segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Com Anna Pêgo no ar

 Por Ronaldo Faria


-- Nada? Essa internet deve estar com pau. Ou será o computador? Há semanas nem um oi ou olá? Deve ser praga ou mandinga. Vou orar aos pretos velhos um imenso saravá.
Lupércio, imerso no seu drama impessoal, já que trama a dois é quase uma reunião celestial, não sabia responder a sua pergunta. Há muito havia perdido as respostas. Postas nalgum lugar entre a realidade e a verdade, se verdade há, elas consomem horas e anos, vorazes e casuais, aquelas que surgem de repente e logo, em segundos, se tornam ausentes. Dementes, catastróficas, eufóricas em rimas e métricas, trazem cataclismos vez ou outra quando, cansadas de se saberem incapazes de mudar o próprio mundo, decidem simplesmente hibernar para ressuscitarem a novamente se perguntar.
-- Nada? Será que fora do mundo virtual, no eufemismo do surgir em si, na realidade que a saudade parece ter sepultado dos afagos e olhares, alhures assoberbados, haverá um resto incerto de lembrar?
Lupércio, imerso na tragédia limítrofe entre o início e o fim, ainda relembra da infausta Clementina. Aquela que sem clemência o deixou. Eremita no seu canto de meros quarenta metros nada quadrados, infausto no latifúndio que o poeta há muito cantara, ouve canções e versos transversos e audíveis. Factíveis no entardecer, dispersos sobremaneira numa despedida. Calado e solitário, prefere não auferir a si compêndios e livros de autoajuda. É apenas mais um a trilhar passos que não voltam, frases nunca ditas, desditas camaleônicas. Ou seja, mais um.
-- Nada? Quantas braçadas tragadas de água do mar e da emoção de amar ainda serão dadas, transcritas em sânscrito, algo que ninguém mais quer aprender a ler ou falar?
Lupércio decide ir à rua. Desce as escadas do seu sétimo andar. O elevador, pantográfico, estava de novo quebrado. No asfalto, com seres enfartando de esperas e chegadas, artroses e vozes silenciosas, relicários e tragédias impessoais, segue de forma reta, ereta quiçá, onde o asfalto permeia rodas de carros e pés de homens e mulheres, todes. Para ele, paulatinamente vem à mente que o mundo de inteligências artificiais e algoritmos é virtual. Lá não existe início e nem fim. É tudo um meio sem receio daquilo que os dedos num teclado vão pedir. Mas, na cena, um morador de rua, desses que nem a rua quer ter, pede umas moedas a Lupércio. “Vale uma nota de 50?” Puto com a resposta jocosa, o andrajoso senhor apenas responde um sonoro “puta que o pariu, vá se foder”. A interseção entre o real e o imaginário com certeza nesse mundo, nesse momento, ainda não se perdeu.

sábado, 21 de dezembro de 2024

A receita

 Por Ronaldo Faria


 
-- E aí?
-- Caganeira, das brabas.
-- Sério? E dá sempre?
-- Não. É tipo libera um dia e trava no outro.
-- Sei. Então fica difícil saber se te dou um laxante ou algo que interrompa a diarreia.
-- Porra, Cardoso, você é meu atendente de farmácia preferido. Nunca erra. Libera algo.
-- Atendente, vírgula. Sou farmacêutico. Só que fica difícil saber aquilo que você tem.
-- Não tem um remédio meio termo, que solta pouco, na medida, e segura pouco, no necessário?
-- Não. O sintoma é um ou é outro. Decida primeiro do que você precisa. Pese os sintomas, faça um levantamento das diarreias e das constipações estomacais. Pegue um calendário e vá somando. No mês que vem você volta com o resultado. Daí, laxante ou um regulador intestinal.
-- Tá bom. Sacanagem, mas tá bom. Me vê então uma cartela de Melhoral pra eu não sair de mãos vazias.
Decepcionado, Cupertino caminha no calçadão a pensar nos seus últimos dias.
-- O que eu vou fazer com essa cartela de Melhoral? Tomara que o vencimento esteja bem distante...
A tarde está quente e seca. As chuvas diluviais de março têm migrado para longe. Raras, quando chegam servem apenas para destruir tudo pela frente.
-- Cadê aquela chuva que servia para aliviar as tardes e dar cor de arco-íris no céu, molhar as plantas e encher de poças as calçadas para o sabiá beber?
Pelo visto não seria hoje que nem uma coisa ou outra iriam acontecer. O calor, aquele que traz torpor e vontade de criar raízes defronte de um ventilador, parece que não ia dar trégua. Os quiosques à beira do mar estão cheios. Copos de chope lotam bandejas e fazem os garçons correrem várias maratonas sem medalhas de ouro ou louros de vitória. No som em volta, papos de mar e botequim. Uma onda também se faz menina aos ouvidos dos menos desavisados ou desinteressados em ouvir as fofocas das mesas ao lado.
-- Quando começou esse limite entre cagar e tampar geral? Claro que foi depois de perder a vesícula. Mas alguns dias depois... Será que demorou para o cérebro registrar a falta? Baita putaria do corpo...
Cupertino já se cansara de perguntar a si mesmo e tentar elucubrar teses e teorias. Agora era chegar em casa, buscar um calendário e marcar com sim (para diarreia) e não (para não). Depois voltar na farmácia e mostrar de modo científico o resultado para o Cardoso.
-- Aí que quero ver ele não me dar um remédio...
Eufórico, sabendo que em trinta dias teria fim o seu drama, chegou no apartamento e logo pensou em abrir uma cerveja para comemorar antecipadamente o diagnóstico final. Não deu tempo: sim um a zero... Na rua um pipoqueiro apregoa a sua doce como “o milho mais doce que já explodiu para o paladar”. No banheiro, Cupertino amaldiçoa o vendedor até sua derradeira geração.  

