terça-feira, 15 de abril de 2025

No arco-íris irado

 Por Ronaldo Faria

 


Branco no preto ou preto no branco? Tanto faz! Na efeméride das cores apenas o amor se faz. E se algo se perfaz no infinito painel de cores que percorrem quem vive entre a sanidade e o Pinel, faça-se ou foda-se!
 
Gerúndio (esse foi o nome que o pai colocou na criança por achar bonito) acordou na madrugada se perfazendo de acolhimento e sentimento. “Quem sonha com jumento joga no burro?” – pensou. Na rua – o apartamento (apertamento para a realidade) ficava no primeiro andar de uma avenida barulhenta e poluída – os carros voavam colados no asfalto. Volta e meia, meia na volta, um ônibus parava no ponto para despejar trabalhadores cansados e suados na busca de tentar reviver. Entre seres de luzes ofuscados na fumaça do cigarro e falácias que o profano enaltece nas sentenças efêmeras da vida, Gerúndio vai tentar esquentar o arroz de três dias passados com um ovo sabe-se lá de quando. “Como diria o poeta, não põe no meu. Coloca no do Abreu”. A fome há de passar, mas e a saudade? A maldade da outra, louca, a desvanecer seu amor numa esquina qualquer como toda e qualquer mulher? A quimera que vira via transversal e letal para quem só sabe amar à beira-mar, onde irá? Gerúndio, estupefato e banal, no jazigo ainda vivo que não tem nem sete palmos acima das pedras portuguesas, faz o prenúncio do prepúcio rasgado e refeito de amor. A ouvir Karnak, vira senhor da língua russa e escreve em cirílico que o lírio é o surgir de vida na mais morta terra escavada. Veste um escafandro e desce milhares de metros no mar do próprio desejo. Seu ensejo é viver nos olhos verdes que a sina joga aos seus sonhos encerrados. Num canto, esquecida, a enceradeira quer apenas voltar aos anos 50/60 do século passado para se sentir parte do todo e não pedaço do acaso.
 
II
 
O camelô garante que o produto tem procedência e decência. Se habla paraguaio ou diz que “china é podutro garantido”, saber-se-á. Também, pelo preço que está, tanto faz. Logo juntou uma ruma de pobres de grana, mas ricos de espírito, para comprar as imagens dos santos de umbanda. Logo ali uma banda de forró forra de sons e barulho o lugar. Na tevê passa o jogo que serve de preliminar para o Flamengo jogar. Felisberto, aberto a tudo que perto puder chegar, grita alto que se não comprar agora só no Natal. “Freguês, ainda estamos em abril. Se abrir o bolso agora você garante que não irá se levantar da cama em novembro! Só não aproveita quem for funcionário público com décimo-quarto salário na conta!” De raiva, homens e mulheres jogados às traças da vida, como jornais velhos e amarelados, fadados ao lixo, correm para a banca. Às portas das poluídas e brancas águas turvas da Baía da Guanabara, a sofrida realidade passeia em subterfúgios que os refúgios da tristeza fazem surgir. Assim, de centavos em centavos que não mais existem no mercado, os minutos vão passando deveras em esferas longevas. Talvez um poeta perdido, um ébrio calcinado, um ser fugido de algum hospício ainda entendam as ínfimas vendas. Sob vendas que escondem um centímetro além da escuridão, o vento faz voar as pétalas que a roseira já morta despeja no chão.

domingo, 13 de abril de 2025

Miles Davis, Gil Evans e uma obra prima

 Por Edmilson Siqueira*


"Sketches of Spain" foi lançado em 1960 e é um dos álbuns mais inovadores da carreira de Miles Davis, não fosse um trabalho conjunto com outro gênio, o pianista e arranjador Gil Evans. Pois o disco transcende as fronteiras do jazz tradicional e adentra a elementos da música clássica e do folclore espanhol. Esse projeto ambicioso demonstra não apenas a versatilidade de Davis, mas também sua disposição em explorar novas sonoridades e expandir os limites do gênero.
A peça central do álbum é o famoso "Concierto de Aranjuez" (Adagio), uma adaptação da obra do compositor espanhol Joaquín Rodrigo. Davis e Evans transformam essa peça clássica para violão e orquestra em um espetáculo a parte, mantendo sua melancolia original, mas adicionando novas emoções através do trompete expressivo de Miles. O resultado é uma interpretação de tirar o fôlego, que se tornou um dos momentos mais icônicos do jazz orquestral.
Além de "Concierto de Aranjuez", o álbum conta com outras faixas igualmente marcantes, como "Will o' the Wisp", baseada em uma peça de Manuel de Falla, e "Saeta", inspirada nos cantos religiosos da Semana Santa espanhola. "The Pan Piper" e "Solea" também se destacam, refletindo o fascínio de Davis pela música flamenca e sua capacidade de traduzir sua essência para um contexto jazzístico.



A colaboração entre Davis e Evans, já consolidada em álbuns anteriores como "Miles Ahead" (1957) e "Porgy and Bess" (1958), atinge em "Sketches of Spain" um nível de sofisticação impressionante. Os arranjos orquestrais de Evans conferem uma riqueza harmônica e tímbrica que contrasta com a abordagem mais econômica e introspectiva do trompete de Davis. O diálogo entre esses dois elementos cria uma experiência auditiva única e envolvente.
Embora "Sketches of Spain" tenha sido recebido com alguma resistência por puristas do jazz, que o viam como uma incursão excessiva na música clássica, o álbum acabou sendo reconhecido como uma das obras mais ousadas e inspiradoras de Miles Davis. Sua influência transcende o jazz, impactando músicos de diferentes gêneros e consolidando Davis como um artista inovador e inquieto.
Com sua fusão magistral de estilos e atmosferas, "Sketches of Spain" permanece como um testemunho do gênio criativo de Miles Davis e de sua capacidade de reinventar-se continuamente. Se o jazz é uma linguagem em constante evolução, este álbum é uma de suas declarações mais poéticas e atemporais.
O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=bJvu-6H8Pgo&list=OLAK5uy_l9dLGs_e3_u31Tf599Vrnwsg95JxPkr_Y&index=2 e pode ser comprado nos bons sites do ramo.
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT. 

sexta-feira, 11 de abril de 2025

A lua rosa

 Por Ronaldo Faria


-- Você viu a lua rosa?
-- Qual?
-- A lua rosa, cheia, mas da mesma cor. Branca.
-- Por acaso, não. Não tenho tempo de olhar para o céu.
No palco inexato da paródia, como um paradoxo ácido e ávido de ser algo real, os dois traziam a verborragia dos bêbados à cena ideal. Letal, a cachaça descia tardia pela Rua do Lavradio. Pelos paralelepípedos, em epíteto trágico e volátil das palavras, escorria o verbo do verso no esgoto cercado de lodo. Um louco vaticinava o cenário que a cidade desbravava. Um grupo de idosos descia tempo a fora com suas bengalas e passados em passadas curtas. Uma pomba cagava sobre o carro importado sem se importar com a pintura cristalina. Uma ou outra nuvem iluminava o rosto da jovem anuviada pelo amor perdido e perfeito. No vazio de um peito atormentado, dentadas de bocas banguelas comiam o resto de farofa que o restaurante de luxo jogava no lixo. Nos lábios molhados e sedentos dos amantes púberes, a plúmbea lua rasgava as nuvens que se misturavam cinzas e límpidas. Em alguma nau catarineta o poeta marginal buscava o que rimar com ...
 
