sábado, 13 de julho de 2024

Ao som de Vinicius e Toquinho

 Por Ronaldo Faria

Vem, Vinicius de Moraes. Venham tardes de prazer, de fugas do mundo e viver. Vem amor que nunca se foi. Venham promessas cegas, carnavais passados, areias de pés molhados. Vem mulher da cidade, caipira ou do exterior. Venham medos e tragédias, alegrias e comédias, copos de beber saudades e prazer. Vem ilusão de ser feliz. Venham, depois e, pois, as noites mal dormidas, as anginas, as chuvas desgrenhadas.

Vem, poetinha. Venham letras e rimas, rumos e sinas, cataclismos e orgias. Vem pirotecnia do antes no fechar de cortinas do espetáculo. Venham universos de versos, versículos temerosos do pecado, incongruentes e ausentes na esquina finda. Vem corpo ereto, deitado ou tosco no tosquiar do amor. Venham conquistas ínfimas, vitórias ganhas no grito, derrotas no apito. Vem decágono que o coágulo do coração não deixa de habitar. Venham dez histórias, dez blasfêmias, dez fêmeas de nunca esquecer.

Vem, branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô. Venham goles a olhar os olhos da amada, risos de quem sabe tudo e nada, luares repletos de luzes na escuridão do céu. Vem mar em maresia plena. Venham Iemanjá, Marias, Anunciações e Carolinas. Vem próxima musa, reclusa nalgum lugar nunca visto e nem antes descoberto. Venham lençóis amarrotados, sóis alumiados, nuvens a voarem num universo largado. Vem o que tiver de vir, porque estarei, só pra variar, aqui. Venham toscas namoradas  sem muita espera, sem cair da esfera, sem acordar a fera que dorme dentro de mim.

Vem, Vinicius amoral e fatalista, fatal. Venham lamúrias que nos encontram no após do depois, fúrias da separação e da canção, unção famélica da tristeza e da melancolia. Vem morena que caminha a enlouquecer os marmanjos em seus meandros. Venham medos desprovidos de certeza, cuidados mil na rosa que há muito despetalou, visões plúmbeas de um horizonte que parece simples. Vem estrada já seguida e evitada. Venham visões polares que a íris começa a embranquecer, delírios do garoto de colchas de retalhos, alhos e bugalhos.

Vem, poetinha. Venham loucuras que o álcool dá, dádivas que a certeza da morte dão no ouvir de outro Ronaldo que era freguês de sebo como eu. Vem aquilo que tiver de ter sido. Venham corpos amorfos, cinzas esperadas, vermes que possam ter subtraído a vida e da sorte. Vem barco que ainda espera o porto de chegar. Venham mulheres cheias de saudade a esperar o marinheiro fagueiro, os presentes do Oriente, falácias que se conta quando não há nada a contar. Vem universo reverso e sagaz. Venham garimpeiros de músicas, catadores de emoções, buscadores de torvelinhas paixões astrais. 

O mundo nos espera. Ele vos espera. Em terra.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Praguejo em samba-funk

 Por Ronaldo Faria

 

Um Cavalo de Tróia se meteu na tramoia. No colo da mulher, a joia. Pra rimar, a selva tem a jiboia e no mar o menino segura sua boia.
“Alô, rapaziada, cadê aquela apaixonada tarada? Pelo visto, vamos ter mais uma noite a virar prato vazio sem mandioca! Seca na horta.”
No som alguém diz que temos de voltar à pilantragem. Mesmo se estiver à margem, com saudade ou na periferia pueril da cidade.
Nas frases desconexas, um samba zen, um imbróglio que se tem, o carro a correr mais de 200 para driblar o inoperante e errante radar.
No mar, decerto e com certeza, se a tese da travessia sob a chuva não rimar, ondas e sereias se misturam aos troços que flutuam no soprar.
No asfalto quente que queima as patas e os pés de andarilhos, ninguém teme passar pelos trilhos para sua amada do subúrbio beijar.
Na mesa do passado, cubra libre e gim com tônica estão atônitos com o casal afônico que troca línguas, olhares e toques sentimentais.
Quem rogou a praga ou mandinga o fez tão bem que nem a boa da lata consegue fazer dela um interregno em vidas proscritas e desertas.
A musa louca estrangeira de casamentos mil deve estar agora abotoada numa camisa de força ou desbotada nas madrugadas molhadas?
Afinal, raio em X acerta na mosca ou a mosca pousa resoluta, como uma filha da puta, justamente no lugar que determinará a sentença final?
Em uma semana chega 2024. Quem não conseguir segurar a onda que pelo menos se preste a cair de quatro e resistir. Algo, saibam, irá florir.
As contas que chegam e despencam feito tempero do feijão tropeiro no bolso acham que são eternas. E, voluptuosas, carnudas, são mesmo.
“E aí, rapeize, agora vai? Há décadas que diz que vai e, de repente, feito repente, não vai a lugar nenhum. O poeta errou de maternidade.”
Carioca sem oca a ferver os ovos no asfalto, uma ova! Do ovário da baiana surge a trama que parece nunca virar rap, funk e nem sequer reggae.
No batuque do atabaque, o baque da arritmia, a inóspita e sombria trilha de uma cascatinha que chega do morro e vira torno para a vida tornear.
Na sala de aula, a opulência da morena vinda de outros mares, alhures lugares e olhares. Na lousa, Karl Marx vira cupido de prenúncios do Núncio.
Derrubar o morro ou não? A estrada vai chegar? De que adianta com o “progresso” querer prosear? “Senhores motoristas, vamos nos engarrafar.”
O vento que venta no ventilador daqui não é o mesmo que joga o bafo quente do ventilador daí. Logo, nos ventilemos para não ventilarmos mecanicamente.
Fernanda Abreu é como uma biografia que a abreugrafia daria se tivéssemos seguido os maços e descompassos que nos brandiam vitoriosos nas orgias.
“E aí, galera, em 2024 vamos cruzar a esfera?” O vendedor de pacotes turísticos tenta descarregar a mais rasteira quimera. Acho que irá se foder...
“Diz pra nós, sangue bom: você preferia que voltasse o grapette, o crush, o mineirinho ou apenas o velho, gelado, achocolatado e bom chicabon?”
Tempo bom em que o pipoqueiro que estourava milho defronte da escola podia vender o Zorro, geleia colorida e amendoim sem cocaína e afins.
Agora fodeu: gastei o dinheiro do barbeiro em doce. Pra quem jogo a culpa? Na inflação que chegou no golpe de 64 ou no dono comunista da quitanda?
 