(Ao som de gente nova da MPB)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Rio de Janeiro no Parabéns

 Por Ronaldo Faria


Sambemos, respeitemos o chorinho como expressão nacional, saudemos a cidade do Rio de Janeiro com suas comunidades, suas favelas, sua violência, sua beleza, sua essência, seu povo, suas maravilhas. Aceitemos que a Bossa Nova se foi, que os poetinhas definharam, que o Estado esqueceu de atender a todos de forma igual. E a folia virou um vendaval de balas perdidas e sol apagado nas retinas. Mas não esqueçamos que a sua maravilha é muito mais do que uma ilha do Brasil. Terra minha, berço do que sou, obrigado por me receber tijucano na sina e a meus pais, nordestinos na nascença. O resto que não se falou ou falei, que o resto vá pra... Saravá!

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Sonhar e realizar

  Por Ronaldo Faria


Nem tudo que a gente sonha vira realidade. Na verdade, tudo vira apenas saudade.

Josué, ensimesmado e pasmado, aperreado e tragicômico, atônito e descerebrado, estava prostrado e agônico no limite entre a agonia e fotofobia. Fóbico e antropofágico, convivia com suas alegrias e sangrias mentais a torcer de que fossem somente alegorias do tempo que se esvaem em volátil teia. Nela, a aranha arranha o último tecer do seu périplo em tear.
Josué, no féretro que cada dia nos dá, procura à altura do seu crer o caminho a percorrer. E segue nos descaminhos comovidos e vividos em próceres aquém. Vívidos quiçá (quiçá é tão bonito, poético e definitivo que dá vontade de colocar em todo texto, quiçá). Um dia Josué certamente será alguém. Afinal, para tudo há um decrépito e infindo amém.
Josué, no céu a lutar contra o dono de lá, seja ele quem for, perpetua sua finitude para escrever em nome de tantos mais que o fazem subscrever coisas que a morte não deixou outros e outras a fazer. E aceita o limite entre a loucura e a sanidade. Sabe que a orgia de um velho xaxado termina no visionário e incrédulo dicionário do certo derrear.
Josué, meio bêbado no momento em que o tormento se faz a morte de um ser vivo, viaja em virgens que se deitam nuas e virginais para as incertas orgias sem fim. Na sóbria realidade que se esconde em recônditos nunca descobertos, cobertas de cetim cobrem os corpos anciões que um dia urgiram algo mais do que a angina. No derredor, em dó maior, o cantor diz que a sombra a tudo ilumina. No futuro, a fúria de saber que para escrever há de sobreviver à dor.
 
(Com o Grande Encontro 3)

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Circo sem sol ao léu

 Por Ronaldo Faria

 


-- Senhoras e senhores, hoje tem grande show da mulher tatuada e imponderada, do homem pinguço, da sogra caridosa, do cunhado cordato sem pegar a última gelada da geladeira! Venham todos ver o mundo se reconhecer sem gênero obrigatório, poder ilusório, corruptos chafurdando na própria lama, tiros e sangue a romperem corpos e asfaltos em assaltos! Sem sobressaltos, olhem hoje e só hoje o quanto e tanto é possível sonhar e acreditar que amanhã será melhor. Que poderemos descobrir uma palavra consternada chamada amor, a sabermos que cada palavra será lavrada em terreno fértil que brotará sementes de árvores que sairão de um pé de feijão. E nele todos nós subiremos além das nuvens e nos fartaremos de esperanças plenas, plantios de poesias e músicas, letras e notas, acordes e pensamentos que não usarão mais a palavra lamento. Senhoras e senhores, todes, não percam este espetáculo que nenhum tabernáculo detalhou. Ele será único e sem direito a bis. Nenhum segundo antes, nenhum minuto depois. Mas celulares estão liberados e lembranças boas e livres estão igualmente liberadas. Sejam elas no nosso picadeiro, em Havana, nas cascatas de um Iguaçu ou vindas do vocabulário de um falastrão. Pouco importa. Para nós artistas dessa trupe mambembe, tanto faz! Estamos aqui, nesse ínterim entre nascer e morrer apenas para fazermos a cortina abrir e se fechar. Seja em qualquer lugar. A nós o importante não é vosso vil e raro quinhão de metal, plástico ou papel. É apenas que cada um de vós não tenha pena de nós. Nossa voz, nessa cena curta e mordaz, quer somente ser porta-voz de um planeta sem mares, sem terras, sem montanhas, sem artimanhas. Com manhãs límpidas, tardes brejeiras, noites reconfortantes. Todas como um instante. Afinal, a vida é apenas um instante a cobrir de páginas e dramas, comédias e tramas a significação de não existir significado. Portanto, venham assistir nosso epitáfio e nosso primeiro chorar ou grunhir assim que somos arrancados do ventre materno. Sejamos, nem que seja por um mero momento, eternos e ternos. Prometo desde já que se não gostarem daquilo que irão ver, devolveremos os ingressos com nossos maiores perdões por tão ínfimos préstimos. Mas, desde agora posso dizer, que nos apresentamos para públicos mais exigentes e púbicos. Estivemos no inferno e sob chamas e labaredas ganhamos do próprio Satanás a medalha de honra por serviços prestados. No céu, Deus decidiu acordar de seu sono eterno desde que o mundo criou e fez uma pausa para sentar na primeira fileira. No fim nos aplaudiu e pediu bis. Como dito antes, bis não fazemos. Fomos quase excomungados e deserdados do paraíso que nunca vem depois, mas ele também nos perdoou e desejou sorte eterna. Estivemos ainda no limbo e no purgatório. Mas nesses não vendemos um ingresso sequer. Quem lá está nem sabe o que fez enquanto habitou a Terra. Foi um fracasso cheio de sucesso para nossa trupe. Enfim, venham todos e todes! Prometemos mostrar e escancarar a vida de cada um, com palhaços, cães adestrados, elefantes e leões, trapezistas e dançarinas seminuas que irão lhes tirar da prostração que a vida nos dá. Temos até o homem atirado de um canhão. Mas este, como o espetáculo, não poderá repetir o feito. Seu féretro desde então está aberto a todos e todes que quiserem acompanhar. Mas, por fim, já que me alonguei quase tanto quanto o tempo de picadeiro, garanto a cada um de vós que comprar o ingresso com um sorriso verdadeiro ou um abraço apertado, que o mundo pessoal e íntimo logo depois estará revirado. Dessa forma, quem tiver vindo pela esquerda volte pela direita e aos outros vice e versa. Mas no fim, todavia e entretanto, por enquanto, todas as vias irão dar no mesmo lugar. Só que nosso desejo derradeiro, com todo o ensejo, é que não nos vaiem ou atirem objetos no palco de mentira. Nossos sentimentos, em tormentos, agradecem... E que assim seja vagamente real.
 