II
 
O carro supersônico e atômico do super-herói percorre a cidade. Precoce ao crime que ainda não aconteceu, o homem de uniforme desforme e amarrotado arrota a cerveja que tomou na caverna que é seu esconderijo. Rijo, riste, risível e errôneo, erra de mão na esquina e quase bate na contramão o automóvel no poste onde a luz há muito queimou. Dá a volta e liga o turbo. Do seu veículo sai uma labareda imensa de fogo amarelo, verde e azul. “Colocaram gasolina batizada”, pensa ao ver a fumaça cinza que sobe também. “Nunca mais deixo o Alfred levar no posto perto de casa”, sentencia. Mas o bandido, cruel e covarde, desses que ri da morte e zomba da justiça, certamente estará com uma donzela sem zelo para mal fazer. “Aguarde-me (ele falava o português correto), Miriam Lane”, sem saber que estava a invadir a história de outro herói interplanetário. Acelera o carro e o velocímetro marca 150, 180, 200, 270, 300 quilômetros. “Faltam agora só alguns metros”, vaticinava. Seu erro foi passar numa blitz da polícia militar. Teve de parar o carro e soprar o bafômetro. “Seu esquisitão, desce do veículo, mostra a carteira e fica na boa pra não ter sacode-iaiá” – disse o PM pragmático. Foi enquadrado por velocidade acima do autorizado, usar roupa estranha fora de época, falta de documentação e pagamento do IPVA, além de estar acima do nível alcoólico permitido. “Tu vai conversar com o delegado, otário. Só pode ter fumado um baseado pra esquecer que o Carnaval foi em fevereiro”, exclama o policial.
Como, raro leitor? O que aconteceu com Miriam Lane? O chá de bebê dela e do Pinguim está marcado para o próximo mês. Eles pedem, encarecidamente, por fraldas descartáveis. O super-homem, que poderia salvar a trama,  estava de férias em Andrômeda e não ouviu os gritos da ex-amada do morcego que descansava em Bangu 8.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

A Cazuzar

 Por Ronaldo Faria


Na Zona Sul, depois que o azul do céu já deixou o lugar, bêbados, sonhadores, fumeiros, poetas, profetas e milagreiros infestam o Baixo Leblon. Talvez um desabrigado de tetos, o saudoso de tetas, desafetos da vida, batalhão de auto-homicidas (se é assim que se escreve) ou suicidas. Pouco importa. Na porta fechada ninguém bate. E coração estraçalhado não se abre.
Ps.: coloque-se tudo acima no feminino e tudo que todes podem ser...
A ver as ondas reverberarem o barulho de espumas e mares ou marés, José e Kátia, catadores de sílabas e sons, solidões e tons, seguem a pisar a noite em grãos de areia e infinitas saudades. As maldades ficaram bem atrás, num mundo que ninguém mais traz. Sonhar? Saber-se-á. No raiar do amanhã, no afã de querer estar noutro lugar, talvez ambos ainda percorram os muitos bares que o bairro dá. O cheiro de brisa que vem do oceano e dos cigarros ciganos é só o que faz as luzes dos postes prostrar a solidão. Na imensidão que posterga o fim logo ali na frente, o infame drama daqueles que buscam a sensação de poder ser. Na Avenida Delfin Moreira, o definhado mendigo pede trocados e piedade. Nos prédios de milhões, a dúvida é chegar na meta ou dobrar depois que ela chegar.
José e Kátia tomam a chuva fina que cai dos céus da vida e das emoções. O lugar que os acolheu, não há mais. Os tempos mudaram. Fratricidas de si mesmos, descobrem que não há porque se machucarem pela pessoa errada. No mundo, não existe contos de fadas. Fodas talvez. E apenas sofismas em cataclismos de lábios conectados e a frase para a amiga da Barra: “Dedicaram um livro pra mim!” Por fim, no fim de correr e percorrer a Floresta da Tijuca, factível ensejo do desejo da índia primeira, as curvas do carro transbordam de certeza e sina a cisma de saber que não há para onde chegar. Ao fim de tudo, apenas o mar, sorrisos, corpos limítrofes a se tocar, carícias de abrir e fechar o lugar que Tom Jobim fazia questão de estar. Assim, personagens e performances abruptos rompidos e rasgados sem saber em que horas estão, viram passado, histórias histriônicas a relembrar saudades desmesuradas em engano. Porquanto, só pra rimar, a incerteza de que alguém voltará a atender o telefone e, após milhões de dias dizer, resoluta: “José?”

terça-feira, 8 de abril de 2025

O Cair da Tarde de Ney Matogrosso

 Por Edmilson Siqueira*

 
Lançado em 1997, "O Cair da Tarde" é o décimo sexto álbum solo de Ney Matogrosso, um dos artistas mais versáteis e inovadores da música brasileira. Praticamente o único sobrevivente de um grupo que explodiu no Brasil na década de 1970, o Secos & Molhados, Ney construiu sólida carreira como intérprete, criando grandes sucessos e até hoje lotando casas de shows pelo Brasil afora. 
Neste disco, Ney presta homenagem a dois ícones da música brasileira: Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim, interpretando composições desses mestres com a participação especial do grupo instrumental Uakti. Esse grupo, por sinal, é também inovador e talentoso: produz um som único e muito bonito a partir de instrumentos que eles próprios constroem e tem agenda repleta de shows no Brasil e no exterior. E pra ficar melhor ainda, o Uakti não está só: há um grupo de instrumentistas, digamos, convencionais em todas as faixas.
O "Cair da Tarde" é composto por 14 faixas que exploram a riqueza da música brasileira, combinando elementos eruditos e populares. Entre as canções, destacam-se interpretações de obras de Villa-Lobos, como "Melodia Sentimental" e "O Trenzinho do Caipira", além de "Águas de Março", esse só instrumental com o Uakti.