(Frases dedicadas à vascaína Fernandinha Abreu)


terça-feira, 9 de julho de 2024

Natal de raiz

 Por Ronaldo Faria


Na roda de samba o Papai Noel dança com passos loucos a dobrar os joelhos. Após os festejos com copos mil de cerveja, cachaça e até anis, mesa farta, batuque e cabrochas seminuas, o importante é esquecer que Jesus pediu a Deus de presente torrar os habitantes da Terra ao Sul e congelar aqueles do Norte. A todos, a morte, de insolação ou hipotermia. Para ele, tanto fazia... Por isso, o Papai Noel cover daquele que se esquece das crianças mesmo em prece queria apenas rodopiar e brincar de sonhar.
Sonhar com o aumento do salário que não vem, a condução refrigerada que não tem, as contas que caem aos borbotões deixando de chegar. Para Noelton Ramos da Silva, nascido durante a procissão de Ramos, quando sua mãe foi levada com urgência à casa da parteira mais próxima, o mínimo necessário era deixar de ser operário. No calvário matinal, porém, tudo isso parecia somente delírio casual. O importante agora é dançar, suar, derramar um gole pro santo e esquecer a pindura no boteco do João.
Uma ou outra criança privilegiada brinca com carrinho, bola ou boneca doados por um vereador que espera no próximo ano se reeleger. Outras que chegaram atrasadas à distribuição olham com inveja ou choram por mais um Natal de mãos vazias e dor. O som que sai do repenique, do cavaquinho e do pandeiro, da caixa de fósforo que, volta e meia, para de acompanhar e um cigarro acender, é o que dá o tom. Depois das Tordesilhas vencidas, vem o som de Palmares na esperança do sorriso mesmo que breve.
Do céu, o sol declina em centígrados aos milhares acima da média o drama que já virou comédia. Na trama que existe nas ruelas das favelas e comunidades, a chama desprovida de vida, ávida de mais outra vida. “Jéssica, traz mais umas várias!” Com o Natal antevendo logo depois o Ano Novo e um Carnaval que não vai demorar, o importante é vadiar. Não esquecer de fechar a tranca do lar e ter a esperança de que a pança não vai murchar. “Jéssica, manda o Ednaldo botar sem dó mais espetinhos na churrasqueira!”
Para Noelton, Papai Noel por poucos dias no shopping que normalmente não entra, o que vale agora é cantar alto, sambar de bota de salto, encher de esperança o saco vazio que descansa na escadaria da laje. Uma ou outra pomba faz barulho e arrulho perto das caixas acústicas e Zezinho tem liberação do dono do morro pra meter-lhes estilingada. Lá embaixo, onde o som é de jingle bell, tudo parece diferente, ausente, intermitente. Graças à geografia, do alto vê-se mais de perto o trenó que a tracejada derruba sem dó.
 
(Ao som do pagode ao vivo)


segunda-feira, 8 de julho de 2024

Muito prazer Bruna Caran

 Por Edmilson Siqueira



Eu não conhecia Bruna Caran, mas isso é coisa de alguém já na terceira idade que se fechou um pouco no jazz e nos grandes nomes brasileiros que começaram nos anos 60 do século passado e hoje estão com mais ou beirando os 80 anos. Ou já morreram. Claro que conheço bastante gente nova que fez ou faz coisas boas, mas são raros aqueles que chegam com a mesma qualidade de gerações passadas. Sei também que tem gente que eu nunca ouvi falar e que vendeu muito mais discos que os grandes do passado. Mas, para mim, número de vendas de disco nunca foi referência para a qualidade, no Brasil e, aliás, na maior parte do mundo. 
Por essa e outras eu não conhecia Bruna Caran, uma intérprete que me surpreendeu com o excelente disco "Afeto e Luta", onde ela canta somente músicas de Gonzaguinha, esse cantor e compositor do primeiro time da MPB que, por uma desses azares da vida, nos deixou cedo, vítima de um acidente de carro.
Fiquei sabendo da existência dela porque recebi, de uma amiga, a Beth Ribeiro, um videozinho no WhatsApp onde ela conta a origem da música "O que é o que é?" o sambão de Gonzaguinha que ganhou as paradas e até hoje, depois de mais de 40 anos (foi lançado em 1982), ainda é sucesso por aí, sendo tocado e regravado constantemente. E merecidamente, diga-se, porque é delicioso.  
Para quem, como eu, não sabia da origem dessa música, conto aqui rapidinho, conforme o depoimento da Bruna: Gonzaguinha mandou cartas para seus fãs com uma pergunta: o que é a vida pra você? Recebeu uma enxurrada de respostas, todas preservadas até hoje pela irmã do compositor, que é produtora artística. A carta que ele mais gostou era escrita com uma letra infantil que dizia que a vida para ele, um garoto de oito anos, era brincar, andar de bicicleta, e que, de qualquer jeito, a vida era bonita. Então Gonzaguinha resolveu abrir o samba, a capela, dizendo que prefere ficar com a resposta das crianças, a vida é bonita...



