segunda-feira, 20 de maio de 2024

Cassiano Ricardo, nem sei lá porque lembrei, mas é musical

 Por Ronaldo Faria

 


Cassiano, que nada tem a ver com o poeta Ricardo, serpenteia em si mesmo. Corre de barriga no chão pelo asfalto infausto chapiscado e ignorado, brinca de volatizar brejeiro e ser concreto no feto que nunca desabrochou do ventre da mulher amada, cálida e calada, porque não era hora de nascer.
Cassiano, que sequer sabia que a palavra cápside existia, não tinha métrica ou nada que fosse forma tétrica ou esotérica para se fazer. Nem destinatário tinha. Mas quem, em vida, o tem? Diante do cemitério próximo, o óxido que se fará coisa solúvel se calor e umidade forem a melhor maneira.
O que sobrou? Saudade das terras corridas, carcomidas pelo tempo, fugidas entre dias corridos, chegadas e partidas. Para Cassiano, dramático e atávico ser, o agora não era ágora ou nada a dizer. Somente saudade, dessas que a vida não dá cria. Que o coração sentencia para a prelazia do coração.
Cassiano, mero ser a ser em si, é um transgressor do destino, desses malucos que acreditam que o sonho irá se sobrepor aos pesadelos sem zelo que chegam nas noites, sejam elas de inverno ou verão. Na besta certeza de crer que o desejo um dia será dia e noite, o açoite que bate sem dó no corpo.
Na rede que se arma na vida para o mundo parar, a paralisia que o amor, desse que nunca se deixa de amar, traz os pés para o chão, de antemão. Na extrema vazante que a seca deixa o rio seco de areia branca, o desejo que se sabe entre a poesia e a realidade. Uma coisa a querer na infância desmedida de crer.
E Cassiano ouve do boiadeiro um vamos voltar ao passado, rever memórias e histórias, passos inexistentes, mesmo que se tenha plantado à espera de décadas atrás. Quem sabe carros de boi com sabugos de milho vermelho, redes no alpendre que alguém morrerá, inertes rimas a saborear a falsa imensidão.

sábado, 18 de maio de 2024

No Tom do Zé mais uma vez

 Por Ronaldo Faria


No abstrato do trato que a solidão dá, o subterfúgio fugidio que a dor dormente deixa a cada dia separado, a cada dia não vivido junto, a cada semântica abstrata que tricoteia na teia da rainha tresloucada para devorar o inseto absorto de ter deixado de voar, a incerta certeza de um vociferar quem ninguém ouvirá. Para logo mais, no afã que se enchafurda até a bunda abundar na voracidade de si mesma, a falta de dentes transborda na borda do sorriso que deixa de se mostrar. Cármino, que nada tem de estrangeiro (seu pai achou que era caminho em alguma língua e registrou ligeiro na esperança de uma espera de doido), estava mais uma vez largado no afável espaço trafegável que a avenida cheia de escapamentos deixava. Seu pensamento, que surgia como sândalo num cão sarnento e largado, antevia o derradeiro dia em orgia de mulheres desnudas e nuas de sentimentos. Qualquer alento já lhe servia.
Cármino, que uma Carmen deveria ser a ópera grandiloquente de uma operação tardia a deixar o órgão maior gangrenar, estava a inventar sua própria história, a reinventar o destino. Mas não há como ir muito longe ao alforje que o cavalo manco carrega no inferno de um inverno inexistente. Premente, a incerteza bastarda da partida se faz ouvida ao longe pelo aboiar calado que o galopante infante desperdiça de estar ao lado da amante, aquela que, nem ele, é uma reticencia que a ciência da vida já fez cavalgar na areia fina de um mar e amar nas madrugadas tragadas de alegrias que as alergias vazias nem sabem existir. No premir do futuro, o furo que há entre o mundo e a espera. Quem sabe a vida não se fará numa maternidade distante, na verdade parteiros casuais que nem sabem o que são amores feitos numa quinzena de cidades e dias em fervor. Assim esperemos entre ensimesmada saudade e a querência que só amor sabe escrever e descrever em linhas desalinhadas no seu torpor.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Tom Zé na furdência

 Por Ronaldo Faria

 