 
A faixa-título, "Cair da Tarde", que abre o disco, é uma composição de Villa-Lobos que captura a serenidade e a beleza do entardecer na floresta amazônica. A letra poética, de Dora Vasconcellos, e a melodia envolvente refletem a profunda conexão do compositor com a natureza brasileira. 
O disco, como um todo, é uma demonstração cabal da capacidade de Ney Matogrosso de transitar entre diferentes gêneros musicais e de reinterpretar clássicos da música brasileira com originalidade e sensibilidade.  
A surpreendente e sensacional colaboração com o Uakti adiciona uma dimensão única ao álbum, incorporando instrumentos não convencionais e sonoridades experimentais que complementam a voz distinta de Ney Matogrosso. Essa parceria resulta em arranjos inovadores que respeitam as composições originais, ao mesmo tempo em que oferecem uma nova perspectiva sobre elas.
Depois de "Cair da Tarde", o disco prossegue com as seguintes músicas:
- Modinha (Jobim e Vinicius)
- Veleiros (Villa-Lobos e Dora Vasconcellos)
- Tema de Amor de Grabriela (Jobim)
- Modinha (Serestas) (Villa-Lobos)
- Sem Você (Jobim e Vinicius)
- Melodia Sentimental (Villa-Lobos e Dora Vasconcellos)
- Canção em Modo Menor (Jobim e Vinicius)
- Prelúdio Nº 3 (Villa-Lobos e Hermínio Bello de Carvalho)
- Caicó (Tema folclórico)
- Cirandas: Se Essa Rua Fosse Minha, Terezinha de Jesus, Condessa, O Cravo Brigou com a Rosa (instrumental), A Maré Encheu e Passa Passa Gavião (instrumental)
- Trenzinho Caipira (Villa-Lobos com poema de Ferreira Gullar)
- Águas de Março (Jobim) 
- Pato Preto (Jobim)


 
Além do YouTube (https://www.youtube.com/playlist?list=PLrt7VbxNS8reSAh22GM5vP59kho3mcB--), o álbum está disponível em plataformas de streaming como Spotify e Apple Music. E também para compra nos bons sites do ramo.
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Na estrada de Lenine e Jackson do Pandeiro

 Por Ronaldo Faria



-- Ele comprasse?
-- Comprou.
-- E pagasse?
-- Pagou.
-- E você cobrou o certo?
-- Decerto.
-- Como decerto? Cobrou ou não o certo?
-- Sei lá. Mal sei o valor das coisas. Ele pagou aquilo que você pediu.
-- E nem quis desconto?
-- Esse é o ponto. Quis.
-- E você deu?
-- Claro que não. Preço marcado é preço cobrado.
-- Fez bem. Então me passa a grana.
-- Que grana?
-- A que você recebeu pela venda.
-- Que venda?
-- A que eu te mandei fazer, caralho!
-- Essa? Essa não fiz.
-- Como não? Tu acabou de me dizer que faturou?
-- Me enganei.
-- Como assim?
-- Acabei embaralhando as ideias. Você pergunta muito.
-- E o que você fez com a mercadoria?
-- Troquei por um jumento com o Zé Lorota.
-- Como assim?
-- É que antes de encontrar o Bastião encontrei Zé Lorota. Ele viu o que eu levava e perguntou se eu queria trocar no jegue.
-- Como assim? E tu trocou?
-- Troquei. É que tu ainda não deu visão no Gumercindo.
-- Quem é Gumercindo?
-- o jegue!
-- Só pode ser brincadeira. Não acredito que você trocou a mercadoria num jumento.
-- Pois troquei. E nem precisa agradecer.
-- Agradecer? Você me fodeu!
-- Que é isso. O bichinho é novinho. Ainda tem muito pra viver.
-- Viver? É tu, seu cabra burro, que não tem mais vida pra cagada cometer!
Foram dois tiros certeiros: no peito e na cabeça. O “vendedor” nem precisou dar o último suspiro. Caiu sem estrebuchar. Logo ali do lado a feira de domingo rolava entre barracas de carnes, moscas e fubá. Mandioca, aipim e fruta de caju. E o barulho era tanto que o corpo só foi achado três dias depois por um moleque que corria atrás do maranhão perdido. Puto da vida com a grana da mercadoria perdida, o dono da venda tenta agora cruzar o jumento com sua égua preferida.
-- Pra alguma coisa essa merda tem que servir...
Do outro lado da cerca o animal zurra de felicidade.

sábado, 5 de abril de 2025

Forfé geral e Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria 


No forfé que Jeremias armou, sobrou pra todo mundo. De Epaminondas a Mané Piraju. Os meganhas chegaram batendo geral em todo mundo. Sobrou bordoada até para o Seo Gastão, senhor de 90 anos que batia ponto na birosca só pra achar que ainda estava vivo. Foi um tal de dizer “não sei quem foi” e “nem estou aqui” que o eco de qualquer caverna seria mentira de taverna. Os homens da lei não quiseram nem saber: desceram o porrete sem fé e nem dó. Da cintura pra cima, era tudo melhor. Do lado de fora, o sargento, que não aguentava ver sangue nem com unguento, só gritava “bate mais e manda ver que a cerveja depois é por minha conta”. Jeremias, o causador de tudo, apanhava sem dó e dor. Seu crime: amar a bela Marinalva, filha do doutor da cidade e das leis. Do lugar, o grande burguês. “Quem tirar mais sangue desse meleca de gente ganha um final de semana de folga inteirinho!”
-- Jeremias, tu me ama mesmo?
-- Claro, Marinalva. Daqui até depois do sol.
-- Que coisa mais linda de alguém falar.
-- Pra você eu serei sempre poeta. No funeral ou na festa!
-- Como você consegue rimar coisas tão díspares?
-- Disparo?
-- Deixa pra lá. Vem aqui me beijar.
O juntar dos dois surgiu de repente, no rompante que o amor dá e flerta em querer ser. Viram-se num entardecer na praça da igrejinha dedicada a São Simão. Ela comprava um sorvete de graviola. Ele ouvia a viola de Mestre Longuinho. Entreolharam-se de soslaio e dali surgiu um amor cheio de beijos e saudades afins. No outro encontro, sob o tronco de ingazeira, juntaram lábios e afagos, fogosos desejos e tragos de uma descansada em imburana que ele tinha trazido. Dali para depois não faltou nem um segundo. O mundo era pequeno para tanto calor e tocar, sublimar tristezas e desabrochar de riquezas. Eram potes e baús de gozo, salivas e trocar de gostos e gestos num gestual que nem mesmo o ser mais animal conseguiria fazer. E assim foram de encontro em desencontro a ver o mundo que não vai acabar. Mas, como em todo o conto de louvor há um Calabar, aos ouvidos do coronel Otílio a história foi chegar. Ferido no desejo de ver a filha casar com o varão do major Hermes Cançandão e juntar terras e riquezas, não pensou duas ou três vezes. “Antônio da Peixeira, vai na cidade e manda o sargento Pedro de Tonha descer o cacete geral. ” Nem precisou de resposta. O capanga montou o alazão e disparou pela estrada forrada de luar.
No bar do Crispim, ali aonde ainda tinha um pouco de felicidade, invadiram os oito soldados da lei que o grupamento dispunha. Coronel Otílio prometeu dar moedas que eles nem na melhor das loucuras saberiam dispor em alcunha. “Mas é só pra quem bater gostoso e bem dado. E em Jeremias vale isso e mais mil”, professa o cabra que dá as ordens do doutor. Depois de tal profecia, nem precisava cobrar que a coisa fosse bem feita. Rolou cacete e a cobra piou e a maritaca se arrastou. Quando os meganhas deixaram o lugar, estava tudo em cacos. Havia feridos, corpos ardidos, gritos urdidos. E lá num canto, sem encanto ou pranto algum, Jeremias jazia numa poça de sangue que parecia igual quando sua mãe teve seu cordão primeiro rasgado e partido.
-- E aí, tudo ajeitado?
-- Coronel, nem se você eu teria feito melhor ou igual.
-- Pague todos e deixe um troco para consertar o bar do Crispim. Diz pra ele que não foi nada de rixa. Só um acerto de contas. Senão, diga o que quiser. A vida é mesmo um faz de conta.
Seis meses depois, no dia de se casar com Carlão, filho do major Hermes Cançandão, Marinalva foi achada enforcada no pé de ingazeira, vestida de vestido de noiva e com um bilhete em que dizia sim para Jeremias. Nessa noite não houve folia. Deitado na rede a ver o mundão além das vistas que lhe pertencia, coronel Otílio disparou um tiro certeiro no coração.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Plantios