A partir do vídeo, fui saber quem era Bruna Caran e descobri que sua carreira já tem estrada. Nascida em Avaré (SP), filha de uma família extremamente musical, começou cedo as aulas de piano e canto. Aos nove anos passou a fazer parte dos Trovadores Mirins e em seguida dos Trovadores Urbanos. É formada em Música pela Unesp desde 2010 e toca, além de piano, violão, cavaquinho e acordeom. Não bastasse tudo isso, quando cresceu se tornou uma mulher extremamente bonita. Tanto que trabalhou na tevê como atriz.
E já gravou muita coisa. Foram quatro CDs antes desse "Afeto e Luta", com as músicas de Gonzaguinha, que agora deve se tornar um DVD, como "Alívio", um belo DVD gravado em 2021, que já contém o famoso samba de compositor.
A gravação de um disco inteiro com músicas de um artista que marcou época por seu talento que, com certeza, se vivo fosse, seria um nome ainda muito maior da MPB, é uma dessas esperanças que a gente acaba tendo diante de uma realidade onde a boa música passa longe dos ouvidos da maioria do público, que é massacrado por sucessos instantâneos que desaparecem no ano seguinte, junto com seus "cantores". Discos como "Afeto e Luta", além de nos dar muito prazer ao ouvir, incentivam bons compositores a continuarem tentando um lugar ao sol e isso é bom para a música e para a nossa cultura.  
"Afeto e Luta" é muito bonito do começo ao fim. No YouTube você pode ouvi-lo inteiro: https://www.youtube.com/watch?v=nesBahHE0Mc. E o CD está à venda por aí, nos bons sites do ramo.
 


Segue a lista das músicas, com ótimas participações especiais entre parênteses:
1. COM A PERNA NO MUNDO 
2. VIVER, AMAR, VALEU
3. SANGRANDO
4. EXPLODE CORAÇÃO
5. BELO BALÃO
6. SEMENTES DO AMANHÃ (Participação de Leila Pinheiro e Nanan Gonzaga)
7. EU NEM LIGO (Participação de Zeca Baleiro)
8. REDESCOBRIR (Participação de Zé Renato)
9. É (Participação de Preta Ferreira)
10. CAMINHOS DO CORAÇÃO - Música incidental: A Vida do Viajante de Hervé Cordovil e Luiz Gonzaga - (Participação de Renato Braz).

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Farelos de Emicida

 Por Ronaldo Faria

 

Farelos de vira-latas caramelos se misturam com o inverso do universo onde o verso sai trôpego e trágico. Atávico, cármico, delirante, procrastina o que, numa tina vazia e entregue à azia, se enche de vinho e rotina na retina. Nesse plano, onde mapas e rotas viram restos no reto discreto projeto que nunca está ereto, o caminho é torto e difuso. Confuso. Na junção em que a oração musical torna tudo carnal e Carnaval fora de hora, o final em que milhares de letras e notas norteiam a poesia e o desmazelo que chegam sem zelo.

Farelos de anos que repousam quietos e tétricos, onde o profano é insano e a magia se volatiliza em frágeis momentos que os tormentos brincam de orações e orgias. Nas lamúrias do bêbado caído nas suas ruas sem esquinas, no flagelado que morre gelado no calor do inverno, a odisseia de navegar mil mares secos e milhares de ressequidas e esquecidas bocas vermelhas e tetas febris. No agora que já virou depois, presente cheio de passado, o amargo saber que há nessa história tanto de mim e pouco de você.

Farelos de farofas sem perfume, oratória da amante que diz esperar que agora, no presente e no passado, role na metrópole a orquestra de gaitas de fole. No rolê emblemático que sobrevive há décadas na roda da Terra a rodar sem sair do lugar, centilhões de fonemas e temas, loucuras e beijos e perdas que perdigotos derramaram à saliva salva nos lençóis. A cantar, o menestrel de bordel deseja todas coxas. No olhar negro de vilipêndios e compêndios, o largar que se esparrama nas tramas dos loucos tremas mortos.