-- Amanhã é dia de birita. Segura a onda, Furdêncio...
Ninguém, na verdade, sabe como um pai e uma mãe põem o nome do filho de Furdêncio. Algo deve ter sido pra foder com a vida do rapaz. E o homem do cartório deveria estar nos dias de ligar um foda-se. “Querem essa merda, bosta seja feita”, pensou. Ele, o homenageado, sabe-se lá com o que, era operário de uma retífica. Mexia com motores, apesar de o seu estar na meia boca, quase parando. Seu amigo era Lupércio, da Silva. Apelido, Silva. Coisa sui generis, com certeza.
-- Furdêncio, você sabe que o dia seguinte é um maremoto quando a espuma da cerveja sobra além do explicável para a realidade... Haja ressaca.
Mas o operário cheio de questões e senões não está nem aí. O dia de agora foi de trampo além da conta diante das contas que estão sobre a mesa do barraco para pagar. “A tal de Serasa me salva desta vez?”– se questionava imperfeito e imprevisível. O importante não era o amanhã. Era o agora. A hora. A razão de viver os poucos segundos da tarde tardia. Acordara às quatro da manhã nas maltrapilhas horas da angústia e da sina. Pegou o trem da CPTM lotado como sempre, gente na frente, do lado e atrás de mais gente. Alguns já suados por antecedência. Outros a ressonarem como ninguém. “Pra puta que pariu nascer pobre”, pensou.
-- Furdêncio, você ouviu o que eu falei?
Silva era um chato bem aprumado. Crente da igreja de algum salvador da vida do pastor e da família e sua amante, ele acreditava que o importante era o instante da morte, quando encontraria o senhor a quem ele dedicou dízimos e crenças. Arrumadinho, indissolúvel na volatilidade da realidade, urgia de um porre redentor. “Senhor Manoel, traz uma água sem gás e natural” – pedia aos perdões para o dono do bar. A falta de uma exclamação na sentença já dá conta de quem ele era.
-- Silva, vai tomar no cu! Me deixa curtir minha vida medíocre e real!
No derredor de uma dor sem ninguém dar jeito, um fundo de bebida no copo reflete a cor que o sol brilha quente no logo depois. Não há como não amarelar sentimentos e se prostrar diante de si mesmo na busca volátil da felicidade que urge a pedir nova idade. Furdêncio, em sua imaginação que vaticina a sina dramática da apatia, projeta um futuro com salário melhor, uma mulher que fale igual a ele, um enredo de novela que o novelo da vida já diz degredado do destino.
-- Furdêncio, vou ter de ir. Tenho culto logo mais.
-- Vá com seu deus. Eu ficarei por aqui com meus demônios.
Na rua poeirenta sem a chuva que o céu faz questão de não dar, as pessoas se achegam ou se recolhem a depender de cada dor. Uma ou outra mulher cheirando a perfume performa com o corpo para garantir o almoço de depois e a janta acompanhada de um qualquer, a ser a si mesma, dona de seu corpo, seu desejo e querer. Furdêncio, sem saber que ele é que o coadjuvante da ação, acredita que o concreto de São Paulo deu um pulo na sua vida ávida de ser fina e bonita. Ledo engano. Cigano da felicidade, ele continuará a ouvir Tom Zé a dizer que “vendeu fiado pra Deus, vai receber depois da morte”.
No dia seguinte, um blogueiro barato e sem seguidores posta que um baiano morreu atropelado na esquina da Ipiranga com São João: “Ele parecia bêbado e a gritar que Furdêncio era o caralho. Que ele era um operário de motor a matar como uma motosserra as matas que escondiam sua quimera”. Na parada de sucesso, o DJ devaneia no verbo encarnado do sétimo dia.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Parceiros e parcerias

