quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Mistureba de gêneros em exatidão

 Por Ronaldo Faria


O bar está botecateado entre as garrafas de cerveja e o carteado. No truco, que para Souza até hoje é igual a turco (nunca saberá), as apostas e gestos de olhares e mãos tomam conta da cena. Grata surpresa é a gata cor de mel que chegou no lugar para ronronar por um pedaço de linguiça mineira apimentada e acebolada. Manfredino, tinha um zap nas mãos (seja lá o que isso possa ser, mas deve ser bom) e queria decidir a partida ali. Mas, esperto, tão perto da derrota que decide jogar o tudo ou nada, Valêncio levanta a mão e diz que não aguenta mais segurar: “Tenho que ir no banheiro!”
A regra do jogo era sagrada: pediu pra mijar, tem que parar. Os outros três da mesa não têm como negar. Baixam as cartas e pedem mais um balde de cervejas. Afinal, quem perder paga. E até a jogatina acabar há muito a se beber e jogar. Valêncio, na crise da meia idade, aproveita a ida ao mictório para olhar as mesas que ainda restam com corpos a rodear. Numa delas vê Ofélia, um tanto de menina no pouco de velha. Era bela? Era. Talvez como um amanhecer no luar pirotécnico que meteorologistas disseram ser de sangue. Senão, melhor do que a gozação que sofreria ao perder outra nova rodada.
 
No som que saía das caixas acústicas, um tanto de resto de Wando e o que poderia vir (agora parei de escrever para ver o que irei escutar).
 
Entra Benito de Paula. Paulatinamente, feito semente que brota de forma descomplacente, surge um samba que urge na brincadeira de ouvir e escrever. Mas qual, Valêncio já tinha esquecido a urina de mentira e pregado os olhos em Ofélia. Os três da mesa? Que se virassem da forma que quisessem. A mulher em questão era melhor que qualquer rainha, fosse de que naipe fosse. Ouro? Valia mais. Copas? Haja coração! Espadas? Só se for pra arrancar o peito que se entregava. Paus? Quem dera o seu se fizesse ereto diante do fato. Dono de si, decide ir até a mesa onde estava seu alvo sentado.
-- Boa noite. Meu nome é Val (ele tinha vergonha do Valêncio e achava que seus pais o odiavam desde o nascedouro).
-- O meu é Ofélia (ela curtia assim se chamar ao saber que era personagem importante de um autor inglês e que um dia um príncipe ela enfim encontraria).
Na mesa do truco, seus adversários não entendiam a demora.
-- Será que ele está com a bexiga presa?
-- Acho que não. Pode ser que a fila esteja grande?
-- Não. Deve ser entupimento da glande.
Mas qual. Valêncio e Ofélia estavam numa prosa prosaica em que prosopopeia e eufemismos se misturavam ao léu. Falavam de passado, de presente e, quiçá quem sabe, futuro soturno. Afinal, entre um furo e outro que o amor deixa nas paixões derradeiras sempre há espaço e fresta para o furto de um amor brejeiro.
E como a vida não deixa deixas para o ator do momento fazer da alegria lamento ou vice-versa, ambos brincam de direitos, dinheiros, sujeitos e defeitos. Tudo em ordem na desordem indevida e imperfeita da vida. O restante, batismo de bamba ou babalorixá, é apenas pena da galinha que foi degolada na encruzilhada mas não depenada.  Talvez uma farofa sem sal, a garrafa de pinga que nunca foi marafo, o prato de barro no parto que a gira fez girar.
-- E depois? – perguntaria o mais sábio dos raros leitores.
Sei lá! Que cada nota, letra, sílaba ou verso sejam apenas a loucura de descobrir que o truco é o enigma que um tal carioca de raízes nordestinas nunca saberá se é malandragem ou sorte do destino. Nos goles que saem dos copos e transbordam nas línguas de Valêncio e Ofélia, pouco ou nada importa. A porta fechada da casa empoleirada no refeito e rarefeito mundo é uma espécie de ninho, desses que nem marca de leite em pó pode se apropriar. Detrás dela, os dois se amam em louvor. Na mesa do bar, o trio, cansado de beber e esperar, paga a conta e vai dormir ou vomitar.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Elis e Toots

Por Edmilson Siqueira



Há uns 20 anos, eu estava em Barão Geraldo, mais precisamente numa galeria chamada Tilly. O que eu estava fazendo lá não tenho a mínima ideia, mas me lembro de uma loja de discos (de CDs, né?) e dentro dela o meu amigo Tatá. Amigo é modo de dizer, pois não éramos próximos, mas sempre que nos encontrávamos trocávamos grandes papos sobre música. A primeira vez que o encontrei foi na lendária Raposa Vermelha, onde ele trabalhava e dali eu saí com meu primeiro LP de jazz, "Three or Four Shades of Blues", do genial Charles Mingus. A segunda foi num sebo ali da José Paulino, no Centro de Campinas. A gente se encontrava também em bares, principalmente no City Bar, em noitadas de cerveja e sanduíche e muito papo musical.
A terceira vez que encontrei Tatá foi nessa discoteca de Barão. Ele me contou que, por discordância musical, tinha saído do sebo e agora estava ali. E, me conhecendo, perguntou se eu tinha um disco chamado "Aquarela do Brasil", com Elis Regina e Toots Thielemans. Não tinha. Comprei sem ouvir, não só pelo gigantismo dos nomes, mas também porque o Tatá falou que era bom demais.
E é mesmo, pois desde então ele tem audiência cativa na vitrola (CD player, né?) e não dá para se cansar das interpretações particularmente perfeitas de Elis e da gaita jazzística de Toots, sempre dando um molho especial à música.
Tatá, infelizmente, morreu há uns anos, mas, além da saudade dos grandes papos musicais, restaram essas duas lembranças, o CD do Mingus e esse desses dois artistas genais que se reuniram em Estocolmo, na Suécia, em 1969, para produzir essa joia rara.
Há dois textos no encarte, um deles sem autor, escrito apenas para o CD, que introduz o texto maior, do jornalista sueco Oscar Heldiund. No primeiro, ficamos sabendo que Elis não viveu para ver e ouvir o disco na versão digital além de outras informações. Diz o autor que se trata de um dos discos mais alegres e memoráveis de Elis: "Naquela época, em que Elis estava se apaixonando pela Europa pela primeira vez, tinha-se a impressão de que a juventude, energia e vitalidade aquela figurinha delicada irradiava eram eternas. Também pareciam eternos os ritmos que permeavam toda sua pessoa e a gama surpreendente de texturas, dinâmica e expressão contida naquela voz extraordinária, tão eternos quanto a garganta que os produzia."
Já o jornalista que assina o texto maior, que estava no LP original, é só elogios a ambos os artistas. Sobre o belga Toots: "... é capaz de tocar e assobiar e tocar para o sol da meia-noite de tal modo que os mosquitos caem mortos de tanta beleza."
Sobre Elis: "Nascida e criada no sul provinciano, onde deveria se tornar professora de jardim de infância. Mas não. Em vez disso foi para o Rio e começou a cantar. (...) o que foi bom para ela e para o Rio."
O CD não tem ficha técnica (talvez o LP tivesse) e, depois de muito pesquisa na internet, encontrei numa página chamada Discogs que parece ser de Portugal. Lá está que as faixas 3, 9 e 12 foram arranjadas por Claes Rosendahl. Que o contrabaixo esteve nas mãos de Jurandir Duarte, que o baterista foi o grande Wilson das Neves, que o violão foi do genial Roberto Menescal, a percussão de Hermes Contesini e o piano a cargo do também grande Antonio Adolfo. Com um time desse, Elis e Toots deitaram e rolaram...