Farelos de logo mais é hora de parar de escrever e viajar, no garimpar de vírgulas e pontos, consoantes e vogais, coisas morais e amorais. Sevícias e vícios desconjurados e descomunais. Pelos canais dos rios e mares, veias que correm em sangue exangue, volúpias e coisas de quem se acha sagaz, o mistério da busca limítrofe entre a loucura e a paz. Nas avenidas desconexas que levam a nenhum lugar, casais juntados pelo amor tentam chegar e se achegar para na essência da madrugada doentia fazerem a vida desabrochar.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria


Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz falta, como se o destino fosse o segundo de um tiro de revólver a revolver o que o coração não deixa sumir no sumidouro que é cada dia sem o bem-querer.
Saudade, essa maldade malfadada peluda e pungente, que destrói a essência da gente. Que não nos deixa mais dormir em paz e se apraz por nada ser. E se transmuta muda a se rever em olhares negros e iguais de milhares de pixels que os olhos juntam mistérios e sofreguidão.
Saudade, palavra nossa, brasileira, rasteira, veemente e dormente, aos seres doentes à busca daquilo que se deixou perder. Iniqua e inócua no dicionário que nenhum vocabulário dá. Na margem da crença, a bênção da espera de juntar vidas e cinzas num único e efêmero amém.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Pixinguinha, 100 Anos

Por Edmilson Siqueira 


Não, Pixinguinha não faria 100 anos neste ano. Já teria feito em 1997, ele que nasceu no fim do século 19, em 1897. O título desse artigo se refere a uma homenagem feita a ele, exatamente naquele ano, com o lançamento de um luxuoso álbum, com dois CD, um magnífico encarte e belas capas duras. Coisa de primeiro mundo, rara por aqui até hoje.
Talvez se conheça pouco da obra desse grande mestre da música brasileira. Você citaria, de cabeça, cinco músicas dele? Além de Carinhoso, Rosa e Lamentos, fica difícil, né? (aliás, se tivesse feito só essas três já teria sido genial). Mas Sérgio Cabral, o pai, jornalista, biógrafo e grande conhecedor da música popular brasileira, considera Pixinguinha um dos três maiores nomes da nossa música. 
Pois ele e Hermínio Belo de Carvalho são os autores dos textos que acompanham a luxuosa edição dedicada a Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha, compositor, arranjador, maestro, professor, flautista e saxofonista. E bom em tudo isso. 
"Ago Pixinguinha - 100 Anos" é o nome do álbum, um projeto artístico e uma produção de Herminio Belo de Carvalho que é nada menos que pesquisador, escritor, autor de letras memoráveis da nossa música (inclusive parcerias com Pixinguinha) e que dedicou toneladas de linhas ao mestre, sempre louvando sua genialidade.
As gravações das 20 faixas dos dois CDs, com exceção das gravadas ao vivo, foram realizadas nos estúdios da Som Livre e reuniram times fantásticos de músicos, arranjadores e cantores. O resultado foi um painel precioso da obra de Pixinguinha, passando tanto pelas músicas com letras antigas e com algumas atuais, bem como com as instrumentais, que revelam toda a qualidade e complexidade das composições de Pixinguinha.
Como se não bastasse todo esse material de primeira qualidade, o encarte que traz um lindo texto de Hermínio e uma apresentação deliciosa escrita por Sérgio Cabral, é ocupado, em sua maior parte, por uma enorme entrevista com Pixinguinha, onde ele conta tudo que se lembra de sua vida, inclusive o ano que passou tocando, com seu conjunto, na Europa, mais precisamente em Paris. Sim, os franceses apreciaram também a genialidade de um grupo de músicos brasileiros no início do século passado, de novembro de 1921 a abril de 1922. 
Como menciona o ótimo site "Brasilian Fotográfica" (https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?tag=shererazade-dancing): "Foi o primeiro conjunto brasileiro a apresentar na Europa a música urbana produzida no Rio de Janeiro na época. Tocaram durante os seis meses que ficaram em Paris, na época a capital cultural do mundo, choros, maxixes, polcas, tangos brasileiros, sambas, lundus, batuques, valsas, cateretês, emboladas, cocos e toadas sertanejas. Chegaram em 11 de fevereiro, no porto de Bordeaux, na França e foram recepcionados na Gare d´Orsay, em Paris, no dia seguinte, pelo Duque e pelo jornalista Floresta de Miranda, secretário particular de Guinle. Nos meses seguintes, como Les Batutas, seriam atração fixa numa badalada casa noturna de Paris, o dancing Shéhérazade, na Faubourg Montmartre, 16." 



A entrevista é, na realidade, uma síntese do depoimento que Pixinguinha deu ao Museu da Imagem e do Som do Rio em 6 de outubro de 1966 e 23 de abril de 1968, depoimentos esses que envolveram como entrevistadores, o próprio Hermínio, Cruz Cordeiro, Ilmar Carvalho, Ari Vasconcelos, Hélio Marins e Jacob Bittencourt (Jacó do Bandolim), e tiveram a direção de Cravo Albin, diretor do Museu. 
 O depoimento, para se ter uma ideia da abrangência, começa com Pixinguinha explicando seu apelido que, na verdade, era Pizinguim, que foi dado pelo sua avó, africana, (numa época de epidemia no Rio, ele contraiu a doença chamada "bexiga" e o apelido virou Bexiguinha, depois Pexinguinha que ele não sabe como virou Pixinguinha) e vai até seus sentimentos de completar 70 anos e ter esperança de viver mais "uns dez anos pelo menos", o que não ocorreria, pois ele morreria cinco anos depois do segundo depoimento, em 1973.  
Mas é um depoimento sensacional, não só pelo que diz o mestre, mas por pelo fato de seus entrevistadores serem todos grandes conhecedores da vida e da obra de Pixinguinha.
Os dois discos são de dar água na boca do apreciador da boa música brasileira. Com arranjos modernos, ótima gravação, as músicas contam com a fina flor da interpretação brasileira. Segue a lista (entre parênteses estão os parceiros de Pixinguinha, alguns dos quais colocaram as letras muito depois das músicas feitas ou mesmo depois que Pixinguinha já ter morrido):
 