Por Edmilson Siqueira




Há muitas histórias de parcerias na MPB. As famosas, como Tom e Vinícius, João Bosco e Aldir Blanc, Toquinho e Vinícius, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e muitas outras, estão cheias de histórias, pois nem sempre as parcerias foram aquela coisa precisa, de um fazer a letra e outro a música, como é mais comum, ou um músico botar uma melodia num poema já feito. 
Há parcerias, por exemplo, que o autor da letra nem conhece o autor da música. Foi o que ocorreu com Vinícius de Moraes, quando recebeu uma visita no camarim de um show com muitos artistas. Era Gerson Conrad, de um grupo novo, que nem gravação tinha ainda. Gerson, nervoso diante do poeta, pediu licença para mostrar uma melodia que ele havia feito para um poema do mestre e, claro, "se ele não aprovasse...". Vinicius quis saber qual era o poema. "Rosa de Hiroshima", disse Gerson. Os olhos do poeta brilharam: "Senta aí, mostra como ficou". Ao ouvir a pungente melodia, os olhos de Vinicius se encheram de lágrimas, ele abraçou Gerson e disse: "Meu filho, essa música será um grande sucesso". E foi mesmo, no primeiro disco do grupo Secos & Molhados, que Gerson ajudara a criar, e na magnífica interpretação do "crooner" Ney Matogrosso.  
Chico e Jobim têm duas histórias boas. A primeira ocorreu com "Zíngaro", que Jobim havia feito e gravado com uma grande orquestra, numa igreja em Nova York. Ao fim da gravação, todos os músicos da orquestra, americanos, aplaudiram de pé o maestro pela beleza da melodia. Mas isso é outra história. 
Acontece que ele deu a música pro Chico botar uma letra e, alguns meses depois (Chico era devagar às vezes), ele apareceu com Retrato em Branco e Preto. A bela poesia convenceu Jobim ao ouvi-la cantada pelo próprio Chico. No fim, o nosso maestro soberano só teve um senão com a letra: "Chico, o correto não é retrato em preto e branco?" Chico respondeu: "É, Tom, mas aí eu vou ter de mudar a letra e vai ficar assim: 'Vou colecionar mais um tamanco, outro retrato em preto e branco, a maltratar meu coração...'". Jobim achou melhor não mudar.
Outra música que Jobim deu a Chico foi Wave, hoje um sucesso mundial. Chico ouviu a música na casa de Tom e, antes de levar a fita embora, cantarolou pro Tom: "Vou te contar..." A primeira frase estava feita. Só que o resto demorou. Demorou tanto que Jobim, precisando gravar, fez o resto da letra, gravou e jamais deu parceria pro Chico. Numa boa, claro, pois o próprio Chico contou a história rindo e, com certeza, com saudade do parceiro e amigo.  
Com o mesmo Chico, só que desta vez na companhia de Toquinho e Vinícius, ocorreu outra parceria curiosa. Estavam os três na casa do Chico e, ele e Toquinho estavam terminando uma composição. Assim que acabaram, mostraram pro poeta. Era Samba de Orly. Vinícius gostou da música, mas disse que a letra estava precisando de um "retoquinho". Os dois lhe deram a folha de papel com a letra que foi para um canto da casa. Voltou logo depois: "Só botei uma frase, no lugar de "pede perdão pela duração dessa temporada", mudei para "pede perdão pela omissão um tanto forçada". Os dois gostaram, pois era uma crítica mais explícita à ditadura militar que o Brasil vivia e da qual todos eles eram adversários.
Algum tempo depois, estão Toquinho e Chico no estúdio pra gravar o Samba de Orly. Estavam ainda ensaiando com o conjunto, quando o diretor da gravadora abre a porta e diz: "Para tudo. A censura cortou a letra, proibiu uma frase". "Que frase?", quiseram saber. "Omissão um tanto forçada não pode. Vocês têm de substituir". Chico e Toquinho se entreolharam e disseram que já tinham a frase reserva. Voltaria a letra original. Mas os dois resolveram avisar o poeta que a frase dele havia dançado. Toquinho ligou ali do estúdio mesmo: "Poetinha, a sua frase no Samba de Orly, a censura cortou". Vinícius ficou chateado: "Ah quer dizer que eu perdi a frase que botei?" Pois é, poeta, perdeu". Vinicius manteve a fleuma: "Bom, eu perdi a frase, mas não perdi a parceria, né?" Claro que não", respondeu Toquinho e ele e Chico mantiveram o nome do poeta como um dos autores da música. E fizeram o certo. A ditadura caiu, a censura acabou e a música foi regravada e é cantada por aí com a frase que Vinícius mudou.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Gil a brilhar