(Sob o som ainda de Arpi Alto)

domingo, 15 de dezembro de 2024

Willian Basie, o Conde do Jazz

 Por Edmilson Siqueira

Afastem o sofá porque vai dar vontade de dançar. E ao som de uma das melhores orquestras de jazz de todos os tempos: a Count Basie Orchestra. Esse disco em particular, nas suas dez faixas, promove todo um clima romântico, próprio dos anos 1950 em que ele foi gravado. E, para completar a faixa principal e que dá título ao disco é nada menos que "April in Paris". 

Count Basie é um dos maiores expoentes mundiais do jazz. Pianista, organista e band leader, sua orquestra é considerada uma máquina de swing. E, como salienta a crítica, "um dos marcos da discografia de Count Basie, 'April in Paris' é um daqueles raros álbuns que se impõe como um clássico quase instantâneo no panteão do jazz. 'April in Paris' representa a remontagem da orquestra Count Basie original que definiu o swing nas décadas de 1930 e 1940. A faixa-título passou a definir a elegância no jazz orquestral. Gravado em 1955 e 1956, o disco provou a capacidade de Count Basie de crescer através das mudanças do jazz moderno, mantendo a tradicional orquestra de jazz viva." Só por aí já da pra perceber que estamos à frente de um gigante do jazz. 
William Basie nasceu em Red Bank, New Jersey, em 1904. Era filho de Lillian and Harvey Lee Basie. Seu pai trabalhava como cocheiro e zelador de um juiz rico. Com a substituição dos cavalos e carruagens por veículos automotivos, seu pai se tornou jardineiro e "faz-tudo" de várias famílias ricas da região. Seus pais eram amantes da música. Enquanto Harvey tocava melofone, sua mãe tocava piano, tendo sido a primeira professora do filho. Lillian lavava roupas e vendia bolos para ajudar nas despesas da casa.
Basie foi para a escola, onde se tornou o melhor aluno. Em 1920, foi para o Harlem, o centro cultural do jazz, indo morar a menos de um quarteirão do "The Harlem Alhambra", local onde muitas celebridades do jazz e do blues se apresentaram, como Billie Holiday.
Seu primeiro emprego fixo foi em 1925 no Leroy's, como pianista. Em 1928, Basie estava em Tulsa, onde assistiu a um show de Walter Page e sua famosa banda, Oklahoma City Blue Devils, uma das primeiras big bands, com Jimmy Rushing nos vocais. Foi por volta dessa época que ele começou a ser chamado de "Count" (Conde) Basie, como referência à "realeza" do jazz.
Em 1935, Basie formou sua própria orquestra de jazz, a "Count Basie Orchestra". Em 1936, a banda se estabeleceu em Chicago para sua primeira gravação. Basie foi o líder do grupo por quase 50 anos, criando inovações como o uso de dois saxofonistas "split", enfatizando a seção de ritmo e tocando com uma grande banda, auxiliado por amplificadores para ampliar seu som.