Disco Sambando, Chorando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Nana Caymmi
2) Mundo Melhor (com Vinicius de Moraes) - Alcione
3) Rosa - Caetano Veloso
4) Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Chico Buarque e MPB4, na melhor gravação cantada dessa música
5) Fala Baixinho (com Hermínio Bello de Carvalho) - Maria Bethânia
6) Cochichando (com João de Barro e Alberto Ribeiro)- Zezé Gonzaga e Eduardo Dusek
7) Gavião Calçudo - Zeca Pagodinho
8) Um a zero (com Benedito Lacerda e Nelson Ângelo) - Arranco de Varsóvia
9) Vou Vivendo (com Benedito Lacerda e Hermínio Bello de Carvalho) - Cristina Buarque e Sérgio Ricardo
10) De Mal Pra Pior (com Hermínio Bello de Carvalho) - Paulinho da Viola
11) Página de Dor (com C. Nunes) - Ney Matogrosso
12 - Benguelê/Yaô (com Gastão Viana) - João Bosco
13) Ingênuo (com Benedito Lacerda e Paulo César Pinheiro) - Simone e Baden Powell
14) Patrão Prenda Seu Gado (com Donga e João da Bahiana) - Fundo de Quintal
 

Disco Tocando, Tocando
1) Carinhoso (com João de Barro) - Tom Jobim
2) Rosa - Hermeto Paschoal
3) Tapa Buraco - Radamés Gnatalli e Camerata Carioca
4) Um a Zero (com Benedito Lacerda) - Raphael Rabelo e Paulo Moura
5) Ingênuo (com Benedito Lacerda) - Radamés Gnatalli, Seu Sexteto e Edu
6) Naquele Tempo (com Benedito Lacerda) - Baden Powell
7) Marcelo Quer Água - Camerata Carioca
8) Pula Sapo - Pixinguinha
9) Urubatan (com Benedito Lacerda) - Pixinguinha
10) O Gato E O Canário (com Benedito Lacerda) - Água de Moringa
11) Samba do Urubu - Pixinguinha
12 Lamentos (com Vinicius de Moraes) - Jacob do Bandolim e Época de Ouro
13 Proezas de Sólon (com Benedito Lacerda) Jacob do Bandolim e Época de Ouro
 
O álbum está à venda nos bons sites do ramo com preços variados. E podem ser ouvido na íntegra em https://immub.org/album/ago-pixinguinha-100-anos.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria


O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento quente que voa e revoa entre as galinhas e porcos que fugiram do facão e das mesas adstringentes. As lamparinas acesas se sobressaem na escuridão em derredor. Há pouco lugar para a dor. No alforje do homem suado que volta de aboiar o gado reticente, o presente. Na igreja, beatas trocam orações e dedos a cruzarem as contas do terço que passam rápidas a pedir esperança e chuva tardia. Logo mais será dia 25. O dia que, dizem, nasceu um Jesus. Num lugar quase igual a esse do sertão: pobre, esquecido do mundo, largado à sua sina. Logo a solidão se dará à remissão de cada um, em nós.
Daqui a uma semana, pensava Florêncio, montado no cavalo que seguia arfando os últimos metros da labuta animal, o ano vira. E o mundo vira outro mundo. Ou, como já disse um poeta, Viramundo. E tudo promete renascer: esperanças, crenças, as tranças de Maria, acalantos, prantos, despojos, jogos de azar. Mas, infelizmente, na frente da realidade, as contas na venda do Seu Antonio, a falta de comida no prato, o afago demente, a mente submissa às suas agruras, as tardes de tristeza pungente de cada gente permanecerão, ou não. No alpendre, Maria sorri seu sorriso de branquear a lua mais luzidia. E abre os braços para abraços e tratos de corpos que fluirão em suores na sentença do amor maior.
Hoje, na insensata lucidez que a loucura dá, Florência sonha com as flores que, decerto, seus pais anteviam para ele ao lhes dar tal nome. Mas, como no sertão há florescer? De onde tirar a água que dará sobrevida aos caules carcomidos e finos que não dão nem comida pra formiga? Talvez agora essa seja a menor das indagações. As próximas ações são de entrega àquilo que a vida determinou como sandice ou louvor, porvir de si mesmo. O momento, no lamento da vaca a ver seu bezerro morrer, é rever Maria, fazer de segundos a mais a tresloucada e demorada orgia, acreditar que vale crer. Em algum lugar, no homem vestido de vermelho quente no calor das terras tropicais, os sinais se evaporam a mais.