 Por Ronaldo Faria


Plantemos cervejas e cerejas. Uma para cada instante. Para agradar o ébrio e o infante. Aquele que dilacera seu coração e o outro que sonha no frescor da dor. Por isso, deixemos esse plantio brotar, emergir da terra, se transformar em mares e cantos de bar, meros lugares a andar. E levemos a produção até o público final. Cada um, decerto, saberá ao certo fazer com ela aquilo que tiver de ser feito. No peito desnudo, para um o gozo e ao outro o universo, o seu mundo disperso. Logo, plantemos cervejas e cerejas e esperemos as chuvas e sóis que as farão surgir. E se urgir o desejo de tê-las antes dos brotos brotarem, possamos dormir profundamente para tudo não matar antes de ser. Nalgum lugar, além-mar, outro alguém estará as mesmas sementes a regar...

terça-feira, 1 de abril de 2025

Morar em Babilônia

 Por Ronaldo Faria

 


Aurora está deitada no alpendre a tentar aprender a sina de viver. Em meio a descobrir que a cachaça derruba o bêbado e o ébrio de fim de semana, não se culpa de submergir à própria loucura. No alforje que sempre leva na busca de um cavalo branco e manco onde seguirá nua pelas areias brancas da última praia que conseguirá enxergar, o mistério do tédio em perfídia a tramar. Suas feridas, nunca cicatrizadas, são, pasmem, a certeza de que há nós atados nas estradas onde almas cansadas descansam sem saber.
Aurora, plenipotenciária senhora, jovem demais à eternidade e idosa dadivosa ao momento pleno, sabe que o agora é muito pouco. O homem que a segue, rouco, estupefato pelo fato de somente a conhecer, não passa de um louco a quem deixaram sair do hospício sem a camisa de força. Por ele Aurora tem pena. E nessa piedade segue a procissão que o padre Narciso, seguidor de Padim Ciço, clama por alívio da dor. Nela, uma ou outra beata chora lágrimas que podem fazer a semente brotar no chão esturricado e pisado do sertão.
O amanhã será, decerto e quase certo, incerto e presto, pronto, um novo incesto. No verso do sanfoneiro cego que toca debaixo do umbuzeiro, o casal acasalado e agarrado prepara o gozo que se fará vida nova para o lugarejo colocar na estatística do IBGE outro nascituro a menos. No rádio de galena surge o narrador a vibrar com o gol do Flamengo. Para Aurora, melhor fosse que no meio do rio seco surgisse a galera lusitana para navegar além da janela ou da gamela onde descansam as tripas do carneiro esquartejado.
-- Aurora, posso entrar?
-- Claro. Só não sei se terá cama para recostar.
-- Não tem problema. Não sei dizer nada mais que um fonema. Qualquer coisa, apelamos para telegrama ou telefonema... quiçá uma dança. Na eletrola, a folia vai rolar.

domingo, 30 de março de 2025

Clima de jazz

 Por Edmilson Siqueira


 O disco se chama "Jazz Moods", o que pode ser traduzido para "Clima e Jazz" ou algo parecido. Só que o conteúdo é de jazz puro, o que, obviamente, cria muito mais que um clima para se ouvir grandes instrumentistas. 
E são grandes mesmo. Olha só a seleção das 12 faixas: Stan Getz, Dave Brubeck, Stephanie Garappelli, Kai Winding, Gerry Nulligan, Dizzie Gillespie, Phil Woods, Winton Marsali, Chick Corea, Gary Burton, Art Blakey & The Jazz Messengers e Michael Urbaniak. Só cobra criada, como diria Adelzon Alves no programa "Amigo da Madrugada", lá na Rádio Globo do século passado. 
Convenhamos: juntar um time desse num só disco já é uma façanha. Infelizmente, a única informação do pobre folheto do CD que tenho, é que todas as gravações foram produzidas pelo RTV Communications Group, da Flórida (USA). E o CD é inglês. Ainda bem que a lista das músicas traz os intérpretes, compositores e onde e quando foram gravadas. 
Assim, é possível saber que a primeira faixa - "Autum Leaves"  e apresentada por Stan Getz - é de autoria de Kosma, Prevert, Mercer e Parsons e foi gravada ao vivo num Concerto na Riviera, em Cannes (FR) em 23 de janeiro de 1980. Acompanharam Getz, Andy Leverne, Brian Bromberg e Chuck Loeb. E, como praticamente todas as outras faixas, se trata de um clássico, inclusive essa versão de Getz, que, digamos, viralizou à época, quando esse verbo só era usado em relação a perigosos vírus. 
 