O disco
A primeira faixa de destaca não só pela beleza da música, mas também pelo excelente arranjo. O encarte do CD que tenho (reprodução fiel do LP) tem um bom texto sobre as músicas, mas, infelizmente, não é assinado. O arranjo de "April in Paris" é de Willians Davis e diz o texto do encarte: "É um arranjo impressionante para uma canção que foi tocada e cantada de várias maneiras desde E.Y. (Yip) Harburg, com as palavras da melodia de Duke, tornando-se a característica mais memorável de um show da Broadway de 1932 chamado 'Walk A Little Faster'. No arranjo de Davi, há uma sequência que poderia muito bem ser um solo instrumental, exceto que nas mãos de Basie todo o conjunto começa a funcionar - o efeito sendo, para dizer o mínimo, altamente incomum; ouvindo-o pela primeira vez, presume-se que a banda está tocando uma melodia improvisada. Finalmente, há o final, que é uma brincadeira deliciosa, como todos os seguidores do jazz já sabem. Na noite em Birdland, [o clube onde se apresentava a banda] pareceu natural para Basie dar suas ordens verbalmente no final da música: 'Mais uma vez', ('One more time') ele ordenou. E depois, de novo: 'Mais uma - uma vez...' (One more - once'). Foi um sucesso.
As várias facetas da banda Basie, três vezes vencedora da Down Beat Annual Jazz Critics Poll, vêm à tona com vigor contagiante no restante do álbum. 
"Corner Pocket", a segunda faixa, é um arranjo de Ernie Wilkins, com os trompetes de Thad Jones e Joe Newman chegando fortes após uma pequena figura introdutória rápida do piano de Basie; o saxofone tenor de Frank Wess também faz um solo.
A terceira, "Did'nt You" (Frank Foster) mostra as palhetas com boa vantagem e há o trombone muito suave de Henry Coker.  Na quarta faixa, "Sweet Cakes" (Ernie Wilkins), também há o clima suave com um trabalho de piano de Basie. "Magic" (Frank Wess), a quinta faixa, é uma melodia complicada com o próprio Wess no saxofone tenor.
Na sexta-faixa,  "Shiny stockings" (Franl Foster) se revela a equipe toda em um clima particularmente forte de jazz enquanto outro arranjo de Foster, para a faixa seguinte, "What Am I Here For" (Duke Ellington), apresenta o trompete de Joe Newman e Frank Wess na flauta junto com o piano de Basie.
"Midgets" (Joe Anderson), a oitava música do disco, é aquele momento em que você, já meio cansado, deve parar para descansar, pois a música é rápida e vai exigir muito fôlego para acompanhá-la em passos pela sala.
Na nona faixa há uma mudança de clima, "Mambo Inn" (Bobby Woodlan e Graxce Sampson) envia a banda Basie para um ritmo latino-americano e um trabalho de conjunto alucinante. 
Na última faixa "Dinner With Friends", o trompete de Joe Newman e Frank Foster no sax tenor lidam com os solos saltitantes, num arranjo de Neal Hefti.
É este o repertório todo do excelente "April in Paris" com a "Count Basie Orchestra" que pode ser comprado nos bons sites do ramo e ser ouvido na íntegra no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=bTcmPGdDecw&list=PLlvikwomg9DCCuiio85VLJp1cpKOLmeeD).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Cupido ao som de Arpi Alto

 Por Ronaldo Faria


A chuva desaba ininterrupta. Inodora, a vida não desperta para os cheiros que a areia molhada traz amiúde no meio de tanta correria dos esquecidos do guarda-chuva. Fernão e Isadora esperam sob a marquise que pinga em jorros o ônibus chegar. Ambos de celular à mão sabem pelo barulho que o mundo está se lavando num banho que as nuvens ou São Pedro resolveram lhe dar. O calor, intermitente, dá um tempo rápido. Sabe que voltará. É só esperar que o último pingo desça a ladeira em encontro a um bueiro que ainda não entupiu de folhas mortas e restos de vida. Um ou outro carro mais acelerado vez ou outra atira jatos curtos de água em direção ao casal que reparte o lugar sem ainda se avistar. Até que numa curva mais fechada, um insano acelerado e descerebrado os deixa encharcados.
-- Cretino! Precisava isso?
Irritado, molhado, Fernão xinga o motorista que certamente nem ouviu, em velocidade e janelas fechadas.
-- Tudo bem com você? – pergunta à moça que pingava igualmente.
-- Estou. Quer dizer, devo estar, tirando isso.
-- Como tem gente imbecil nesse mundo. Precisava esse escroto passar desse jeito? Vai tirar a mãe da zona ou o pai da forca?
-- É...
-- Desculpa o vocabulário. É que eu fico descompensado como algumas pessoas não têm o mínimo senso de civilidade e só pensam em si. Funcionam para o próprio umbigo.
-- Eu sei como você se sente. Penso o mesmo.
-- Então, menos mal. Meu nome é Fernão.
-- O meu é Isadora.
-- Tirando o acontecido, prazer...
-- Está esperando que ônibus?
-- Eu vou para Copacabana. Quer dizer, achei que ia beber um pouco. Agora, tem o risco de que eu pegue uma pneumonia. E você?
-- Também estava indo pra lá, encontrar uma amiga. Mas ela acabou de me avisar pelo celular que não poderá ir. A casa dela encheu d’água.
-- Coitada. Será que ela precisa de ajuda para puxar a água pra fora?
-- Acho que não. Ela está acostumada. Fechou o tempo já coloca tudo pro segundo andar. Na verdade, a parte de baixo só funciona mesmo no tempo da estiagem. No período das chuvas, fica quase clean.
-- É, a necessidade faz a decoração.
-- Com certeza.
-- Então, pra não perdermos a viagem de todo, quer ir comigo a um bar comigo? Eu garanto a conta, já que o convite é meu.
-- Aceito, mas vamos rachar. Já ouvi falar de direitos iguais?
-- Sim, claro. E sou adepto do não é não.
-- Espero mesmo. Sou faixa azul em capoeira.
-- E eu no máximo pratico halterocopismo. Fique tranquila.
Riram, dividiram um Uber que finalmente atendeu o chamado, já que o ônibus esperado estourara o motor com a enxurrada, e por horas, agora secas, conversaram, versejaram, trocaram ideias, soluções, aflições e números de celular. Prometeram se rever mais vezes e, quem sabe, um dia mudarem o status no Facebook. Despediram-se e partiram cada um para o seu lado, com sorrisos e beijo limitado ao cortês. No centro de controle de trânsito, porém, a discussão continuava sem solução. O carro que os molhara passou num sinal fechado próximo ao ponto de ônibus a quase 150 por hora. Até aí, tudo bem para um infrator. Mas, passado dias do Carnaval, o que fazia um Cupido ao volante? Uns juram que é fantasia que grudou no corpo do folião, já os outros dizem que é real demais para sê-lo. As apostas já estão feitas.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Astrud, perdoe, eles não sabem o que fazem