 Por Ronaldo Faria

Gil, me perdoa por te reencontrar (sacanagem porque nunca te deixei) desse jeito. É que os tempos estão parecendo novos a cada segundo. E o estão. Na verdade, o tempo está cada vez mais efêmero do que a um minuto atrás. “Ainda bem que dá pra cagar em casa sabendo da dificuldade de defecar num banheiro de bar”, diz Sinfrônio, anacrônico ser dos novos tempos. A ouvir Gil, no Gilberto aberto à imaginação, apenas podemos pedir boa noite para a noite que se aninha no céu que logo vai mudar. No copo vazio só resta um mísero restolho de ar.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Atabalhoado e sonoramente retardado

 Por Ronaldo Faria


O menino treme de medo quando ela, no carro que percorre a Fortaleza de quase 50 anos atrás, diz que não o levará a um motel. Menino, ele tem medo de tremer na hora final. Na história, Lampião, com certeza, está a ele olhar (o olha até hoje, duplamente). "E se falhar com a sobrinha-neta? Ainda bem que Corisco e Labareda já se foram. Meu pescoço não foi ou seria cortado e meu lugar no ônibus que matou minha cadeira no Rio Itapicuru não estava ocupado desse corpo infausto (me perdoem o casal que foi pular um carnaval de Salvador que nunca houve para eles)". 
Celidônio, tristonho e bisonho ser apócrifo e insano, performático e atávico, catatônico e afônico palhaço, sabe que a ilusão de um teatro sem cortinas ou coxia nunca seria igual ou desigual. A felicidade, que foge a cada ano que a idade chega e se aconchega em nós, sobrevoa e voa feito avião carmim. O incesto presto e certo ignora a nora ou cunhada, sob a alcunha de doideira amalucada, que foi o desejo do louco que sobrevive ao próprio medo. No enredo ensandecido da trama carcomida, o inseticida que só mata as loucuras e mundos díspares que a bebedeira abre de xacras mil. No céu anil que já não há, o anel que o bedel de cortes antigas fez questão de apagar. Para Celidônio, o indômito bagaço de sonho num engenho.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Belchior de novo

 Por Ronaldo Faria

 


O cinema de Salvador esconde dois corpos púberes a ver que um filme qualquer será (saberemos lá ou saber-se-á). De repente, as mãos se unem. Mãos de ainda jovens, sonhadores de que a vida é só um lumiar contínuo a beirar a certeza de que felicidade há. Bobos em si, na tragédia familiar. Crianças e jovens numa descoberta que nunca existirá. Para essa peça, na peçonha da existência, vozes de mulheres velhas a destruir o que pudesse vir. Romeu e Julieta ensanguentados nas ladeiras que a prosopopeia (seja isso o que for) diz ser o destino desnorteado de qualquer tempo.
Constantino, que tem nome parecido com quem sobreviveu ao apogeu de Constantinopla, relembra seu passado que houve (ou terá realmente havido?). Na foto 3x4, um fotograma que hoje já não há, o rosto que rompe têmporas e temporalidade. Tântricos desejos e benfazejos cortejos de nunca mais voltarão. No vão da saudade, a realidade que só a lucidez da embriaguez dá. E revolve tempos, resolve átimos da mente, mistifica o que o corpo físico não consegue recriar com a clareza da tela que está defronte dos dois amores mortos taciturnos e condenados a nunca retornar.

II
 
Parar ou não? Paralisia do porvir. Crença do ineficaz porvir e surgir. Incandescência no meio do nada. Um nadar contra a correnteza que a certeza prova ser finita. Apagar e ressurgir, no frigir de ovos e óvulos que não temos como crer que a terra que os cobrirá seja leve. Não será. Sejamos, pois, entregues às chamas que matarão o que nos fizeram morrer. E assim possamos dormir em lençóis requentados de corpos que já não se encontram, bocas que não se enlaçam, pernas que não transpassam. Afinal, isso são os anos de qualquer ser, tenha duas ou quatro pernas, rasteje ou não no chão, flutue ou nade na eternidade desse globo em glóbulo ocular. “Foda-se”, grita o homem diante do seu amor maior. No sortilégio do egrégio pulsar, a pusilânime sentença que a saudade traz.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Sergio Mendes, um perene sucesso