A segunda faixa fez parte de um disco histórico de Dave Brubeck: "Blue Rondo" (Brubeck) e essa gravação também foi feita ao vivo, no mesmo local da primeira faixa, só que três anos e cinco dias depois. Brubeck se apresentou com Chris Brubeck, Rabdi Jones e Bill Smith.
Em seguida aparece Kai Winding, com Frank Strazzeri, Kevin Brandon e Ted Hawke numa gravação de estúdio, realizada em Hollywood (CA) em primeiro de setembro de 1977. Se o grupo não é muito conhecido por aqui, a música é. Trata-se de "Morning of the Carnival", a nossa Manhã de Carnaval de Luiz Bonfá e Tom Jobim. Preciosa gravação, diga-se.
O grande Gerry Mulligan vem a seguir, com "Applecore 6.16" dele mesmo. O time que o acompanha é dos mais respeitáveis: Lionel Hampton, Hank Jones, Bucky Pizzarelli, George Duvivier, Grady Tate e Candido Camero. 
Dizzy Gillespie, que dispensa comentários, é o dono da sexta faixa, "Slewfoot" (Bland). A gravação não tem data nem local, mas as palmas no fim (se não foram acrescidas) revelam uma gravação ao vivo. E no palco estavam outros 14 músicos fazendo a cozinha toda para o sopro majestoso de Gillespie. 
"Caravan" (D. Ellington, Tizol e Mills) com Phil Woods pede passagem na sétima faixa.  O grande saxofonista do jazz está acompanhado aqui de John Fosset, Marc Fosset e Louis Bellson. A faixa foi gravada já num estúdio digital em Ohio (USA) em 22 de setembro de 1987.
 


O estudioso da história do jazz, grande trompetista e diretor da Jazz at Lincoln Center Orchestra em Nova Ypork, Winton Marsalis, se incumbe da mais que clássica "My Funny Valentine" (Rodgers e Hart) na oitava faixa. Com um time excepcional - Bobby Watson, Billy Pierce, Charles Farnbrough, Jimmy Willian e Art Blakey - a música foi grava ao vivo no Bubba's Restaurant em Fort Lauderdale, na Flórida em 11 de outubro de 1980. 
O Concerto de Riviera, em Cannes, é o responsável por mais uma faixa do disco. Gravada também em janeiro de 1980 (não há registro do dia), "Moment's Notice" (John Coltrane) nos traz ninguém menos que o grande pianista Chick Corea, acompanhado da Oliver Jackson Orchestra.
 A décima faixa - "African Flower" (D. Elington) ficou para Gary Burton com seu vibrafone, acompanhado de piano, bateria e contrabaixo nas mãos de Ahmad Jamal, Sabu Adeyola e Payton Crossley. Também gravada no Concerto da Riviera em Cannes, em 26 de janeiro de 1980.
 A décima-primeira faixa ficou com Art Blakey & The Jazz Messengers. Trata-se de "A Wheek Within A Wheel" (Watson). Na gravação, também em 11 de outubro de 1980 na Riviera, os "jazz messengers" de Blakey foram Winton Marsalis, Billy Pierce, Jimmy Willians, Charles Farnbrough e Ellis Marsalis.
 E, por fim, a última faixa, a mais recente de todas, gravada em 1993, no Village Vanguard, é com polonês Michal Urbaniak. Violinista, saxofonista, compositor e arranjador, ele toca "Softly As In A Morning Sunrise" (Romberg e Hammerstein), acompanhado de piano, bateria e contrabaixo de Mike Gerber, Ron Carter e Lenny White 
 Enfim, trata-se de um grande disco, com músicos e repertório excepcionais. Não encontrei no YouTube para ouvir de graça. Mas há alguns exemplares à venda no Mercado Livre.

sexta-feira, 28 de março de 2025

À Justiça quase tardia

 Por Ronaldo Faria


Rolou a tal determinação de julgamento. Agora o jumento, cansado e manco de tanta espera, poderá ver a carroça pelo homem se levar. A justiça, antes tardia do que nunca, em manchetes e preces lúdicas e sofridas far-se-á. Gregos e troianos juntarão exércitos para cantar na praça a prosaica canção de almas lavadas e renovadas, enxaguadas quiçá. Crenças enxovalhadas às milhares de mortes conspurcadas e jogadas a sete palmos servirão de aplausos tardios, mas vindos por fim. Bem vindos. A história, essa senhora tantas vezes entregue ao nada, tragada por páginas mal escritas ou proscritas, até riu discreta e soberba ao saber o desenrolar. Ao derredor de tanta dor, condoída e torpe a estátua estática tira a venda que a cega e se entrega ao clamor geral. Coisa de tempos antes que já sofrem de artroses por tal esculacho. Num planalto seco e distante, entre ecos e outros tantos, o calendário marca o tempo em que se escreverá nos capítulos dos livros de História, em homenagem a Capitu, “perdeu, Mané”.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Qualquer hora e nada será como antes

 Por Ronaldo Faria


-- Saravá, mizifio!
-- Saravá.
-- O que suncê quer?
-- Nem eu sei, minha mãe. Estou que nem barco em maré: sem areia, chegada e nem pé.
-- Aí é ruim...
-- Eu que o diga.
-- Mas e a fé? Tá junto?
-- O que é fé? Se for esperança, há muito já perdi.
-- Pode ser esperança ou pode ser lembrança. Lembrança de coisas boas, tardias de riso à toa.
-- Sei. Então até isso está difícil.
-- Pense que ao menos você ainda está aqui pra falar, ver, andar, respirar.
-- Só que tudo bem pouco e quase nada.
-- Mas é do pouco que vem o muito, mizifio. Pensa nisso. E saravá. Que Oxalá esteja contigo.
-- Saravá! Vou rezar pra isso.
Francisco levanta e sai do centro a deixar a cantoria e os atabaques para trás. Sai pelo portão e chega à rua. A chuva cai fina, quase nenhuma. Mas o asfalto, já molhado, brilha nas luzes que o poste traz e proseia com as poças que o tempo faz. O cheiro de alfazema e sete ervas toma conta do lugar. Devagar, segue entre as árvores que trazem abrigo. Uma ou outra marquise também alivia o cair de pingos que aumentam a cada passo. Mas, como diz o ditado, na chuva há que se molhar. Nesses dias em que a vida é, melhor com as intempéries não brigar. Logo encontrará um bar. Irá entrar, puxar uma cadeira, sentar, pedir a gelada e se deixar levar. Certamente o destino não desatará, mas, aos poucos, com uma porção de costelas de porco, o afoito e louco sofrer irá tentar sumir um momento só para não perder de vez o corpo que o carrega para todo o lugar.
 