O disco começa com nada menos que "Wave", um dos sucessos mundiais de Tom Jobim, cuja letra era para ser de Chico Buarque, mas ele demorou tanto que Tom só aproveitou a primeira frase, que Chico fez assim que ouviu a música pela primeira vez, na casa de Tom e levou a gravação para botar letra. Mas demorou...
E segue com "Aquarela do Brasil" (Ari Barroso) e "Nega do Cabelo Duro" (Rubens Soares e David Nasser) num mix que nem tinha esse nome quando foi gravado.
A gaita de Toots fica sozinha na terceira faixa, "Visão", de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar., mas Elis volta na faixa seguinte com "O Sonho" de Egberto Gismonti, apesar de na capa e no encarte essa música estar como a oitava.
Aliás, a relação das músicas está uma bagunça completa, por isso não vou dar aqui a sequência. Além das quatro já citadas, compõem o disco "Corrida de Jangada (Edu Lobo e Capinan); Wilsamba (instrumental, de Roberto Menescal); Você (Menescal e Bôscoli); o Barquinho (Menescal e Bôscoli); "Five for Elis" (T. Thielemans); "Canto de Ossanha"(Baden Powell e Vinicius de Moraes); "Honeysuckle Rose" (F. Waller e A. Razaf) e "A Volta" (Menescal e Bôscoli). 
Há vários sites de vendas de CD que têm o disco, com preços variados (alguns o chamam de raridade), mas ele pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=aIdrw46hOJU&list=PLVzIDK0SR6tAak9pFVnNdz7-B54Q8kHxy .

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Breganejomo-nos

 Por Ronaldo Faria


Wandeilton, que era para ser chamado de Wando não fosse o moço do cartório contra homenagem a ídolos e defensor dos nomes que nem precisariam de CPF para não ter outro igual, era desses que distribuía rosas vermelhas às futuras ou nunca feitas amantes, fazia versos em dodecassílabos, fosse lá o que isso fosse, declamava poemas de outros criadores e se dizia às portas da morte se a desejada decidisse nem um beijo no rosto dar.
Wandeilton, trabalhador de obra civil, onde a civilidade não volta apesar do esforço sol a sol de carregar tijolos e sacos de cimento, era um a mais. Mal-ajambrado, desequilibrado no fio da navalha, desconjurado nas fés que a vida dá, ia a cada dia a tentar se achar. Acabadas as tantas horas de trabalho, corria para o boteco mais próximo onde uma dose de pinga fosse maior que o salário mirrado do término do mês. E lá ouvia que a dor um dia iria acabar.
Na estrada que o sortilégio se faz descrédito e demanda, Wandeilton surgia enamorado da orgia que o desejo previa ser real. Mas, ao fim de cada madrugada, quando o dia tragava as gotas que ainda teimavam em descer do copo em embriaguez, voltava ao alojamento da obra para dormir a ouvir o ronco do Alcino, paraibano atarracado e altaneiro. Assim, a cumprir seu capítulo fagueiro, lembrava de ter construído o viaduto de mão única e primeiro.
No dia seguinte, quando o mesmo pedinte tentava conseguir um pão dormido da sopa de pacote de letrinhas, Wandeilton molhava o corpo na água fria que corria dos canos que vinham da rua e retomava sua sentença tensa. Na cabeça, além do capacete obrigatório que fervia a moleira, a esperança de encontrar um amor. Como diria Wando, uma moça para se abraçar e que mesmo não sendo tão pura pudesse, ao menos, embolar nos cabelos.
Assim, por fim, foi com Francineide, em homenagem às avós Francisca e Neide, por parte de mãe, que bateu o pé na maternidade e disse que sua filha não se chamaria Gretchen, que o pai queria colocar, que Wandeilton se encontrou. Numa esquina escura, onde gente pura não vai, se encontraram e se agarraram, se beijaram, desceram as roupas, se penetraram, gozaram, disseram foi bom pra você e pra mim, se desejaram e foram curtir o Wando cantar.
A partir desse dia, na mesmice de nossos todos dias (e deles também), passaram a ser um só. Depois, num casebre de periferia ou subúrbio, fizeram que nem lebre: um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete filhos. Hoje, Wandeilton é chefe de obra e Francineide faz faxina pra quatro madames de bairro chique. Quando eles não estão em casa, Wancleide, filha mais velha, cuida dos outros rebentos. E assim, com esforço e bolsa-família, vão tocando a vida. Na parede, um pôster do Wando, que Deus o tenha, ganha destaque na sala. No quarto brilha solitária uma moldura com Nossa Senhora.