 Por Ronaldo Faria

 


-- Só pra dizer, puto da vida e pra caralho, Astrud Gilberto só foi “descoberta” no mundo virtual ao morrer aos 83 anos. Ou seja, somos (os perecíveis que um dia sonhamos em ser importantes) dignos de ser recordados ou ressignificados só após a morte.
-- Calma, Walter Wanderley. Será que é isso mesmo? Assim a esmo?
-- Claro que é. Vá ao Google e comprove a minha tese!
-- Nem fodendo. Não vou deixar de beber mais uma dose só pra vasculhar o mundo digital.
-- Não vai? Então não questione. Quer saber, que merda é isso: uma voz ser relegada ao esquecimento até deixar de ser. Aí todos os pecados são apagados e pagos, os filhos da pauta e da puta, com todo o respeito às putas e aos pauteiros, viram anjos de aureolas. Poupe-me! Por favor, ao menos isso.
-- Tudo bem, Walter Wanderley. Aceito a sua tese. Mas sempre não foi assim? O fim é que traz à tona a biografia de cada um?
-- Sei lá. Mas se o é, tudo não passa de um teatro sem plateia. O ser humano não é e nem faz parte de uma alcateia. É único, desde as digitais. Aqui, ainda tem o CPF. Logo, cada um colha depois de tudo aquilo que plantou. Foi um bosta morfético, seja igual. Um escroto que só pensou em si e fodeu o resto, seja jogado ao lixo da história. Mas lembrar da Astrud só depois da morte? Aí já é demais.
-- Concordo. É sórdido, triste, inglório. Mas a glória não é dada a poucos?
-- Com certeza. Ao que resta fica só uma fresta que será fechada quando último lembrante sobreviver ao tempo discrepante. Mas, como dizia o poeta, para isso fomos criados...
No redor ressoa Stan Getz. Surge a voz do João. Astrud permanece íntegra e real. Nalgum lugar, neste quase fim de mês que irá durar um dia a mais que o normal (até hoje não entendo esse mês plural), outro alguém irá entender este fim. Pra nós tudo, que tenha dó de nós o Senhor do Bonfim. Saravá!

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Na espera da esfera

 Por Ronaldo Faria

O pseudo-poeta espera a interlocução com a próxima esfera musical e etérea para tentar escrever. A ver, algo mais ou mais nenhum. O escriba que crê poetizar fica no limite entre a crença e a desavença que há no criar e findar. E na brincadeira de ser, seremos só limiar.

Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes: um registro histórico

Por Edmilson Siqueira


Era dezembro de 1968. Vinicius de Moraes, talvez procurando ares mais respiráveis, viajou para Roma, onde iria passar o Natal. Porém, no caminho resolveu dar uma passada em Lisboa, onde os ares também não eram muito bons, para visitar sua amiga Amália Rodrigues. E, na casa dela, combinaram de gravar um disco, ali mesmo, meio improvisado, entre amigos, com as canções de Amália, a poesia de Vinicius e o que mais viesse dos amigos convidados. O disco desse encontro só foi editado em 1970 e, claro, foi proibido pela censura da ditadura portuguesa. Salazar, debilitado, já não governava, embora não soubesse disso. Fora substituído por Marcelo Caetano, e a ditadura continuou. 
No encontro na casa de Amália estiveram presentes também outros poetas, como Ary dos Santos e Natália Correia. O encontro durou horas, mas as gravações foram editadas para caberem numa só hora, o que resultou num LP duplo. O resultado parece amador a princípio, mas os fados e as músicas brasileiras são de alta qualidade e as poesias, principalmente de Vinicius, são ótimas, tanto que há quem considere o disco como uma relíquia da música e poesia em língua portuguesa. 
A proibição fez o disco em vinil vender pouco e se tornar raro. O CD que tenho é uma cópia do LP que nunca tive. 
São 19 faixas, entremeadas de música e poesia e de um narrador (Ary dos Santos) que se porta como um dos convidados, contando para o ouvinte, em alguns momentos, o que está para acontecer. O clima é de descontração e alegria, embora o ambiente político em Portugal - e no Brasil, afinal 1968 foi o ano da edição do AI-5 que fechou de vez a ditadura por aqui - fosse dos mais pesados.  
Ary dos Santos inicia o disco como se estivesse subindo as escadas da casa de Amália para chegar, um pouco atrasado, à sala ou salão onde estavam todos reunidos. Informa a data (19 de dezembro de 1968 - 6 dias depois do AI-5) e diz que a festa é de despedida de Vinicius, que partiria no dia seguinte para Roma.  