II
 
-- Que família mais linda! Parabéns, Zefa. Fosse comercial de margarina não poderia ser mais bonita. É muita boniteza demais! Além da conta.
-- Obrigado, Pafúncia. A sua também é muito linda.
-- Para, Zefa. A minha não chega nem aos pés da sua. Ela é só sorriso e ternura. Se tivesse concurso de família, a sua seria o Clóvis Bornay. Ia desfilar só pra ser hors-concours. Mas, tudo bem. Quem tem, tem. Borogodó e fashion.
-- Não é tanto assim.
-- Pelamor! Querida, você não nasceu com a bunda pra lua. Nasceu com a bunda, o peito e o dedão do pé. Deixa de querer ser humilde. Não faz que nem a Gertrudes...
-- Tudo bem, Pafúncia. Aceito os elogios. Quer mais um champanhe?
-- Amiga, e eu vou desprezar uma francesa legítima pra tomar? Nem morta!
Sentadas nas cadeiras à beira da piscina onde uma competição de veleiros poderia acontecer sem problema, as amigas acendem um Gitane tradicional e que grita em francês quando o fogo do isqueiro Cartier, o queima: “Me brûle, mais fais-le avec amour”.
-- Rodrigo, me traz outra garrafa de champagne Louis Roederer Rosé Vintage, mas a da safra 2013. Não vá errar. Desça na adega e se certifique que é de 2013.
-- Sim senhora, madame.
-- O quê? Fale direito, pra Pafúncia ver.
-- Oui, madame...
-- Agora sim. Pode ir. E passa na cozinha e diz para Beatriz trazer uns petiscos de caviar e salmão.
-- Oui, madame...
-- Zefa, como você mantém um serviçal que se esquece de falar francês?
-- Ele é bonzinho, Pafúncia. E sabe que essa gente, honesta, está difícil de encontrar. Você demite um e não encontra outro em cem.
-- É verdade. Uma tragédia total. Fosse em Mônaco, não seria assim.
-- Mas deixa pra lá. E Clarêncio? Quando volta dos Alpes?
-- Amiga, nem te conto...
Aos poucos a noite vai chegando e se aconchegando na mansão que descansa num bairro jardim. As duas vão se abrigar perto da lareira e sorvem agora um Bollinger Special Cuvée acompanhado de ostras de Coffin Bay e trufas brancas de Alba. Não se ouve um barulho externo sequer no inebriante lugar. No alto da serra, com vidros blindados e antirruído, o som que rola é apenas das vozes das amigas e do show do Alok, particular.
-- Mas é isso, sua família é o baobá...
-- Pafúncia, você é hilária!
-- Vamos tomar. Alok, toca Raul!
 
III
 
-- Saudade da Dona Ivone Lara. Se samba tem clássicos, um desses clássicos vinha de lá, daquela mulher, devagarinho.
-- Pode crer. Essa era uma dama do samba.
Zé Emerenciano e Mestre Jardel fazem uma resenha forte na birosca sob a escuridão quebrada por uma ou outra lâmpada de poste que resistiu aos tiros da milícia, do tráfico e dos alemães que passam pelo lugar.
-- E o Flamengo? Viu a lambada que ele deu nos gringos que vieram aqui no Maraca?
-- E não... Não fui lá porque a grana está curta, mas vi pela tevê. Nosso time é foda. O tal de Tite se tivesse levado o Mengão nas duas Copas, hoje seria heptacampeão.
-- É verdade. Mas tudo tem esquema. Você acha que a imprensa, os empresários, os outros clubes, a CBF teriam aceitado? É claro que não. Foda-se a seleção. O que conta é o cifrão.
-- O pior é que é verdade.
Do lado de dentro do balcão, o espanhol nascido em Portugal faz o sinal para saber se a dupla da Agremiação e Escola de Samba Baba de Quiabo e Camarão quer mais uma garrafa.
-- E precisa perguntar, Manolo? Manda logo ver!
-- Mas traz aquela que você ia levar pra casa e tomar com a cumparsita.
O calor de outono que pensa ser verão atrasado traz uma brisa mansa e amiúde. Os copos, suados de gotas de prazer, transbordam pela mesa de plástico. No morro hoje, ao menos, não há um morto novo. As estatísticas, imprecisas e sisudas, ficarão paradas. Talvez um marido espanque a mulher, ela o denuncie à polícia, uma criança morra de desnutrição, um ou uma qualquer perca seu emprego de salário mínimo e ínfimo. Mas qual, ali todos estão acostumados no abandono e esquecimento. Por outro lado, também, alguém subirá sua casa de alvenaria com dez sacos de cimento. Fará a sala, o quartinho e o banheiro. E um amor gostoso e verdadeiro irá rolar. Olhares irão se cruzar. A mãe pedirá para o filho ter cuidado a ir e quando voltar. A vida continuará em pandeiro, destino e tamborim. Afinal, no final das contas que não fecham, tudo apenas irá se repetir. Logo, pra que dar piti?
-- Na epifania da vida, pitaco só dá quem tem saída!
-- Bonito, Mestre Jardel. Podia ser enredo de samba. Já imaginou o senhor a comandar a bateria com um samba assinado junto?
-- Zé, você já bebeu demais. Manolo traz a conta!
Refeita de emoções e coberta de risos bons, os dois amigos sobem o resto da rua para se guardarem nos recintos devidos.
-- Boa madrugada, Mestre Jardel. Que os deuses nos deem a fidalguia da porta-bandeira e a beleza da passista na avenida. 

IV

 -- Onde tem quizumba? É só dizer que eu desço a navalha!
-- Calma, João Exu. Não é quizumba. É quizomba. É festa!
-- Aí então, se otário se fizer, dou navalhada na testa.
-- Tudo bem, a gente sabe. Mas fica na sua, fica bem.
João Exu, como o nome diz, era filho do senhor das ruas. Mas quem disse que essa entidade é do mal? Ao contrário, ela traz a paz para as encruzilhadas. Põe ordem nas demandas e arruma e destranca as vidas que estão em dívidas com trancas antigas e nuas. É o rei das noites e madrugadas infaustas e rotas, causticas e tronchas. Aquele que bebe com os solitários, os sonhadores e flagelados perdidos pelo dia a dia. Quisera todos fossem como ele. Com certeza a vida seria uma festa sem hora pra começar e nem momento de acabar. Sequer haveria um novo Calabar. Só o bom e ritmado som de macumba.
-- Você vem com a gente?
-- Vou ver. Talvez sim, quem sabe não.
-- Então desce essa branquinha e decide. O busão já está no horário.
-- Tudo bem, vamos lá.
Subiram os quatro, pagaram a passagem, cruzaram a catraca, deram boa noite ao motorista (para alguns chofer) e sentaram no fundão, perto da porta de descer. Viram as ruas e avenidas, esquinas e faróis (para outros semáforos) passarem. Vez ou outra, o ônibus para num ponto e sobe gente e desce gente. Uns mais e outros menos.
-- Chegando lá, é entrar na prosa, na troça e deixar rolar a vida. Se deixarem no palco, damos uma cancha.
-- Se a resenha mudar de lugar e os caras deixarem o bicho pegar, eu retalho meia dúzia.
-- Calma, ninguém vai entregar ninguém. João Exu, relaxa.
No ponto desejado o quarteto desce. O som do pagode cresce e o cheiro de manga rosa permeia a madrugada. Não dá cinco minutos e eles estão na folia. Afônico, o partideiro convida o Trio Candura pra dar uma deixa. Carlão da Cuíca pede a João Exu que fique na mesa a beber e curtir o que é raiz. Mas, enquanto o furdúncio se esmera, o cabra da mesa recebe Juliana e a vê sentar. Entre vozes e algozes que tiveram a sorte de não ter as gargantas decepadas no amanhecer, o casal se acasala ali mesmo, sem medo de ser feliz. Num canto, sentado solitário na mesa cercada de garrafas vazias de cerveja, o criador da história ri de quem achava que tudo ia acabar em tragédia. João Exu e Juliana hoje têm cinco filhos – três garotos e duas meninas – e vivem felizes no bairro do subúrbio que Deus lhes deu. Ele é segurança de supermercado e nunca em ninguém sequer bateu. Ela é confeiteira de festa de casamento, batizado, bodas de ouro e velório. Ao derredor, só existe o verdadeiro amor...
 