sábado, 12 de outubro de 2024

Nas ruelas da emoção

 Por Ronaldo Faria


As ruelas eram estreitas naquilo que manda serem as ruelas de favela. Se as portas abrissem para fora, alguém teria de esperar um entrar pra sair ou sair pra poder entrar. Nelas, nem preá conseguia fazer rodízio de cria. Mas Veneranda, dessas que se venera desde o nascimento, conseguia seguir por todas como fosse cabrocha em dia de desfile de escola de samba. Driblava cada esquina no seu microscópico tamanho de milímetros quadrados, onde até quadrilátero de palmos era de difícil existir, como fosse uma das tantas moscas que habitavam o lugar. E ia com as coxas a brilharem no sol sob o céu que coloria cada passo que dava. Por onde passava até as biqueiras pediam para o movimento parar. Algo mais importante que trocar gramas por cédulas ou cartões de crédito estava a acontecer. Veneranda descia o morro para o asfalto à sua beleza se render.
O mês era de fevereiro. Quente como todo fevereiro brasileiro, a ver descer chuva vez ou outra a derramar águas, encher ruas e desaguar em esgotos cheios de entulhos. Nessas horas a moçada tinha de correr para salvar os bagulhos. E quem tinha janela que pudesse fechar se mandava de um cômodo ao outro para cerrar a vista do concreto do vizinho defronte. Mas, se Veneranda estivesse na rua, o tal de Pedrão do Céu, esse que dizem cuidar do departamento de águas do além, segurava a válvula e xingava o anjo mais puxa-saco que quisesse ver o tempo cair. “Seu babaca de asas de bosta, quer molhar aquilo que Deus resolveu fazer como exemplo maior de beleza? Está suspenso por um século. Vá pro limbo pensar na merda que queria fazer!” E assim o tempo escurecia, carregava de nuvens negras, mas continuava límpido até que Veneranda chegasse ao seu destino.
Um dia, porém, nesses dias que nem o Criador consegue ter explicação plausível, Veneranda encontrou Fausto, ser infausto que ninguém consegue dizer a que veio. De metrô, mototáxi, alternativo ou busão? Ninguém conseguia responder. Sabia-se apenas que ele estava lá, próximo dos olhos de Veneranda, a desbotar da cena que podia se esperar no desesperar do fim. Ser que se não tivesse conseguido vingar do parto difícil que sua mãe (Quitéria o teve quase como diarreia), não teria feito falta nenhuma ao mundo. Contudo, nesses absurdos que a trama da escrita dá, perpetuou sua chegada. E conquistou a mulher que todos, todas e todes mortais queriam ter. Nele, Veneranda entregou tudo aquilo que tinha. E fez-se amante e única. Virou joguete do destino e sua voz, em falsete, disse que era dele até a morte todo o seu viver. O mundo estava fadado a perdê-la ao sempre. Mas, para sorte do texto, sem pretexto milicianos invadiram o local e numa bala achada o peito de Fausto se encontrou. No enterro, além dela, linda, viúva nunca casada em cascatas de lágrimas, um surdo batia e marcava a felicidade de milhares de olhos que sabiam que o luto um dia iria acabar. E nesse cessar, Veneranda de novo seria a imaginação da fábula milenar. Do alto, até a lua resolveu brotar para festejar...

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Seis e nada mais

 Por Ronaldo Faria


Foram seis anos de amor e entrega. Sem guerras e tréguas. Entre a calçada da praia e a areia do mar. Não chegaram na tal crise dos sete anos. A separação fez-se antes. Como tragédia de Dante ou desertor de qualquer quartel de Abrantes. Agora, pouco importava saber o que aconteceu. Se houve morte de miliciano, traficante ou civil. A bala perdida do fuzil algum corpo torto encontrou. Estamos no Brasil.
Mas os seis anos estavam lá. Carinhos, olhares, esperas e ternura ínfima. Tempos de ladeiras e carnavais sem folia. Talvez um lampejo de alegria. Na finitude que só sua chegada dá, o tempo não disse antes para a solidão que ela ia aportar e ficar. Como brinquedo de folguedo de bloco de frevo, deixou para o último beijo a certeza da fria nostalgia. E assim se foi, coração na alternância da lembrança e da dor.
-- Foi bom. Foi... Verbo no passado que o presente sabe que ficará até o fim, no futuro.
Nas teclas transversas do computador, com a inimaginável puta dor, Aparício parece um palhaço no picadeiro da vida que o circo mambembe do tempo coloca com ingressos todos os dias a nos vender. Mas continua seu trilhar de pular do trapézio e engolir facas sob as luzes do holofote caolha. Para ele, o que ainda vier é lucro, nas despesas da espera das chamas que vão juntar duas cinzas numa só criação.
Na inglória glória da viagem entre neurônios histriônicos e seus delírios mortais, tais e quais oferendas de rendas a Iemanjá, Aparício transita na fina flor da lâmina da faca que corta segundos de agora e depois. No apocalipse da dramaturgia empírica do primarismo vocal, o branco e o preto, o vermelho e o cinza são apenas cores transgênicas e loucas. Em seis anos, o céu de sol e luar é semente de juntar...