sábado, 29 de junho de 2024

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria


O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. Afinal, como disse o presidente louco, se fosse sólido, comê-lo-ia. Afinal, para quem comia Eloá, o que viesse era lucro. E lucrar do nada já é um ganho a se fazer e parafrasear.
Mas os bares parecem que fecharam mais cedo, no enlevo do final de mais um ano. As pessoas, ao que parece, preferem se tornar misantropos, seres amorfos e trôpegos, quando o ano está para dar o último suspiro. Como o foi o derradeiro suspirar da filha amada num leito frio de alumínio.
Mas, afinal, para que servem os bares, esses espaços de lumiares e luminárias que se prestam para o garçom cobrar o devido pelas loucuras e angústias, augúrios, tragicomédias vespertinas para as anginas de gente que sobrevive na sobrevida que a chuva que vem com o Verão que se derrama na súbita trama?
Nas mesas que a volúpia da loucura traz para embriagar a saudade que nada mais traz do que os erros cometidos e tardios, vadios, banidos, os seres múltiplos e metamórficos se perfazem em presto no resto da sanidade atroz. No caixa, o sorridente Genésio nem lembra mais que já foi rima para mulher do vizinho.
Contudo, porém, o bar está cerrando as portas que não existem e molham os pés dos raros bebuns que ali resistiram e persistiram. A madrugada que daqui a pouco se tornará dia, torna o torno que cria novas formas numa fórmula molecular. E brinca de esquecer a vida, batuca na cuca e aconselha um “vá dormir”.
No mundo que parece se entreolhar, o segurança maior que o pé direito que se endireita no bar, mostra que é hora de “transitar”. Quem, na sã consciência que ainda resta e presta, pensará desigual? Estrada retomada, chapiscos de parede mortal a riscar os braços, abraços que não chegarão no dormir do então.
Sentimental, diríamos um quase débil mental, Hermínio, eflúvio como massa corpórea, chega ao lar. Lá fora, no aforismo que uma baleia nunca conseguirá engolir, o mundo persiste e insiste em inexistir. Quisera ele se chamar Jonas. Ao menos seria bíblico. No istmo da saudade, rio e mar esperam sobreviver antemão.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sá e Guarabira

 Por Ronaldo Faria

Um baseado chega naquilo que se baseia ser a ínfima realidade certeira e brejeira. E faz o mundo voar, volatizar, traceja tempos e têmporas, refaz passado e realidade, átimos e átomos de um pensar esfarelado. Nossas lembranças, nas reentrâncias desmedidas, são apernas coisas escondidas num pedaço de cérebro que logo se desfará. No lugar, um ilusório brincar de saber que tem que ser agora porque a sanidade está a derrear.

Genovésio, longevo ser que pensava morrer há vinte anos, vive a noite como se ela fosse um açoite desses que sangram nas costas um sangue que desce sem parar. Para ele, elástico nas formas de escrever, existe o limite da essência do nunca voltar. De não poder refazer erros de outrora, quimera ilusória, aurora que nunca surgiu. A urgir, a urgência de ser. Nas estradas demarcadas e voláteis, algo que ficou e ninguém poderá tirar.
No mundo daquilo que hoje se sabe, no pó fortuito de toda a estrada, a imaginária e insana realidade de tempos no atrás de atrozes, nas artroses do pensamento e do lamento, do alento descompassado da flor que nasce sombria no fulgor. No fundo de uma angústia, a dor. A insana chegança de querer transformar passado em presente redentor. No mundo abstrato, o destrato que um lampião de querosene hoje se faz em detrator.
Lembranças surgem e emergem dos cântaros, correm nos poucos neurônios que existem e prestam são, sobremaneira, maneiras de acreditar que há como eternizar momentos de alentos para o que  virá. Na madrugada, canto de sabiá. Na insurgente crença que a gente traz, Genovésio faz seus versos para ninguém. No apartamento ao lado chora um neném. Quando ele para, a avó diz amém. Do futuro, ninguém sabe o que vem.

terça-feira, 25 de junho de 2024

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria


A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira. Na peneira, Januária prepara algo para dar saciez à fome que o esfomeado de emoções e paixões tem desde o dia em que nasceu. Feito Orfeu, dorme na ilusão de não acordar sob pesadelos tardios em fastios de quadrantes que nem os maiores e melhores amantes podem lembrar ou dar. À Virgem Maria, há pouco o que prometer. O terço há muito deixou suas contas por conta dos cantos sob os móveis para onde correram após se partirem. Para o restante de nós, no atroz perceber, milho aos pombos!
A cantoria se apercebe que quando a voz calar o fim logo chegará. Não tardará esse momento. No alento de se crer no Alentejo nunca visto, o tormento que o cantador traz na sua dor. O restante, pouco apraz. Talvez um desejo fátuo na fatalidade que existe entre aquilo que se quer e o que pode vir no viés. Talvez uma vez mais a acreditar que detrás da felicidade há muita coisa a se perder. Saudade premente, futuro nunca urgente, realidade pungente. Coisa de demente. Gemente sem semente a brotar. No clarear da picardia e falácia que é a vida, a inaudita e maldita inocência que a essência da poesia vivida teima e traz.
A bolsa de couro esquecida numa redação escolar, a sensação do viver e recordar, transbordar de sílabas e letras as iletradas certezas que um imaginário qualquer. A inóspita contramão de alguma fugaz imensidão, dessa que só se descobre depois que a embriaguez se faz canção. Na contrapartida urdida de ardida e tardia metonímia (seja lá o que isso for), a sintonia brejeira da perfídia. O canto que em cada canto escondido se faz acalanto, vira pranto. E pranteia o panteão frágil e fugidio que nos chega e se aconchega em saudades que o tempo faz fugir para que a dor que adormece o coração semeie celeumas do lado de lá do oceano.