V
 
-- E a agamia? Você viu? Está se tornando preponderante no mundo jovial.
-- Eles não estão errados. Fosse eu nos tempo atrás, devia ter seguido isso aí. Mas nem sabia que isso existia. Também, quem mandou ser admirador de Vinicius de Moraes...
-- É isso. Que merda termos nascido há quase 70 anos. Vivíamos num turbilhão. O mundo dos anos 50/60 vieram pra foder geral. Deixaram um sabor de mudança e levaram milhões de jovens pelo mundo a sonhar que podiam tudo transformar. E muitos despirocaram, morreram em combate ou calabouços, viajaram para sempre em doses de heroína e LSD. Enfim, morreram ou ainda morrem hoje na crença do planeta justo e solidário.
-- Ou seja, um bando de otários.
-- Não. Um monte de poetas, apaixonados pela vida e solitários. Gente a se reverenciar e eternizar no que possa ainda existir de bom nessa bola que roda sem parar.
-- É verdade. Logo, que a agamia conquiste mais gente para sofrer involuntariamente em si, sem proliferar o desamor àqueles que ainda acreditam que dois é mais e melhor do que um.
-- A Terra agradecerá, ou não...
Nas caixas de som, agora, Marisa Monte diz que a melodia é doce nas noites de luar.
-- O pernoite é cem reais. No crédito ou no débito?
O casal em questão, não os amigos de bar, nu e entrelaçado, laçado no desejo saber-se-á por que, vai contra as pesquisas e estatísticas. Apenas se ama e proclama ao mundo que tocar, alisar, acarinhar e, até, penetrar, ainda é o melhor lugar a estar.
-- Quer saber: foda-se essa tal de agamia! Como diriam no passado, eu quero é rosetar.
Na portaria do motel, a atendente diz ao senhor vestido com a camisa da seleção que lá não é lugar de trazer um jumento.
-- A Zoonoses é quase aqui do lado. Se o senhor quiser, eu posso ligar lá.
O homem dá marcha à ré e rumina algo que não dá para entender. No quarto, o casal num gozo igual pede mais outro balde de cervejas para beber, viver e bebemorar.
 
(No fim tudo vira Leila Diniz)

terça-feira, 25 de março de 2025

Dois gênios do sopro juntos e misturados

Por Edmilson Siqueira


John Coltrane e Miles Davis estavam no antológico "Kind of Blues", uma das obras máximas do jazz. E, claro, não estavam ali por acaso: eram gênios notórios, cada qual no seu instrumento. 
Mas "Kind of Blue" foi uma espécie de ápice do encontro desses dois. Antes, eles já tinham gravado muita coisa boa na Columbia. Pois o disco "Miles & Coltrane" da série "Columbia Jazz Masterpieces" junta diversas gravações dos dois: duas de 1955 e cinco de 1958. E os dois estão muitíssimos bem acompanhados, com Julian "Cannoball" Adderley no sax alto; Bill Evan no piano; Paul Chambers no baixo e Jimmy Cob na bateria. Todas as gravações de 1958 são com esse time. Já as duas últimas do disco, gravadas em 1955, não têm "Cannoball" e têm Red Garland ao piano e Phily Joe Jones na bateria.
Para se ter uma ideia mais precisa da qualidade desse disco, basta dizer que o mesmo time das cinco faixas iniciais, seria o mesmo que, no ano seguinte, estaria dando ao mundo o "Kind of Blues". Era o Sexteto de Miles Davis. E todos seus integrantes, com exceção de Jimmy Cob, tiveram grandes carreiras solos. Cob, baterista, morto em 2020, é considerado um dos grandes da história do jazz.
"Música brilhante de dois gigantes" - assim o crítico norte-americano de jazz Scott Yanow encerra um pequeno comentário sobre o disco. Antes, ele escreveu: "Além de duas seleções ("Little Melonae" e "Budo") de sua primeira sessão para a Columbia, este LP contém a apresentação completa no Newport Jazz Festival de 1958. Quando se considera que o sexteto de Davis na época incluía gigantes como o saxofonista tenor John Coltrane, o sax alto Cannonball Adderley, o pianista Bill Evans, o baixista Paul Chambers e o baterista Jimmy Cobb, não é de se surpreender que os fogos de artifício tenham resultado. Ainda assim, o poder e a motivação desta versão intensa de "Ah-Leu-Cha" são uma revelação, e a banda realmente balança e se estica em "Straight, No Chaser", "Fran Dance", "Two Bass Hit" e "Bye Bye Blackbird". 
 