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Saudade e Rick Wakeman

 Por Ronaldo Faria


Rua escura, soturna, absurda e abstrata em si mesma. Entre uma gota e outra de chuva fina, uma nota e outra de música ínfima, o som do bêbado que chora a morte do olhar mais perpétuo e terno que já se viu. “Até quando essa tristeza dilacerante, esse precipício entre a realidade e a saudade?” Josué, taciturno ser largado à solidão de si mesmo, contava os minutos que se largavam no asfalto e corriam para os ralos e esgotos públicos. Quem sabe logo ali perto um púbis não estaria a se juntar à água que se esvaía fria e passageira... No ônibus que transitava deserto e reto, pneus lançavam jorros de enxurrada tardia. Longilínea, Lavínia se lavava de lânguidos beijos e saliva. No apartamento que estava defronte da cena ela brincava de ser rainha num mundo etéreo e tragicômico. Atônito, Josué vivia noutro mundo. Catatônico, embriagado de tragos e trovas, ia ao centro da sua terra que não tinha fim ou fundo para afundar.
Numa casa próxima, Abelardo tomava seu suco natural de babosa. No fogão a água fervia e condensava para tentar encontrar as nuvens que se preparavam para cair na cidade em orgia. Se desse tempo de subir em vapor, seria a chuva que lavaria o quintal que Abelardo nunca regou. A rosa cálida agradeceria, a grama queimada e esturricada saborearia enfim a vida, a árvore morta e seca esperaria o milagre de renascer. Quem sabe até a pomba que aparecia de vez em quando para comer resto do lixo iria, por fim, aprender a sonorizar... Mas, para Josué e Lavínia, espectadores de tudo sem saber sequer que tal cena se faria, o momento era outro. “O céu fechou geral. O dilúvio que não deu tempo da arca construir vai cair”, pensou Josué. “Ainda bem que estou em casa, senão a chapinha ia pro saco”, deduziu Lavínia. “Que  o mundo se acabe em água porque o fogo é foda”, frisou Abelardo. “Que esse merda não tampe a panela”, sentenciou o vapor gasoso.
Mas, para salvar o emprego do meteorologista Araújo Jorge que não previu a tormenta, tudo não passou de jogo de cena. As nuvens passaram, a lua abriu e o breu virou neon, faróis de carros e telas de celulares a clicarem pratos de comida, beijos e encontros. “Tontos daqueles que acreditam em previsão do tempo”, disse orgulhoso de si Benevides, que não estava ainda na trama mas não tinha conseguido, no passado, ser aprovado no vestibular de Meteorologia. “Que todos tomem no meio dos seus cus!” No centro da eternidade que nunca nenhum de nós saberá se existe, um tal de Deus de mil e uma denominações e crenças ao longo dos séculos ri de tudo, toma outra taça de vinho que estava em promoção nas vinícolas do Éden e manda preparar uma tormenta que atingirá o planeta de norte a sul, leste a oeste. “Estou de saco cheio de tanto profetizar!” No fogão, o vapor d’água consegue uma fresta de janela alcançar e sai a sorrir: “Chuva vou virar!”


domingo, 6 de outubro de 2024

O ótimo Quarteto Wynton Marsalis

Por Edmilson Siqueira


Sabe aqueles músicos que são uma fonte inesgotável de talento, que tudo que fazem e gravam se torna clássico? Pois Wynton Marsalis é um desses. Já escrevi sobre ele aqui duas vezes, a primeiro comentando um CD duplo, gravado ao vivo, e a segunda, um disco que ele gravou com ninguém menos que Eric Clapton, enveredando pela praia dos blues.
Pois desta vez trata-se de um disco genuíno de jazz com vários standards todos magnificamente interpretados. O disco se chama, bem a propósito, "Marsalis Standard Times" e só não digo que é o melhor dos três, porque todos são muito bons e não dá para classificá-los.
Lançado em 1987 pela CBS norte-americana, foi gravado em dois estúdios: primeiro no da RCA, nos dias 29 e 30 de maio e, depois no da Sony, em 24 e 25 de setembro de 1986. O grupo formado por Marsalis par a empreitadas só tinha cobras: além de Marsalis no trompete, Marcus Roberts no piano; Robert Leslie Hurst III no contrabaixo e Jeff Watts na bateria. 
O encarte do disco tem um longo texto assinado por Stanley Crouch, um poeta americano, crítico musical e cultural, colunista, romancista e biógrafo. Ele era conhecido por sua crítica de jazz e por alguns livros.
Crouch abre assim seu artigo: "Ao longo dessa gravação, o Quarteto Wynton Marsalis faz com que o jazz que ele nos entrega seja pleno de integridade, ousadia e sem remorso. Mas, ao assumir seleções do repertório padrão que inspiraram um bom número de performances clássicas do jazz, Marsalis e seus amigos estão se colocando em uma situação em que seu trabalho tem de ser julgado em relação ao melhor de toda tradição. Aqui, eles são desafiados a afirmar suas imaginações em contextos que não são nem misteriosos nem exóticos, nem desconhecidos nem carentes de obras-primas tão imponentes, que alguns músicos desta geração escolheram evitá-los completamente."
Por aí já se vê que a gravação poderia ter como resultado uma enorme encrenca. Um repertório cheio de clássicos do jazz é terreno sagrado para muitos músicos e os poucos que se atrevem a adentrá-lo, geralmente o fazem depois de muita estrada. 

 
"Mas", prossegue  Crouch, "o Quarteto de Wynton Marsalis não é dado à evasão, e é por isso que observamos coisas novas acontecendo com essas peças familiares e encontramos espaços para novas pegadas em pisos de salão de baile arranhados e marcados por centenas de pés".
Ou seja, o resultado todo foi muito bom, com a moçada provando que a pouca idade não foi obstáculo para que a excelência do resultado se fizesse presente.
Vai saí que todo disco é um passeio gostoso por músicas que estão na lembrança de todo apreciados de jazz. Saca só o tal do repertório:
1 - Caravan (Juan Tizol e Duke Ellington)
2 - April in Paris (Vernon Duke e Edgard Harburg) 
3 - Cherokee (Ray Noble)
4 - Goodbye (G. Jenkins)
5 - New Orleans (H. Carmichael)
6 - Soon All Will Know ( W. Marsalis)
7 - Foggy Day (George e Ira Gershwin)
8 - The Song Is You (Jerome Kern e Oscar Hammerstein II)
9 - Memories of You (Eubie Blake e Andy Razaf)
10 - In the Afterglow (Wynton Marsalis)
11 Autumn Leaves (Joseph Kosma e Jacques Prévert)
11 Cherokee (Ray Noble)
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=JsVMXCirqto&list=PLupfniYUeXcnVY8t4todnj6gIg-H25Zls

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Emile Zola ou Cláudio Zoli?

