isso aí. Mas nem sabia que isso
existia. Também, quem mandou ser admirador de Vinicius de Moraes...
-- É isso. Que merda termos
nascido há quase 70 anos. Vivíamos num turbilhão. O mundo dos anos 50/60 vieram
pra foder geral. Deixaram um sabor de mudança e levaram milhões de jovens pelo
mundo a sonhar que podiam tudo transformar. E muitos despirocaram, morreram em combate
ou calabouços, viajaram para sempre em doses de heroína e LSD. Enfim, morreram
ou ainda morrem hoje na crença do planeta justo e solidário.
-- Ou seja, um bando de otários.
-- Não. Um monte de poetas, apaixonados
pela vida e solitários. Gente a se reverenciar e eternizar no que possa ainda
existir de bom nessa bola que roda sem parar.
-- É verdade. Logo, que a
agamia conquiste mais gente para sofrer involuntariamente em si, sem proliferar
o desamor àqueles que ainda acreditam que dois é mais e melhor do que um.
-- A Terra agradecerá, ou
não...
Nas caixas de som, agora,
Marisa Monte diz que a melodia é doce nas noites de luar.
-- O pernoite é cem reais. No
crédito ou no débito?
O casal em questão, não os
amigos de bar, nu e entrelaçado, laçado no desejo saber-se-á por que, vai contra as
pesquisas e estatísticas. Apenas se ama e proclama ao mundo que tocar, alisar,
acarinhar e, até, penetrar, ainda é o melhor lugar a estar.
-- Quer saber: foda-se essa
tal de agamia! Como diriam no passado, eu quero é rosetar.
Na portaria do motel, a atendente
diz ao senhor vestido com a camisa da seleção que lá não é lugar de trazer um
jumento.
-- A Zoonoses é quase aqui do
lado. Se o senhor quiser, eu posso ligar lá.
O homem dá marcha à ré e rumina
algo que não dá para entender. No quarto, o casal num gozo igual pede mais
outro balde de cervejas para beber, viver e bebemorar.
(No fim tudo vira Leila Diniz)