sábado, 22 de junho de 2024

O rock, o blues, o pop e o zydeco de Dr. John

 Por Edmilson Siqueira 


O disco foi gravado em 2001, na Califórnia, pela EMI, sob licença da Blue Note Records. O artista? Malcolm John "Mac" Rebennack, Jr. Se eu mudar o nome para Dr. John você conhecerá? Talvez sim - se for mais velho - talvez não, se tiver menos de 40 anos. Pois saiba que Dr. John foi um cantor, compositor, pianista e guitarrista norte-americano,  cuja música combina os gêneros blues, pop e jazz, assim como boogie-woogie, rock and roll e zydeco.
Zydeco? Eu não sabia o que era. Descobri no Google: "Zydeco é um estilo de música folk norte-americano originado no início do século XX no sudoeste da Louisiana por falantes do creole. Mistura blues, rhythm and blues e música local dos povos crioulos e nativos da Louisiana. Uma das características do gênero é a presença constante do som do acordeom."
Agora, sabendo o que é zydeco é fácil deduzir que Dr. John nasceu em New Orleans, em novembro de 1941 e morreu lá mesmo, em junho de 2019, com 77 anos. E se você, como eu, pouco conhecia (ou nada) sobre o Dr. John, fique sabendo que ao longo de sua carreira, que começou nos anos 50, ele ganhou vários prêmios Grammy em uma variedade de categorias, incluindo melhor performance vocal de jazz, melhor performance instrumental de rock, melhor álbum de blues tradicional. E, em 2001, Dr.John recebeu outra homenagem ao ser introduzido no Hall da Fama do Rock and Roll.
Ele gravou muitos discos a partir de 1968. Alguns anos depois, aconteceu seu primeiro sucesso: "Right Place, Wrong Time". E não parou mais. Em cerca de 50 anos de carreira, gravou 25 discos, misturando estilos das raízes que a cena musical de New Orleans sempre lhe inspirou. Segundo a crítica norte-americana, "ele compartilhou e moldou continuamente a tradição do R&B de Nova Orleans ao longo das décadas com seus inúmeros álbuns e é considerado um ícone pioneiro do estilo local de R&B."
Não é pouco para um branco nos EUA. O disco que tenho dele, aquele gravado em 2001, é Creole Moon e o que escrevi aqui sobre ele - e muito mais - se confirma nas 14 faixas, das quais nove são só dele, quatro feitas com parceiros e apenas uma de outros compositores. 
O encarte do disco é generoso. Nele, depois de um texto de apresentação, o próprio Dr. John explica o que, para ele, é cada uma das músicas, num inglês meio complicado para quem está acostumado com a língua onde a influência dos ingleses prevaleceu. 
Só pra ter uma ideia, a apresentação começa assim: "Musta been a year ago...", e no encarte tem um pequeno glossário explicando alguns termos que devem estar nas músicas, como "brim" que significa boné ou chapéu; "jaw-jerk" (falar) ou "sprout (bebê ou criança) entre outras.
Mas o que rola mesmo nas 14 faixas é muito rock, blues, um pouco de jazz, tudo da mais alta qualidade. A lista das músicas (e não se preocupe se você não souber traduzir algumas delas): "You Swore"; "In The Name Of You"; "Food For Thot"; "Holdin' Pattern"; "Bruha Bembe"; "Imitiation Of Love"; "Now That You Got Me"; "Creole Moon", "Georgianna"; "Monkey & Baboon"; "Take What I Can Get"; "Queen Of Cold"; "Litenin'" e "One 2 A.M. Too Many". 
Ah, na verdade, Dr. John é um personagem baseado em um praticante de vodu do século 19, chamado Dr. John Monatee, do Senegal. Foi primeiramente adotado por Ronnie Barron, parceiro de Rebennack no primeiro grupo que teve. Após Ronnie deixar a banda, Malcolm Rebennack assumiu o personagem que moldaria sua vida e carreira. 
Quem quiser ouvir o disco todo - e de graça - basta acessar no YouTube: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lljlV8D4NP57di5x1w7Q6aAIeRz8ENKpc .


sexta-feira, 21 de junho de 2024

Prosa de violão no sertão

Por Ronaldo Faria


O violão proseia o dedilhar dos trastes que misturam saudade e hastes que nunca se sabe onde poderemos hastear. Nas mãos do poeta e profeta musical, a certeza de que há mais na vida do que a morte, o caos e a cal.
Na inexistente e ausente barbárie que o trinado do pássaro que sabe logo morrerá sem a árvore que é o seu lar, a reza que a perfídia faz prosear. No sonho do maior sonhador que transmite em si a própria dor, o torpor.
Quem sabe a sabedoria do povo tenha se perdido no cândido prosear daquele que sabe que nunca terá um lugar pra se largar. O lagar é o ultimato dramático que o apático dá ao porvir de mais um dia que termina em sua própria sina.
Mas, mesmo assim, o violão clareia a noite, faz pernoite nos corpos dos amantes arfantes a viverem suas poentes árias nas camas de madeira ou algo que se faz. Do alto, altaneira, a lua traz a ilusória e dormente, infinita, paz.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Aos 86 anos de Elomar