 Por Ronaldo Faria

 


A noite rolava meio emblemática e meio trágica na sua atávica forma de ser e sobreviver. Casais se lambiam, se falavam, se arfavam, se comiam, se tragavam em goles que surgiam a cada sorver como gaitas de fole. E trocavam beijos, línguas invasivas, dentes abertos, garganta a engolir cuspes e controvérsias que toda paixão dá. E se abraçavam, sangravam, contorciam, retorciam feito fetos que alguns desafetos deixaram brotar. O que será o próximo dia?
Benito, filho bendito de casal qualquer, homem, hímen e mulher, não estava nem aí para o que pudesse florescer e vir. Para ele, a fórceps, o mundo era somente sonho raro. Sobra de luz de poste na esquina onde a vida une vidas solitárias, apátridas que a catarse traveste de paraíso e ultimato trágico de se viver. Benito, vivo em si a crer que nunca é tarde para sobreviver, rolava a noite nos sons que o cataclismo ungido de fé nos corpos nus e banidos um dia será e seviciará o destino num querer. E talvez, quem saberá, num asilo insólito juntará a maternidade.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Amália, a deusa que queimava fornalhas

 Por Ronaldo Faria

 


Ela era a passista mais linda da quadra e da avenida, da vida, desejada por todos e mais alguns que nem sequer a conheciam. Mulata (que me perdoem os puristas de agora com seus verbetes, mas sou do tempo que tal denominação era forma de idolatrar a beleza da pele negra/preta) que os poetas do samba glorificavam em rimas e glorificações, Amália era o brilho que as estrelas volta e meia não traziam aos céus porque tinham guardado todo o esplendor para ela. Seu corpo, seus trejeitos, seu remelexo, seu jeito de ser, tudo e algo mais eram muito além daquilo que coração pode imaginar. Sua boca, seus lábios, seus olhos, cabelo, ela como um todo, eram escultura que nem o maior do escultores suporia fazer ou supor. E o sorriso? Era desses que nem a mais solitária solidão ou a dor maior saberiam viver sem sucumbir. Michelangelo nunca diria “parla”. Ao contrário, teria se ajoelhado diante dela e teria dito: “O que eu devo falar?” Enfim, a mulher entre todas as mulheres. Alhures, seria a Eva de todos os Adões do planeta. A correr as areias da praia deserta e iluminada pela lua que, ademais, brilhava só para ela poder desfilar seu corpo solto. Amália era musa de qualquer bateria que quisesse dez na nota final. E os batuqueiros até poderiam atravessar o samba. Os olhos dos jurados estariam nela, a delirar. Com certeza qualquer deslize na harmonia seria esquecido.
Amália, amor da dália aberta, delírio do compositor, coisinha tão bonitinha do pai, porém, tinha um algo a se pensar e divagar. Amava José, vagabundo da pior espécie. Desses que a ficha corrida no passado fazia a bobina do fax acabar. Para ele o tal de 171 era coisa barata. Malandro que otário não sabia sequer e nem mesmo que ia engolir, ele se fazia de forte diante do aporte que Amália entregava. Como alguém, em sã consciência, se é que a ciência compreenderia tal deslize do amor, poderia resistir aos desejos da mulher que era a obra maior que Deus decidiu fazer num dia boladão? Mas José, retardado desde o nascimento quando faltou força para sua mãe colocá-lo para fora, apesar dos gritos da parteira, saberia ter sido sorteado na milhar ou na loteria federal? Qual... Para ele, dois e mais dois era o que fosse. Uma cheirada e outra eram a chamada real. Mesmo que assim, a todos mortais, Amália fosse o prêmio apenas sonhado. O bilhete nunca premiado. Mas José, como bom carioca, a saber-se idólatra, seguia na sua delirante oca. Era apenas um nome no CPC do crediário de ter o Éden sublime da cabrocha iluminada pelos holofotes da razão sem poder pagar. E assim, perto do fim, o escritor descreve, à verve, aquilo que as letras nem sabem mais descrever. Nos ouvidos os tamborins marcam a criação. Algum dia haveremos todos de morrer de solidão. E José? Esse que vá saber, talvez, o que é ser um cuzão sem colhão...

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Bel Padovani, de novo

Por Edmilson Siqueira


Já escrevi um artigo aqui sobre a excelente Izabel Padovani em 2022. Tratava-se do disco "Desassossego", de 2009, um excelente trabalho resultante do Prêmio Visa de MPB que ela ganhou, mui merecidamente, por sinal. Se quiser ler o link é esse: https://osmusicoolatras.blogspot.com/2022/03/desassossego-um-disco-perfeito-de-bel.html. 
Pois hoje volto a falar dessa artista campineira que ganhou o Brasil e parte do mundo sem claro, fazer aqui o sucesso que merece, mas tem deixado sua marca inconfundível em todas as interpretações que grava. E volto para comentar o disco "Mosaico", gravado entre agosto de setembro de 2008. 
Não sei se esse é o primeiro disco dela, mas se for, ela já mostrava impressionante maturidade nas interpretações. Acompanhada por um time de ótimos músicos - Anderson Alves (clarinete), Denni Pontes (percussão), Iara Ziggiatti (violoncelo), Luís Passos (guitarra e bandolim), Marcelo Valezi (flauta e sax), Paulo Freire (viola), Rafael dos Santos (piano) e Ronaldo Saggiorato (baixo, violão e programação eletrônica), Bel (como é mais conhecida) passeia por 11 faixas com desenvoltura, mostrando que o que estava ali começando, se é qu eestava começando, era algo que veio para ficar. 
Dezesseis anos depois, o disco soa atual, como se fosse gravado neste ano, pois ele não apela a modismos, com um repertório muito bem escolhido entre a produção nacional que, apesar das críticas que vemos por aí, continua produzindo muita música de alta qualidade. Basta pesquisar, já que os tesouros da MPB andam cada vez mais escondidos. 
O disco começa com "Alto Mar" (Dante Ozzetti e Luis Tatit), um choro moderno que não fica devendo nada aos grandes choros brasileiros. 
A segunda faixa é "Canção de Não Dormir" (Arthur Nestrovski e Eucanaã Ferraz), música densa onde se destaca, além de perfeita interpretação de Bel, o piano de Rafael dos Santos. 
A seguir temos "Tudo Teu" (Fred Martins e Marcelo Diniz), uma canção de entrega, onde a percussão dá um tom meio indiano e Bel se encarrega do resto. 
"Capital"  a quarta faixa é de ninguém menos que Guinga em parceria com Simone Guimarães. O talento criativo de Guinga nos traz uma melodia que parece extraída dos choros de Villa-Lobos e Bel dá conta do recado, principalmente na segunda parte onde a interpretação se torna mais difícil.  
A quinta faixa é "Mortal Loucura" (Zé Miguel Wisnik e Gregório de Matos, uma "parceria" que fala por si). Trata-se de um soneto do poeta que viveu entre musicado por Wisnik, que virou impressionante "oração" na voz e coro de Bel. 
"Bote" (Luiz Felipe Gama e Kiko Dinucci), a sexta faixa, é a música pop do disco, com excelente solo de guitarra de Luís Passos. 