A primeira poesia é justamente "Retrato de Amália", de Ary dos Santos, declamada pelo próprio. Em seguida, Natália Correia declama seu belo poema "Defesa do Poeta". 
A parte musical do disco começa na terceira faixa, com Amália cantando o fado "Havemos de ir a Viena", de Pedro da Cunha e Alain Robert, acompanhada pelos músicos Fontes Rocha, na guitarra (portuguesa, claro) e Pedro Leal na viola. A qualidade dos dois músicos chama a atenção durante todo o disco.  
Após cantar o fado, Amália pede a Vinicius que declame o "Poema de Orfeu". Vinicius corrige o nome ("você quer o Monólogo de Orfeu, né?"), e declama o poema, com belo acompanhamento musical de Fonte Rocha e Pontes Leal. 
Ary dos Santos nos informa que agora Vinicius, depois de declamar, vai cantar. E canta, com nítida emoção, "Poema dos Olhos da Amada", de sua autoria com Paulo Soledade.  
Na faixa seguinte, também anunciada por Ary, é Amália quem canta "Abandono", de David Mourão-Ferreira e Alain Oulman. Um dos momentos altos da interpretação da grande cantora portuguesa.  
A poeta Natália Correia aparece a seguir declamando seu poema "Formosinha de Elvas".  
O momento quase humorístico do encontro fica a cargo de Ary dos Santos, com "O Objeto", um curioso poema que protesta contra o fato das coisas não receberem o nome correto de cada uma delas. 



Um pequeno coro se forma a seguir, chamando Vinicius e pedindo que ele declame seu famoso poema "O Dia da Criação", que acabou ficando conhecido mais pelo refrão "Porque hoje é sábado". Refrão que todos os presentes fazem questão de repetir junto com o poeta.  
Davi Mourão-Ferreira declama a seguir "Fado para a Lua de Lisboa", um pungente poema sobre a noite portuguesa. 
Amália volta na faixa seguinte, cantando "Gaivota" de Alexandre O'Neill e Alain Oulman. Mais uma vez a qualidade da interpretação se sobressai, tanto de Amália quanto dos dois músicos na guitarra portuguesa e na viola. 
A faixa seguinte, "Saudades do Brasil em Portugal" merece uma explicação de Vinicius. Ele diz que foi uma ousadia escrever um fado para Amália, tal como a marcha-rancho que ele fez em "parceria" com J. S. Bach. E ele canta emocionado seu poema com a música de Homem Cristo. Em seguida, na faixa seguinte, é Amália quem empresta sua interpretação à mesma música, que, claro, ficou muito melhor que Vinicius. 
Vinicius volta, desta vez para cantar um samba, não sem antes contar a história de como foram feitos os versos de "Pra que Chorar", na música de Baden Powell, de madrugada, numa clínica de repouso no Rio de Janeiro. 
Amália volta pela última vez para cantar "Fado Português", de José Régio e Alain Oulman. Mais uma interpretação digna da cantante lusitana. 
O disco termina com dois poemas. O primeiro é de Natália Correia, um de seus mais famosos, "Autogênese", que ela declama com bastante emoção.  
Por fim, encerrando o disco, mas provavelmente não a noite, que se estendeu até o amanhecer, Vinicius é solicitado a dizer as impressões que leva de Portugal. E o poeta discorre sobre o povo português "tão próximo do brasileiro" deixando nas entrelinhas o amargor que sente pelas ditaduras vigentes nos dois países. 
O "narrador" Ary dos Santos, após a fala de Vinicius, diz que aquele é o resumo de um encontro muito maior, mas foi o que coube em dois discos. Dois discos históricos que ainda estão à venda por aí, tanto em CD como em LP. E podem ser ouvidos na íntegra no YouTube (https://bit.ly/38klS1Q) e no Spotify (https://spoti.fi/3ioB3M3).