O LP Miles & Coltrane com as gravações de 55 e 58 (as últimas gravadas no Festival de Newport) foi lançado em 1988 pela Columbia. O CD que tenho é uma edição francesa, de luxo, com três encartes, dois com informações sobre o disco e outras gravações que a Columbia tem do sexteto de Miles, e o outro é o catálogo de jazz da Columbia, dividido em 8 seções: Reedições, Fusion, Artistas Contemporâneos, Jazz Vocal, Gospel, Blues, World and Jazz e Jazz e Cinema. Trata-se de um catálogo de fazer babar qualquer colecionador, pois nas 32 páginas do dito cujo, ao invés de lista com os nomes dos discos, estão 80 fotografias das capas dos discos. E, detalhe, entre elas, na seção World and Jazz, o disco "Brasileiro" do nosso maestro soberano Antonio Carlos Jobim.
Em 1955, Miles Davis já era um músico consagrado no mundo do jazz. Coltrane ainda iniciava sua carreira. Embora tocasse antes de 1955, seus principais anos foram entre 1955 seu encontro com Miles) e 1967, durante os quais reformulou o jazz e influenciou gerações de outros músicos. As gravações de Coltrane foram prolíficas: ele lançou cerca de 50 gravações como líder nestes doze anos, e apareceu em outras tantas lideradas por outros músicos. Ou seja, foi Davis quem proporcionou a Coltrane as condições para que sua arte aparecesse. E ele se sentiu tão seguro do que queria, que recusou fazer uma turnê para a Europa logo após a gravação de "Kind of Blue". Mas Davis insistiu muito e Coltrane acabou concordando. 
Quando chegaram em Paris, Davis comprou, num antiquário, um saxofone e deu de presente para Coltrane. O que fez o músico mudar seu comportamento. Coltrane passou a excursão inteira tirando sons do sax e, nos shows, era o que fazia os improvisos mais longos e mais inusitados. O presente acompanhou Coltrane para  resto da vida. 
As músicas do disco o crítico Scott Yanow já revelou, mas vou colocá-las aqui novamente na ordem correta e com os devidos compositores:
1 - Ah-Leu-Cha (Charlie Parker)
2 - Straight No Chaser (Thelonius Monk) 
3 - Fran-Dance (Put Your Little Foor Right Out) (Mils Davis)
4 - Two Bass Hit (John Lewis)
5 - Bye Bye Blackbird (M. Dixon e R. Henderson)
6 - Little Melonae (John McLean)
7 - Budo (Miles Davis).
O CD, não a edição de luxo francesa, pode ser encontrado nos bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=7tIgg-zRqeM .

segunda-feira, 24 de março de 2025

Para Caetano cantar

 Por Ronaldo Faria


Caetano, tântrico ser, que bom que pôde nascer nos arrabaldes de Santo Amaro que alguém purificou. Não o fosse, na fossa que a mais inócua e iniqua fossa dá, não poderíamos andar e desandar naquilo que nem o mar denota em lá. Na nata do leite sempre haverá coqueiro e paixão. Quem sabe, também, a sofreguidão que só a imensidão de oceanos nunca navegados nos faz tragados em tragos e subterfúgios naufragados e submissão. Graças aos deuses, sejam esses quem forem, a Bahia brindou de narcisos e mutantes os instantes que a instantaneidade traz. Assim, desde a baiana que tocamos as mãos no cinema numa sessão qualquer, depois de mortos nos vermos vivos e crivos, que o mundo possa prosear as lágrimas derramadas feito vaca profana encarquilhada. Senão, no não de arrependimento que só surge no dia depois, seja feita a vontade que se traduz. Na febre imberbe que delimita os dentes que faltam na boca informal, o poeta que nunca foi normal se traduza na busca anormal. Menino talvez, à busca de alguma tez. Lúcido e herói naquilo que fez. A relembrar camaleoas que beijaram sua boca, gemeram juntas no gozo único e dormiram ao lado a ladear e alardear que o dia seguinte não tarda a chegar. E como este será? Talvez o próximo êxtase fugaz, o silêncio mordaz, a sagaz blasfêmia entre o macho e a fêmea. Efêmera, a mórbida falácia irá sublimar aquilo que nem a maior presença do mar traduzirá em palavras. Nas lavras da vida, a sórdida e mórbida paixão não nos deixe a sublimar a cadente emoção...

sábado, 22 de março de 2025

No viajar

 Por Ronaldo Faria

 


-- A parada foi para mijar. Fosse no Pravda, seria manchete vulgar...
Clemente, comunista de carteirinha, mesmo que essa esteja amarelada e cheia de datas passadas, no passadio entre a loucura e a euforia tardia, acende mais um cigarro. Logo virá o catarro que povoa os pulmões no eterno instante. Cantante no cantar sem semblante, entorna outro copo de cerveja. Que Deus (ateu que é) não o veja. Seu paraíso ainda é Leningrado.
-- Você sabe quantos companheiros tombaram num sonho? É medonho descobrir que vidas que sonhavam um novo país justo tombaram em cubículos extremos, poças de sangue vazias e marés de mares que mais não se vê.
Do outro lado da mesa, no boteco incrustrado no subúrbio escuro, o amigo ouve a olvidar que o passado possa retornar e salvar as vidas decantadas e contadas em emoções mil. Que Maria viva e povoe o mundo de mais mil Marias que lutem libertárias e vivas. Que José traga o verso da revolução à realidade e a iniquidade e miséria sejam verbos do passado. Nas mesas que povoam a sequência estapafúrdia da geometria do bar que tenta faturar mais em menor espaço, outras conversas praguejam. Num ou noutro momento, um beijo. Logo mais, quem sabe, um sexo.
-- Você já pensou que não estaríamos aqui hoje se não fosse a coragem daqueles que tombaram em prantos?
Não. O ouvinte não havia pensado nisso. Submisso, omisso e constrito, não tinha atentado para os atentados políticos do passado. Talvez cansado de locupletar, prefira apenas ouvir e tomar. Na árvore perto, uma pomba perde as últimas penas. Logo vai morrer.
-- Você sabe o que é ultimar a vida a saber que seu desejo de juventude foi extirpado e arrancado por seres vis que sequer mereciam o nome de seres humanos?
-- Garçom, traz outra vodca!
Afonso, ser limítrofe e etéreo, prefere se embriagar e “viajar” de vez do que ouvir Clemente em seu verbo histórico e estoico. Ser etílico, profilático e tardio, vive a vaticinar seu destino sem tino ou desatino. Não quer ser nada além do que já é. Afinal, sabe que logo nada será. Todos, indistintamente, o serão: pó e solidão fechada no afã que nunca existirá. À exaustão de querer ser feliz, na infausta sodomia tardia, quer apenas ter um fim, pagar a conta e sair para o seu quarto e sala. Viver seu ínfimo fim.
-- Clemente, já estou bêbado. Preciso agora só de um Uber e, quem sabe, beber em cassa minhas tragédias pessoais e casuais. Pede a conta!
Companheiro acima de tudo, ligado umbilicalmente a seus pares, Clemente levanta a mão e faz o sinal de fechou. A literatura comunista pode esperar o ouvinte voltar à normalidade. A cidade, catastrófica e utópica, claustrofóbica a jorrar nas vazias carótidas, dorme sob as luzes ergofóbicas. O garçom, expropriado e crente de que é assalariado naquilo que faz, agradece os dez por cento. Na televisão passa o tento que o goleador do time adversário faz. No fim do mês, o salário estratosférico do jogador paga centilhões de caipirinhas que o garçom nordestino de nascença deixa às mesas todo dia.
-- Já está pago, companheiro. Que a vida nos possa prover de algo mais...

(A ouvir Zeca Baleiro e outros mais)

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...