 Por Ronaldo Faria


No céu onde uma chuva forte promete em nuvens escuras trazer um pouco de vida remida, a crença das músicas e modinhas, árias e animais. Animais que irão parir crias novas e renovar a esperança tardia de que nesse mundão qualquer homem e mulher têm lugar. Coisa que o violão dedilhado feito fado sertanejo traz. E a voz do cantador, encantador de um povo que reza às próprias feridas para que virem plantas em ermidas para as preces chegarem, ecoa no fundão que existe à existência de si mesmo.
Nas incelências que as beatas de preto rezam, cantam e choram, o oratório de fazendas construídas no desejo de uma família gerar. E criar crias de filhos e rumas de netos, bisnetos, quiçá. Em novas gerações, unções de pó e povos prestes a se acabarem em caminhões de pau de arara numa capital do sul qualquer. A mulher, embuchada, largou seu punhado de nada, a enxada, as galinhas e bodes, o alforje do cavalo velho e manco. Agora está a seguir contrita e triste para parir um novo rebento noutro lugar.
Nas esquinas cretinas que surgirão cheias de carros, poluição e pobreza, a destreza de esperar sobreviver feito passarinho que voa sem saber onde poderá pousar. Talvez um barraco de madeira usada em arquitetura famigerada e tragada nas cachaças que Severino irá tomar. Senão, um espaço parco e progenitor de mais Severinos que caminharão trôpegos e perdidos nas avenidas tresloucadas e desmedidas de poucas vidas. Mas, como Jesus pregou, venham a mim criancinhas. Depois, morram como tiver de morrer.
No tanto de concreto discreto que ainda sobra no meio de tantas coisas malfadadas, um pássaro azulão, desses que infestam o sertão, paira triste e natimorto num lugar que não foi feito para ver a paixão. Da calçada calcada em concreto e falta de afeto, um homem pede esmola para deixar seu futuro quem sabe chegar. É Severino, agora um trapo daquele que fugiu do calor inclemente para se transformar num indigente então. Hoje ele sabe que devia ter ouvido o sermão do padre que mandava o diabo desvencilhar.
Nalguma trilha de viela onde mal passa uma alma, um louco da cabeça vaticina que a sina do retirante é ser restante de alguma coisa que nunca acontecerá. No universo do verso do repentista ou do cantador e poeta de cordel, reverso da alegria que nem a sangria da nova filha trará. No ponto de ônibus, lotado feito carcaças de bois e vacas a morrerem de sede e dor, boiada de seres que deveriam ser humanos só rumina. Na verdade, aqui, longe da alegria, pouco há que se fazer no refazer da eira que nunca foi beira de mar.


terça-feira, 18 de junho de 2024

Anita O'Day, Billy May e Cole Porter: um luxo só

 Por Edmilson Siqueira

Ela não é muito conhecida no Brasil, mas nas décadas de 40 e 50 do século passado, era uma das mais respeitadas vozes do jazz dos Estados Unidos. E devia ter seus fãs por aqui também. Morreu em 2006, aos 87 anos. Poderia ter vivido menos, pois durante um bom tempo teve os famosos "problemas com drogas", que, aliás, lhe deram o apelido de "Jezebel do Jazz". Mas foi uma das grandes cantoras, a ponto de alguns críticos a situarem ao lado do trio sagrado formado por Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holiday. Não era pouco para uma branca entre as grandes cantoras negras dos EUA.

Anita O'Day começou a gravar em 1947, frequentando, como vocalista, orquestras famosas (Gene Kruppa, Stan Keaton) e só parou alguns anos para fazer excursões pela Europa com um trio. Deixou um legado de quase 40 discos com músicas de todos os mais importantes compositores dos EUA. 
O CD que tenho dela, muito bom por sinal, é uma compilação só com músicas de Cole Porter. São quinze faixas da fina flor de um dos maiores compositores que já andaram lá pelas terras de Tio Sam. E, para botar uma cereja no bolo, Anita O'Day está, no disco, ao lado de Billy May, compositor, arranjador e trompetista que, claro, foi o responsável por todos os arranjos. 
O CD é uma cópia do LP do mesmo nome, mas com uma vantagem: os recursos da nova mídia proporcionaram a adição de mais seis músicas além das doze originais. Das seis, as duas últimas do disco são gravações das duas primeiras com novos arranjos. Um luxo. 
Gravado em 1959, o disco foi tão bem-sucedido que, no ano seguinte, os dois repetiram a dose gravando outro disco com músicas de um único compositor. O escolhido foi Richard Rodgers. Pra quem não conhece, Rodgers escreveu músicas para mais de 40 peças de teatro e incontáveis sucessos que hoje são clássicos da música dos EUA, como "Blue Moon", "My Funny Valentine", "This Can't Be Love" e muitos outros. Qualquer dia compro esse outro CD, se encontrar por aí, e comento aqui. Mas hoje o papo é Anita O'Day e Billy May com Cole Porter.
As dezoito faixas, como já disse, representam a nata desse grande compositor e quase todas se transformaram em standards do jazz. Como o disco foi gravado em 1959 e Porter morreu em 1964, o repertório escolhido abrange praticamente toda sua carreira de compositor, pois há músicas de 1929 até 1955.
Os arranjos são perfeitos. Como Billy May, além maestro e arranjador, era trombonista, as participações dos metais são ótimas e dominantes ao longo do disco.
E pra provar que é tudo coisa fina, na voz suave e marcante de Anita, aqui vai a relação das músicas escolhidas:
Just One Of Those Things (de 1935), Love For Sale (1930), You'd Be So Nice To Come Home To (1943), Easy To Love (1936), I Get A Kick Out Of You (1934), All Of You (1955), Get Out Of This Town (1938), I've Got You Under My Skin (1936), Night And Day (1932), It's Delovely (1936), I Love You (1944), What Is This Thing Called Love? (1929), You're The Top (1934, My Heart Belongs To Daddy (1938), Why Shouldn't I? (1935), Fom This Moment On (1953) e as duas últimas- Love For Sale e Just One Of Those Thing - com arranjos diferentes.   
Encontrei o disco para ser ouvido no YouTube gratuitamente   (https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kzudE24QIipyN2GeZDzqBqD-u1qPs_l4Q) mas só com as doze músicas do LP original. Já no Mercado Livre ele está à venda (usado - 80 reais) com as 18 músicas.



Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...