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Tom e Maucha

 Por Ronaldo Faria


Está difícil escrever a data. Aliás, desde o primeiro texto professado. Mas o que é uma data? Um ponto perdido na eternidade que há até a primeira terceira guerra mundial existir? Ou talvez a falha no exaustor que chupa o gás mortal que corre nos corredores sem fim. Senão, uma batida a mais que o coração deixou de dar. A irrelevante e arfante, inaudita e aflita canção não mais cantada? Nunca saberemos no saber-se-á.
No Leblon a noite cai doidivanas e infante. Entre morros, mares e areais. Ela sabe, sacana que é, que será envolvida em subterfúgios. Lamúrias, paixões tresloucadas, amores infaustos, beijos de línguas entrelaçadas, afagos no minimalismo artístico e profanado pelo fim que logo chegará no derradeiro gozo exposto no lençol. A noite agora denota em notas na voz da Maucha Adnet os sons que Tom Jobim sorveu de si mesmo e lançou ao mundo para ser devorado como o ardor de viver. E ser. O é.
-- Se eu chegar amanhã bebum até que é bom. Não sinto a agulha na veia penetrar e estarei sendo eu, verdadeiro e voraz.
Clarêncio, na clarividência que o nome dá, antecipa a picada e espera, à espreita da finitude, que o exame lhe dê mais alguns poucos anos de vida.
-- Gostaria de viver um tanto mais. Não pelos aniversários, já que isso não me apraz. Só pelos tantos dezenas e mil litros ainda a tomar e letras a escrever e professar.
Cordeiro, o amigo que cada vez parece esquecer o limiar e o lumiar, concorda enquanto puxa a corda do violão desafinado para tentar lembrar de ser. Na mesa de bar ficou o tempo ausente de fretes e mudanças, pajelanças e danças. Mas, afinal, ao final de tudo, no turbilhão de lembranças, ficam somente as sementes que brotaram bem além do além-mar.     
-- Logo mais chegarão as águas de março a decretar o fim do Verão.
-- E precisa? Quer matar o povão? Tem coisa mais fácil: coloca um capitão na marcha estradeira.
Fulgêncio, fugitivo do passado transgressor e opressor que o passado deixou nas graças de Deus, prefere não relembrar tempos atrás. Que as flores que ainda sobrevivem deixem em si a paz. Para todas as eternidades.
Aos poucos, no espocar de fogos que nunca foram acesos, os dois se juntam em pensamento. Há lamento? Não. Juramentos? Não. Tormentos equânimes e destinos atirados num catavento? Não. Talvez um silêncio deletério, mistério de loucuras transmutadas e caladas. Senão uma única palavra na mais certa lavra de ser: não.
No Corcovado, côncavo e eterno, o esquecer do sol sobrevoa nas nuvens plúmbeas e voláteis. Logo tudo pode virar tempestade sem saudade. Maldade? Esta fica para o fórceps que traz à vida o universo do verso loquaz e choro de orelhão a saudar a vida que se renova mordaz. Aqui ou na insana realidade que tudo se torna depois, se entorna a fatalidade fetal de um ou outro dedilhar. Clamar o quê? A chuva prevista não cai... até você voltar.
Terminemos, pois. Façamo-nos então o sol de Ipanema. Sem dramas, sem saudades da trema, sem sargaço que a poluição mata antes de vingar. A garota? Essa, às centenas, desfila com o corpo sarado, a bunda arrebitada, os seios siliconados, a boca esculpida com injeções mil. Na rua logo perto do mar, na esquina Vinicius e Tom, um sonhador prescreve a si mesmo uma dose de reviver...

sábado, 7 de dezembro de 2024

Entre dois iguais e Caetano

 Por Ronaldo Faria


-- Você lembra mesmo do passado?
-- Claro que lembro.
-- E isso ficou gravado tanto tempo na sua memória?
-- Ficou. Parte como algo a se esquecer e outra parte a aquiescer, como se estivesse pra sempre nas cenas de amor e paixão entre dois iguais.
-- Como assim?
-- Como algo que era um mundo à parte, apartado do medo e da dor da realidade. Algo de infância renascida e que guarda raízes indeléveis até hoje.
-- Sei. Coisa de mansidão estradeira, feita em dias de viagem e paragens de secura, mas com todas as cores possíveis. Saudade inefável, enfim.
-- É, quase. Um fim que nunca acabou. Se perdeu, se desfez, se reencontrou em sorriso de espera inglória após a morte e o desejo de revisitar um passado carcomido e enterrado.
-- Entendi. Triste, não?
-- Não sei. Como o corpo que ficou largado nos fundos da cova e nunca mais será revisitado, tal reencontro de lembranças foi sepultado.
A conversa, convexa e incongruente, chafurdada em recordações primatas e primárias, se esvai sem razão de aglutinar. Na distância de longas léguas, milhares de quilômetros e mares sem conta, a voz de história histriônica, lacônica, tragicômica. Em portais, móveis que se fecham e se abrem, portas com ferrolhos e ferrugem, sentenças proscritas e escritas, dicotômicas, atônitas, atômicas se explodissem além da memória. Senão, apenas cifrão esquecido nas contas da vida ou cifras da canção nunca escrita, na desdita inaudita que só o luar que iluminou gente e animais sentenciou em si.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Piramboca da parafuseta e Renato Braz

 Por Ronaldo Faria


Picotar na MP3, pisotear magias e mágoas inalteradas nas águas que hoje não se fazem ressaca mas amanhã trarão ondas óbvias de pouca mansidão. Mas teremos de sair para beber o café do Seu Luiz. Resistamos! Depois, nada teremos. Terrenos, fugitivos da vida e ressacados, andaremos abruptos e tolos a percorrer caminhos que a filha canina não mais percorrerá. Assim, Silmar, longe do mar que lhe deu o nome, vira pronome naquilo que isso tiver de ser. A ver e vociferar a mansidão que demove vozes e versos da sangria da vida deletéria. Estagnado em si, lúgubre e infausto, famélico e mordaz, sobrevive no sussurro estendido ao sol que queima sem pensar que seus raios matam e dão vida fugaz. E é somente Silmar, rima inócua no vazio que se faz levar.
Logo ali, perto do sono esperto que perpetua a imaginação profícua, alguém pensa que o amor sobrevive e resiste solerte e inerte no coração que se prepara para parar. Na aurora que seria altaneira anos atrás, um pássaro voa nos raros raios que sobremaneira se interpõem. No acordar de acordes surdos surgem canções. Imensidões rarefeitas e afeitas ao tardar de cada um. Na viola que viola o âmago do coração que surge em unção, a gratidão de ao menos saber soletrar um abecedário tão pouco proletário senão. Na noite, noir, a torre infiel a vazar no céu surge anêmica e cruel a fugir no trenó que foi roubado de Papai Noel. Daqui, com Silmar a ultimar final feliz, o infausto brinquedo de cada dança como fosse criança à espera de um final, enfim.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Adeus samba, até 2025

 Por Ronaldo Faria

 


Na avenida o samba já nem se lembra que desfilou e fez a alegria da passista e do compositor. Para ela vieram os desejos carnais de tantos carnavais, para ele a cantoria de milhares de vozes vorazes em si como vestais a cantarem os versos desiguais.
-- Jerônimo, homônimo heteronômico fugaz, vale a pena achar que os carnavais do passado foram a verdadeira delicadeza?
-- Sei lá... Ou melhor, sei. Um deles ao menos foi. Mas só um, que permanece vivo no eterno relembrar.
 