 Por Edmilson Siqueira


Sergio Mendes é, sem dúvida, o mais bem sucedido artista brasileiro no exterior. E não só nos Estados Unidos. Seus discos são vendidos também na Europa e no Japão. Se não atingem números estratosféricos de vendas hoje, a perenidade das vendas é marca de um sucesso longevo.
Essa lembrança me veio à mente com a chegada do CD Four Sider, que eu comprei no Mercado Livre. Lançado em 1988, ele traz, em 21 faixas, um resumo da fase mais bem sucedida em termos de vendas de discos do pianista brasileiro. Depois dessa época, em que as vendas diminuíram, seu prestígio só aumentou e hoje ele é venerado tanto por antigos fãs, como pela nova geração de músicos dos EUA.
Comprei o CD pois, embora conheça muita coisa dele e já tenha captado algumas faixas na Internet, não tinha um disco com seus grandes lançamentos do século passado. Four Sider preenche essa lacuna.
Sergio Mendes saiu do Brasil ainda na década de 1960. Quem pensa que ele foi buscar o sucesso no exterior, se engana: saiu praticamente forçado pela ditadura que, a partir de um divertido bilhete seu para um amigo, acabou caindo das garras de um governo ignorante e sua repressão. Não entenderam a mensagem e pensaram tratar-se de um grande subversivo. O amigo para o qual endereçou o bilhete, foi vítima também da mesma ignorância. Era um escultor e, em seu ateliê, a polícia descobriu o que pensou ser uma escultura de Lenin, comunista que tomou o poder na Rússia em 1917. O busto retratava o pai do escultor, que era apenas parecido com Lenin.
Diante dessa brutalidade e com um filho recém-nascido (o motivo do bilhete ao amigo) Sergio Mendes não teve dúvida: se mandou para os EUA, onde já tinha amigos e poderia levar uma vida mais tranquila, preocupado apenas com sua arte e podendo cuidar bem de sua família.
O sucesso não demorou a chegar. Craque na bossa nova e ciente do gosto norte-americano pelo som brasileiro, juntou as ideias e criou um som próprio, transformando sucessos daqui e de lá num espécie de pós-bossa nova jazzística que os americanos adoraram.
Mas que Nada, de Jorge Benjor, foi a primeira mostra de que ele estava lá para ficar. O disco chegou entre os dez primeiros das paradas da época (paradas americanas, da Bill Board e outras, sérias) e o LP que essa música puxou vendeu muito também. Em seguida, gravou uma música do Beatles que, embora de grande qualidade, tinha ficado meio perdida entre os megassucessos dos Fab Four. Sergio Mendes com seu grupo (o Brazil '66) deu um tratamento de sambinha bossa nova a The Fool on the Hill que simplesmente alcançou o topo das paradas e transformou o brasileiro em ídolo por lá.
Depois de passar por duas gravadoras, acabou se firmando na A&M Records, dos amigos Herbet Alpert e Jerry Moss, onde continuou criando sucessos, às vezes nas fórmulas bossa-nova-jazz e outras, mais fieis aos originais.
O disco Four Sider é um retrato perfeito da obra do século passado, mas isso não significa que Sérgio Mendes parou por lá. Poderia ter parado se fosse apenas o dinheiro a lhe interessar, pois ficou rico. Construiu uma enorme casa em Los Angeles e nela um estúdio de gravação completo. O marceneiro que estava fazendo a parte de madeira do estúdio, lhe disse que estava estudando para ser artista de cinema. Sergio Mendes apreciou o fato e desejou boa sorte ao rapaz. Alguns anos depois o viu estrelando um filme. Era Harrison Ford.
No século 21, já gravou cinco discos. Desses eu tenho Timeless, onde ele revisita alguns sucessos em companhia de artistas de Rap, de Stevie Wonder e outros. Ou seja, com mais de 80 anos, continua ligado no som atual e emprestando a ele seu talento. 
As vinte e uma músicas que compõem Four Sider são as seguintes:  Mais Que Nada (Jorge Ben), One Note Samba/Spanish Flea (Jon Hendricks / Antônio Carlos Jobim / Newton Mendonça), Bim Bom (João Gilberto), Look Around (Alan Bergman / Marilyn Bergman / Sergio Mendes), (Sittin' On) The Dock of the Bay (Steve Cropper / Otis Redding), Watch What Happens (Norman Gimbel / Michel Legrand), With a Little Help from My Friends (John Lennon / Paul McCartney), The Look of Love (Burt Bacharach / Hal David), Norwegian Wood (John Lennon / Paul McCartney), Wave  (Antônio Carlos Jobim), After Midnight (J.J. Cale), Chelsea Morning (Joni Mitchell), The Fool on the Hill (John Lennon / Paul McCartney), For What It's Worth (Stephen Stills), Day Tripper (John Lennon / Paul McCartney), Crystal Illusions - Memórias de Marta Saré - (Guarnieri / Lani Hall / Edu Lobo), País Tropical (Jorge Benjor), Ye-Me-Le (Chico Feitosa / Luís Carlos Vinhas), Reza (Rui Guerra / Edu Lobo), Promise of a Fisherman (Dorival Caymmi), After Sunrise (Oscar Castro-Neves / Tião Neto).
Várias plataformas na internet vendem o disco, bem como disponibilizam as faixas para uma audiência. Divirtam-se.