A sétima faixa e "Deixando o Pago" (Vitor Ramil e João da Cunha Vargas), é uma canção nordestina, que se destaca pela ótima melodia, em lamentos próprios dos cantos do povo daquelas paragens. 
"Primeiro Choro de Lucas" (André Mehmari), a oitava faixa, é uma canção sem letras, que Isabel acompanha em ótimo vocalize, com destaque para o baixo de seis cordas de Ronaldo Saggiorato.   
Não surpreende a presença de uma música de Arrigo Barnabé - "Sinhazinha em Chamas" - no disco. Izabel pesquisa nossos compositores e encontra pérolas como essa canção, interpretada corretamente como num sarau do século 19. 
A décima faixa é "Barriguda" (Zé Paulo Becker e Thiago Amud) e sua longa letra é uma sucessão de trava-língua que só alguém muito bem preparado pode cantar. E Bel passeia pela intrincada música como se cantasse uma ciranda.  
Encerrando a ótima sessão musical, Isabel nos traz "Do Compositor (Eduardo Klébis), um gostoso samba que versa sobre as artes de se compor, muito bem desenvolvido pelo autor.  
Trata-se, enfim, de um ótimo disco que, como disse, não se perde com o tempo. Daqui a muito tempo, ele estará sendo ouvido com o mesmo prazer que se tem hoje diante da ótima interpretação, do repertório sem concessões e o grande trabalho dos músicos, tudo isso tornando esse disco obrigatório para os amantes da boa MPB. 
O CD pode ser comprado no Mercado Livre ou em outros bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no Spotfy: https://open.spotify.com/intl-pt/album/6E3woEEiIXXWGATLcy77YZ

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Na sopa fria do samba

 Por Ronaldo Faria


 

O prato de sopa termina. Na terrina sobrou sopro de fome e outro de dor. O barraco de zinco e madeira, como manda a poesia carola sob o manto azul da padroeira do Brasil, vê as gotas de chuva pingarem quietas e serenas. Uma ou outra, como amante sirena, cai sobre a cama e perfaz o drama. Molha o lençol ralo, o colchão de molas sem molejo e o travesseiro que cuida de uma cabeça vazia depois de umas tantas e várias doses. Edgar, dono do lugar, pega a cuíca e toma o rumo do ensaio do bloco. “Um dia a gente vira escola de samba. E aí ninguém segura mais. Grupo especial e título na Sapucaí. Pode ser daqui a dez anos, vinte, sei lá quanto tempo. Mas esse dia irá chegar”, pensava a delirar.
Sobe no trem e segue cada estação na retidão que a dona da ferrovia dá. Consegue um lugar sentado. Põe o instrumento no colo e segue a ver gente entrar e sair. Tem homem suado, cansado do trabalho, mulher igual e algumas com filhos e prole a voltar ou ir, vendedor de muamba, batedor de carteira e celular. Tem a gorda que reclama quando o velho com artrose pede para liberar lugar, maloqueiro que quer chegar o mais rápido possível para a encomenda vazar, sambista feito ele que quer apenas sambar. Espaço democrático e autocrático, o trem trilha nos trilhos as estações uma a uma. Assim, após póstumas saudades e vidas em descompasso, o trem para na estação desejada. Aí é subir a passarela, andar duas ruelas e chegar na roda que samba.
- Edgar, até que enfim você chegou. A bateria estava na falta!
- Essa bosta de trem sempre atrasa, mas estou aqui. Vamos fazer a bagunça rolar!
Na quadra improvisada a música começa a soar. Devagar, chegam as morenas, os passistas, o povo que samba. E a coisa vai enchendo, encorpando, incorporando desejos e ensejos, a trazer esperança e paixão. Edgar nem lembra que teria de enxugar o barraco e botar o colchão, se o sol no dia de manhã vier brilhar, para secar. Com os dedos a brincarem no couro da cuíca, é somente sonho. Bisonho e sacana, o sol diz a si mesmo que no próximo dia deixará de raiar. A solução de Edgar será encontrar outro empório de vidas para recolher a sina que a cuíca deixará vazia.

sábado, 28 de setembro de 2024

O enterro da Jacinta

 Por Ronaldo Faria


- Você só pode estar de sacanagem querendo que eu vá ao enterro da Jacinta. Sinto muito, mas eu é que não vou!
- Mas, Cristiano, é sua irmã!
- Você que está dizendo. Pra mim, não é. Está com dó, jogue rosas você no caixão!
A roda de samba rolava com terra levantando e limões regados de cachaça a descer. Hemeregildo queria convencer a todo o custo Cristiano a ir ao enterro da irmã. Tudo bem que a Terra não sentirá falta nenhuma da defunta fresca e seus feitos estarão restritos a um hiato que de nada servirão nem de orelha de livro na existência finda. No som rola Dona Ivone Lara, que descansa ao lado do pai e com o filho e o espírito santo a tocarem repenique e pandeiro. Os anjos fazem o backing vocal e os instrumentos necessários para ela. Já para Jacinta, nem Pedro, o Pedrão da Porta, compareceu para deixar entrar. “Tenho mais o que fazer”, disse ele a um assistente virginal. “Mande descer pro limbo e já está bom demais” – sentenciou.
- Mas Cristiano, isso é heresia!
- Nem sei que merda é essa, mas se for um vá com Deus, está bem dito. E saravá Omolu.
- Como faço pra te convencer?
- Não faz. Você viu que o Cacique de Ramos vai sair logo mais? Aliás, já estou atrasado para a concentração.
- Se a gente pegar o trem chega rápido no Caju. A gente desce na passarela da Avenida Brasil e estamos lá... depois vamos no desfile.
- Hemeregildo, vulgo Gil da Feira, você já foi tomar no meio do cu? Vá e veja se é bom!
A tarde caía do céu com raios fulgidos, fugidios e fugazes. Coisa de poesia pura ou samba enredo raiz. A resenha dos amigos, porém, era como discussão de terra plana ou redonda. Uma zona proverbial. Ninguém nunca chegaria num ponto final.
- Sabe que hoje pela manhã eu achei que estava enfartando? Tinha certeza de que ia apagar também. Ser recolhido no rabecão e ficar à espera de alguém para me enterrar? Pois é. Fiquei no meio do fio da faca, mas estou aqui. A beber, ouvir o samba rolar, na expectativa de virar o Centro com o Cacique. Quero mais do que isso? Não! Então, larga do meu pé!
- Tudo bem, parei. Só pensei na Dona Eulália, que gostaria de ver você no enterro da filha dela.
- Você lembra que a Dona Eulália, minha santa mãe, já morreu há quase quatro anos?
- Eu sei. É que tem o espírito a vagar...
- Não tem mais. Agora é estrela brilhando no céu. Aliás, estou atrasado para a ala dos compositores do Cacique. Fui! Everaldo, pendura mais essa! Pago no quinto dia útil do mês que vem, como sempre.
Cristiano, Cristo num ano qualquer, como quis seu pai, austero e católico crente, saiu e tomou rumo do Centro. Nele, viveria sua vida. Saberia que tudo aquilo que o passado trouxe em replay era mera mentira do amor, coisa efêmera. Agora só restava esperar uma nova fêmea, o batuque sincopado e a certeza de que viver é sempre esperar o dilúvio que a finitude trará. No céu, uma chuva fina trazia o fim do sufoco dos foliões. Na capela funerária, vazia, a irmã cheirava a vela queimada.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Dona de Castelo (sob a influência do som de Jards Macalé)

 Por Ronaldo Faria

 


- Parei! Nunca mais eu bebo. Chega!
- Mas o que é isso, Bonifácio? O que foi que deu em você?
- Deu! Imagina o que é você acordar mais despirocado do que já é. Nem na fé dá pra aguentar a veia dilatada, a dor de cabeça, a treta interior. Cansei!
- Mas cada dia é cada dia. Vem a tal ressaca, tardia. Tudo bem. Mas vem também a orgia que vale momentos, pesadelos, desmazelos e os unguentos que ensinam a nos recriar.
- Só se for pra você. Não dá mais! Vou me redimir.
Cercados de mesas, engradados e alguns loucos que decidem nos dados quem a conta vai pagar, Bonifácio e Souza fazem da prosa o botão de rosa que espera a água da esperança e da bonança para florir. Na mesa, o prato de rabada espera numa barriga dormir. Nas desmesuradas doses que já desceram, a loucura etílica se deixa curtir.
- Mas, sejamos verdadeiros, Bonifácio: estar aqui não é do caralho?
- Carlão, na rabada tá faltando alho! Resolveu economizar no tempero? Muda de profissão. Deixa de ser dono de bar!
- Me responde.
- Sei lá. Não estou preocupado com isso. Cada segundo vivido é cada segundo passado. É estar sendo carcomido e comido pelo tempo.
- Que merda, Bonifácio, já vi neguinho pra baixo, mas você está exagerando.
- Pra porra, cada um que sabe de si.
No silêncio da mente que se espalha e queima feito palha, o personagem principal desta história vira quase hiato. À busca do seu rumo ou porto, vive em Pangeia. A navegar em Pantalassa, espera ver surgir o grumete que grite “terra à vista”. Por enquanto, apenas Souza tanta tomar conta da bússola onde o timão irá migrar e virar.
- Quer a saideira? Está cedo. Acabou de dar meia-noite.
- Tudo bem. Vamos nessa. Se é pra morrer hoje, que seja em festa.
Por falar em festa, sem pressa de prosear à toa, a madrugada que prepara a chegada se torna o torniquete para as emoções que juntam dores e unções. Os dois riem de tudo, levantam os copos em brindes, veem o tempo se esconder dos relógios para não terminar. Amanhã? Quem, em sã consciência, sabe se existirá amanhã? Na manha, o sol não força a barra para sair.
- Quer saber: foda-se o imbróglio que vier! Você tem razão. Ergamos os copos que, reis, debelam toda solidão! Carlão, vê as saideiras que hoje é hora de remissão!
No poste que ilumina a rua, uma pomba acorda e caga no chão. A vida, sonora e real, não liga para a busca de solução. Para elas, a pomba e a vida, sequer existe ilusão.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Tosse macaleônica