segunda-feira, 6 de maio de 2024

Belchior forever

 Por Ronaldo Faria

 

A rua está escura e obscura, como um abismo que só o absinto poderá determinar o fim entre a próxima esquina e a quina do prédio que está logo ali defronte. O escuro absorto e solto neste lado da Terra que, creiam, é redonda, está rotundo e senhor de si. Ensimesmado, porém, feito o amante que se acha amado (mero boçal), Cândido Homero, como o nome diz ser bom e herói de literatura grega, é um maltrapilho idoso que se cortou e se queimou pelos dias e tempos trêmulos e efêmeros que foram seus dias travestidos de vida.
Mas, para ele, pouco ou tanto faz. Facínoras invadirão seus sonhos e pesadelos sem mazelas ou fábulas de aprendiz de sonhador que só quer um dia dormir em paz. Para Cândido Homero, o frescor de uma infância que nunca teve, a juventude partida entre a busca da sanidade e a idade que viria depois. A fuga constante da inconstância prematura, a sentença natimorta de saber que felicidade não há. A gargalhar nos frangalhos da emoção, ele caminha enquanto houver caminhar.
Nos dias de Cândido Homero, minutos nostálgicos e nevrálgicos, palavreados atávicos, metonímias que nem a rimas sabem o que são. Feito sermão de padre pedófilo, a oração que atabaques ecoam num espaço quente e enlouquecido de uma mulher de cabelos negros e longos, peitos grandes, ancas de dar bons filhos. E nunca mais. E o amor que se foi se evadiu e fugiu nos trilhos de trens que somem em ruídos ensurdecedores, fugas de amores e odores, lábios e crenças mil.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

No concreto, de volta àquilo que crê-se seja concreto (a ouvir Tom Zé)

 Por Ronaldo Faria



Píncaros.
Quais?
Fatais?
Hoje ou nunca mais?
Nos amemos?
Ou Amemo-nos?
Na esquadria do concreto, tanto faz.
Prosopopeias?
O que será isso?
O autor despirocou.
Há São João ou Augusta?
Súplica que haja.
Senão, não há razão de escrever.
Tesão?
O que é isso?
Ter o senão?
Viver o quão for?
Se este for ou não.
Cidade de concreto.
Dejetos a sorver.
Descobertas a viver.
Deus, se houver, salve São Paulo.
Onde vivem Severino e Saulo.
Suavemente, salvem-se todos.
Na Cracolândia, a Disneylândia do pó.
Armagedom do preto e do judeu.
Do pobre e do plebeu.
Do rico além da riqueza do judeu.
Réplica da tréplica que não há.
Varejo e venda sem cifrões.
Da mulher e do travesti da esquina.
Da sina que vem do Sinai.
Dos parques e parquímetros.
Botecos e meros afetos.
Artistas de rua e moradores que nem.
Viadutos e seres putos.
Milagres surgidos na sarjeta.
Mutreta de repassar o pó.
Mureta entre a riqueza e a pobreza.
À fome, cães e humanos mil.
Fodam-se os artistas da vida...
Jardins e vilas segregados.
Todos vilões em si.
Nuns os abastados.
Noutros os eternos chinfrins.
Chamuscados de poluição, beijam-se.
Parcimônias da amônia geral.
Filhos de uma mesma vida no fim.
Vilipêndios no sol a frigir.
Como meros fugitivos de si.
Na mesmice do bagulho carmim.
Crendice da chegança sem mimimi.
São Paulo será um por fim.
A comer milhares de reais.
A sorver o que há de mim.
Embriagado, tragado até o fim, faço-me sim.
E foda-se o restante que há.
No subterfúgio da vida, o que haverá?
Talvez uma esquina ou uma sina.
Mas quantas milhões existirão?
Na insônia da isonomia, o silêncio.
Num bar, o cliente chama o garçom Inocêncio.
Na sentença da demência, a clemência...
E ponto final, afinal..