Por Ronaldo Faria


A tosse sai afônica da boca. No som que permeia o lugar, Jards Macalé. No copo, a centelha dourada da cerveja que desce em gotas de suor o copo americano que descansa na mesa do bar. Nas mãos de Constâncio, parceiro de si mesmo nessa trilha que é nascer e viver, ele sobe e desce, enche e esvazia. Amanhã, talvez azia. Agora, apenas uma velha e rotineira lombalgia. Na cabeça, saudade da mulher que deve agora estar ajudando a cadela da filha parir. “Acho que não era mesmo pra ser. O tempo passou, ensejou, derreou, foi e voltou, ficou parado na linha e o trem, ao que parece, passou por cima. Agora, é tentar de novo na solidão reviver.”
Constâncio, ser inconstante na trajetória do universo, sabia, porém, que cada novo refrão se faz um novo verso. E cada letra escrita é o fim de sílabas mil a sibilarem nas cobras que fingem rastejar para viver. Na subida do morro, já contaram e até dizia o poeta antigo, bateram na mulher de alguém. Nas poucas árvores que ainda restam na viela, cotovia não canta ou gorjeia mais. E nem há tanto pau para um pica-pau picar. Pelo menos a barreira criada pelo dono do morro impede qualquer carro de subir. Foi bom porque o português tomou o pouco de rua para as mesas colocar. “Imagina a gente nem ter como sentar pra ver o resto de dia passar.”
A garganta arranha e a tosse volta. A tarde, tardia enquanto a chuva decide que não cairá, espera a imaginação constante fluir. Por certo, nalgum lugar haverá um belo porvir. Para Constâncio, o que estará por vir é a crença tresloucada de que ainda há porque viver e ser. Ao longe, um fogueteiro avisa que os alemães passaram defronte da biqueira. Mas não pararam. A contenção garantiu que hoje não era dia de visitar o IML por lado nenhum. “Pelo menos vamos ter um pouco de paz. Aqui ainda não tem briga diária de Israel e Hamas”, pensou.
O som rola no substrato que o trato de pensador deixa rolar. O samba se mistura à mágica que o multiverso macaleônico e camaleônico dá. Do alto, desce a nova sensação do morro. Se fosse na Zona Sul, novos Vinícius e Tons recriariam a garota eternizada na passada ao mar. E, pasmem, ela perguntou a Constâncio se poderia sentar. Qual o quê... Ele mal soube responder. Silêncio é aceite. “Seu José, traz uma linguiça no azeite!” E lá ficaram. Se bronzearam com o resto se sol, resenharam, cantaram, falaram, lembraram, beijaram, cansaram, cataram o rumo da casa e se amaram. Longe, num magazine em liquidação, todos viram a fila e andaram. Ao vivo, a dor tinha acabado.

domingo, 22 de setembro de 2024

Paulo Moura: bom de qualquer jeito

Por Edmilson Siqueira


O que é melhor de ouvir: Paulo Moura tocando em um quarteto com piano, baixo e bateria ou Paulo Moura tocando com um hepteto, com outros seis instrumentos, tocados ora por uns ora por outros músicos? A resposta é simples: os grupos são bons em qualquer formação e neles se destaca, claro, o sopro do sax alto de Paulo Moura, pontuando sempre com a mesma qualidade e inspiração. 
É o que se ouve por todas as 17 faixas de um CD que reuniu as músicas de dois LPs de Paulo Moura, o primeiro (o do hepteto) lançado em 1968 e o quarteto, lançado em 1969. 
O resultado é um excelente apanhado da obra desse que foi um dos maiores músicos que o Brasil já produziu. Aclamado pela crítica e respeitadíssimo no meio musical, Paulo Moura lançou cerca de 40 discos solos ou com um outro músico e teve participações em inúmeras coletâneas.  
Paulista, nasceu em São José do Rio Preto em 1932 e morreu em 2010 no Rio de Janeiro. Nesses quase 78 anos (morreu 3 dias antes do 78º aniversário), ele galgou os maiores postos que um instrumentista pode alcançar. Após sua morte, foi lançado, em 2012, o CD Paulo Moura & André Sachs - Fruto Maduro, pela gravadora Biscoito Fino, com dez músicas inéditas, um de seus últimos trabalhos autorais, resultado de uma parceria entre os dois músicos que começou em 2004 e duraria até os momentos finais do maestro. A última gravação registrada no disco foi feita em 25 de março de 2010, alguns meses antes do seu falecimento. No dia 21 de junho de 2012 foi inaugurado o Teatro Paulo Moura, um dos maiores e mais bem equipados teatros do interior de São Paulo, em São José do Rio Preto. Em 2013, o CD Fruto Maduro recebeu duas indicações para o 24º Prêmio da Música Brasileira como melhor álbum instrumental e melhor solista. 
O CD lançado em 2007 reúne dois timaços de instrumentistas. No quarteto, Paulo Moura com seu sax alto é acompanhado de ninguém menos que Wagner Tiso ao piano, Luiz Alvez no contrabaixo e Paschoal Meirelles na bateria.  
E pelas oito faixas que o quarteto produziu, nenhuma delas pode ser considerara apenas mais uma para completar o disco. São todas ótimas, não fossem clássicos da MPB, pois são magnificamente interpretadas pelos quatro bambas.  
Segue a lista para deixar qualquer amante da nossa música com água na boca: 
1 - Eu e a Brisa (Johnny Alf) 
2 - Aos Pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda) 
3 - Sá Marina (Antônio Adolfo e Tibério Gaspar 
4- Retrato de Beny Carter (Wagner Tiso) 
5 - Feitio de Oração (Noel Rosa e Vadico) 
6 - Aquarela do Brasil (Ari Barroso) 
7 - General da Banda (Satyro Tancredo Silva e José Alcides)   
8 - Samba de Orfeu (Luiz Bonfá e Antonio Maria) 



Como se vê, é coisa fina. E o mesmo podemos dizer do repertório do disco gravado com um hepteto. Embora nesse caso as músicas não sejam tão conhecidas popularmente (com exceção de 3 delas, também clássicos da MPB), seus autores não deixam dúvidas de que estamos diante de belas canções. 
9 - Filgueiras (Wagner Tiso e Luiz Carlos Alves) 
10 - Tema dos Deuses (Milton Nascimento) 
11 - Terra (Milton Nascimento e Fernando Brant) 
12 - Travessia (Milton Nascimento e Fernando Brant 
13 - Bonita (Antonio Carlos Jobim e Ray Gilbert) 
14 - No Brilho da Faca (Wagner Tiso, Novelli e Paulo Sergio Vale) 
15 - Homem do Meu Mundo (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle) 
16 - Wave (Antonio Carlos Jobim) 
17 - Das Tardes Mais Sós (Milton Nascimento). 
O CD está à venda nos bons sites do ramo. Eu não encontrei no Youtube este CD com os dois discos, mas as músicas nele contidas estão espalhadas por lá.

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...