terça-feira, 30 de abril de 2024

Gonzagueando

 Por Ronaldo Faria

 

A terra carcomida pela vida e a seca ressecam os olhos que sequer podem mais chorar. No lugar, a se largar de solidão e remissão, beatas choram a morte como se a vida fosse algo a se esquecer no limiar. A parir fetos natimortos, crianças que sorvem na farinha a rinha que a vida dá como sabor, elas se vestem de negro e oram para um Deus que se esqueceu de lá chegar. O padre, quando raro passa, raramente tem na Bíblia a resposta pela dor que se segue e se firma. A fungar no cangote da próxima mulher, o homem pouco se importa com a cria que no bucho venha se embuchar. Sobe e desce, penetra e tira, goza feito sanguessuga e vai, no trote do cavalo sedento de um poço.

No alpendre, a sonhar para além do sol inclemente que chega no chão e mata e destrói como fosse Hanói em décadas atrás, a morena olha para a distância que há entre o sanfoneiro embriagado e o luar brincando de iluminar mais que o lampião que morre em cheiros de querosene e findar. Quem sabe um vaqueiro não perderá uma rês ou reza por lá. E a porteira rangerá para o amado entrar. Seu nome será Severino ou Amadeu? Pouco importa. A porta estará sem trinco ou trema. Ele poderá entrar e saciar sua sede de água e amor. Na cama de lençol branco e quarado, o sangue estará pronto para ser derramado. Amanhã, no arado, o gado suará no seu eterno trabalho.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

As borboletas de Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria



O derredor está escuro, sombrio, talvez. Na vez da chegada do destino, o homem/menino vê-se, em desatino, a caçar sua mesa cercada de outras tantas igualmente sombrias e escuras. De vez ou em quando um ou outro farol ofusca a negritude geral. O farol (semáforo para alguns) pisca em três cores. Da chapa vem a surgir e subir odores mil. A larica bateu e nem Prometeu conseguirá segurar.
Jairo, para o bêbado e lisérgico o Juarez, serve os clientes que restam a buscar felicidade ou matar a saudade que não se deu permissão de partir ou encerrar. Ele, que mora longe no longínquo lugar que seja, só espera o gerente do boteco mandar jogar água geral. Na frágil realidade de cada um, o último gole de rum. No local, quem conseguiu, conseguiu. Pra o resto, o desejo é só ensejo.
Muitos, quase todos, voltarão para casa na incerta realidade de que, quem sabe, o amanhã acordará de acordo com os signos, submissos em si mesmos. A esmo, vagarão no universo que versos não descrevem. Talvez uma lágrima, um vômito desgarrado, uma insônia em que qualquer Sônia seria o porvir. Bastardos de si mesmos, sorverão tristezas. Mas, na destreza dos solitários, se salvarão.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Na mesa de um mundo Kleiton e Kleidiriano

 Por Ronaldo Faria



Na mesa agora quieta e vazia, sem emoções ou noções, estripulia da vida, escondida na escuridão que ilumina a incrédula cédula que espera a chegada do garçom que fugiu, a certeza de que a ilusão virou servidão de um coração tresloucado.
Na mesa que balança e trança pernas e pensamentos, a fuga do sonhador que a cada noite se encontra em pesadelos e desmazelos sabe-se lá de onde irão chegar. Certo e certamente estarão escondidos n’algum lugar, por aí, no rarefeito ar.
Na mesa que a bazófia (seja lá o que isso possa representar) se faz presente, o ausente permeia seu lugar. Nas próximas horas já estão circunscritos o soluço, as soluções insensatas, as mágicas que o poeta, apóstata, acha que pode decifrar.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Chico e Mônica

 Por Ronaldo Faria


 
Penduricalhos da vida: óculos, ósculos, lágrimas, saudades mil que não mais acabam em si. Tordesilhas nunca vencidas, tratados nunca feitos, bandeiras nunca conquistadas. Talvez, estradas. Insanas, extensas, centimetradas. Fábulas, todas elas com cavalos alados e amazonas que saíram das zonas mais distantes, depois de amarem mil e umas, para trocarem as luzes escuras pelo sol que brinca de acordar e dormir para ovos frigir.
Vazios que nada preenchem: frases perdidas, vidas sem vida, efêmeras horas que correm ao contrário, na dor. No labor de ser feliz, copos cheios de espuma e pródigas ideias. Talvez um braço amigo, um abraço demente, um discurso veemente, desses que diz que o amanhã amanhecerá melhor. Nas letras negras do computador, ladrilhos de uma rua em ladeira a assombrear o luar e assombrar as loucuras que vêm em vagas.
Certezas que iludem a solidão: um coração torpe, um desejo cambaleando antes do tombo, uma única candura quebrada em cacos de vidro. No voltar que o tempo não refaz e desfaz em ritmos e letras que nunca se farão música ou poesia, o homem caminha em seus momentos etéreos e voláteis a achar que se achou. Mero e ledo engano – o menino que corria as terras secas a carregar um carro de bois de sabugos de milho já não há.
Verdades que se sabem apenas ecos de profecias nunca remidas: a circuncisão de esperanças, as danças tresloucadas de pares pareados em si, sinais de céus azuis ou escuros da chuva que nunca cai. Na sombra que a árvore sem galhos dá, na dádiva daquele que teve ao menos um segundo de amor, a trilha que ninguém trilhará. No trem do tempo que corre e percorre trilhos e ordenha vidas, o derradeiro apito que o surdo nunca ouvirá.

sábado, 20 de abril de 2024

Nas cervejas do padrinho, o mimo da mímica se faz (substrato do cigarro do bom sem apertar um)

 Por Ronaldo Faria


 

Elucubrações mil num céu que há muito deixou de ser azul ou anil. No perpétuo pensar, o novo luar. Um lumiar que a noite faz pernoite. No aconchego final, a luta entre a embriaguez e o mal. A certeza de que a incerteza far-se-á frugal quando o tempo se for. E ele sempre se vai e se esvai. Brinca de eternidade quem crê que a crença poderá permear a vida da morte à sorte de cada um.

Marcelo Maldonado Peixoto, o D2. Quem saberá o nome real? Saber-se-á.  Será que vale saber E foda-se aquilo que não é rima! Na cisma da cidade que une beleza e escória, a história vitrifica a retórica que chega nos sons milenares que o coração brinca de florear para Poliana ficar de boa. Mas nem tudo que entoa é a realidade que o gueto traz em verborragia. Afinal, ele não traz à cor negra ou preta as ruelas das favelas, as coisas comuns de comunidades. Na correção da insônia que a isonomia da vida faz destrato no trato que a madrugada traz, seja chegada a malandragem que a zona norte dá.

O beijo da mulher que se aninha sobremaneira no abraço que parece o sargaço que cola no barco esquecido no porto destruído para nunca vir a ser. No cerzir que junta saudades e nunca existir, a loucura da benfazeja chegança num rolê. E vamos no sapatinho que o ardil do próximo minuto faz a troca da grana e do pó na esquina que se eterniza na sina que ninguém fará parar. Loas aos incrédulos que creem nas cédulas a remissão final. Rima surgida na mijada largada num banheiro aberto em duas opções.

Nos pesadelos que surgem loucos e tresloucados no submundo que é estar vivo, os versos vazam em sons que os ouvidos ainda ouvem. Nos olhos que já não sabem mesmo que veículos chegam de um lugar perto, o acerto do certo que, tão presto, nem parece estar no verso que, transverso, vira rima para uma conexão entre o morro e o asfalto. No desabafo que ainda bem nas letras enviadas não têm cheiro, surge o esmero que a vida arrestada não traz sobremaneira na rima do apito que ainda soa fatal.

Tivesse sobrevivido à sogra filha da ... que queria a filha casada com herdeiro de uma fábrica de guarda-chuvas, teria vivido uma vida de maior sorte? Nas esquinas sangradas das zonas sul e norte, no subúrbio banal de algo sempre animal, o menino se jogou no jogral. Vale o que for. Na época do telefone que pedia sinal para ser real, das cartas cravavam o tempo das emoções, a incerta certeza que poucos sabem o que ser. No dedilhar do agora, incrédulo e crédulo, o mundo que não disseram antes que um dia viria. 

(Para o Marcelo D2)

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...