Fevereiro de algum ano do Século XX, vinte para quem faltou nas aulas de números romanos. Jerônimo, a amada e outros interlocutores anônimos para a prosa brincavam no salão. Antes, ambos estavam na avenida. Logo mais estarão na cama, a brincar de fim de folia, a fazerem a cama correr os poucos metros quadrados e enquadrados no depois e após apócrifo do senão. Tudo começava na parede e parava na porta, como querendo sair sala a fora, abrir um portão, descer escadaria e se largar na rua que descia para encontrar a avenida.
-- Foi bom esse Carnaval?
-- Como assim? Quer que o paraíso se perpetue?
Claro que Camila, personagem essencial para se entender a história, queria. Mas havia realidade e passado, a fatalidade tardia, tríade de rebentos que já não chorava pelos peitos mas prendia desejos e carências infindos, pendia entre o desejo de ser feliz e a obrigação de fazer outrem feliz.
-- Vamos simplesmente viver?
No estupor do momento o silêncio e o lamento da vida se fazem notícia de jornal na voz de Camila. No final de qualquer coisa,,metros e metros quadrados, guardados na lembrança que não se esvai.
-- Está lembrando o que, Jerônimo?
-- Nem eu sei. Talvez fosse melhor esquecer de vez. Mas como seguir adiante se não houver algo a lembrar, a nos mostrar que a tal felicidade existe de fato, mesmo sem ser unanimidade? E se por um momento fátuo, inócuo, fizemos parte dessa minoria? Se pudemos de uma forma efêmera, macho e fêmea, acharmos que fomos felizes?
-- Talvez você tenha razão. Mas de que vale a razão de antemão? Afinal, mil e tantas variantes existem entre um início, o meio desatinado e o pseudo fim?
-- É, afinal o que é a razão? Mero e destrambelhado tesão? Um slow motion do passado arfado e calado em si? Sorrisos e afagos que dançaram de forró a fado? Fatalidade de duas vidas cruzadas em teclas e teclados, separadas na esquina fatídica do não...
Na décima e algo se saberá de que os amigos exaustos de quererem encontrar respostas para a vida se entregam à saideira. Nessa hora a certeza do fim derreou, o momento já não há, o tormento do amanhã vira deletéria imprecisão. Das tantas caixas de um acústico sonoro surge a noite enfim. Logo mais o caminhão de lixo surgirá para carregar recicláveis e emoções do passado.
 
(Com Celso Fonseca a rolar)

domingo, 1 de dezembro de 2024

George Benson, no tempo do jazz

Por Edmilson Siqueira


A única informação que posso dar sobre o CD que motiva esse artigo é que a guitarra nele tocada é de George Benson. Quando foi gravado e quais músicos dele participam é um mistério. Não há, na internet, qualquer referência a esses detalhes, apenas o CD à venda, com as quatro músicas nele contidas. Descobri apenas que o ano de lançamento do CD é 1990 e que ele foi produzido na França. E se a data estiver certa, é de quando Benson tinha 42 anos mais ou menos e ainda se dedicava exclusivamente ao jazz.
Mas isso não quer dizer que seja um trabalho menor. O disco "Invitation" é um ótimo exemplo da grande qualidade do ex-guitarrista de jazz George Benson, e do grupo que o acompanha (piano, bateria e contrabaixo). Eles dão totalmente conta do recado.
O CD foi gravado ao vivo, pelo que demonstram aplausos de uma pequena plateia tanto no meio da música, depois de alguns solos mais elaborados, como ao final de cada apresentação.
O disco todo tem pouco mais de 42 minutos, divididos em apenas quatro músicas. Ou seja, além da melodia normal (ou quase normal) de cada música, os quatro esbanjaram nos improvidos. O que, aliás, torna o trabalho todo muito mais atraente. É bom ver grandes músicos dedicando seu talento aos improvisos típicos do jazz.


 
George Benson está com 81 anos. Nasceu em Pittsburgh, na Pensilvânia, numa família de refinados músicos amadores. Aos seis anos já tinha começado a se apresentar ao público. Um ano depois, sua mãe se casou com um eletricista que também tocava guitarra de jazz amplificada. O jovem George implorou ao padrasto que lhe ensinasse a tocar. Infelizmente, suas mãos eram pequenas demais para alcançar o instrumento em toda a sua extensão e ele acabou ganhando um ukulele (pequeno instrumento havaiano de quatro cordas). Mesmo assim, alguns anos mais tarde, Benson ganhou a sua primeira guitarra. Em 1953 - ainda com 10 - ele gravou o single "She Makes Me Mad" nos estúdios da RCA.
Durante um bom tempo, foi um grande guitarrista de jazz, mas depois enveredou pelo pop, onde foi o autor de inúmeros sucessos. Dessa fase, assisti a um show dele em Barcelona, onde ele dividiu o palco com All Jareau. O show, excelente por sinal, saiu em disco e até ganhou prêmios.
Mas o misterioso CD "Invitation" que tenho, é importado e, pesquisando nas redes, descobri que ele tem outros nomes, como "Oleo" (Sonny Rollins), que é a música que abre o disco. Seu ritmo alucinante se transforma num desafio para uma apresentação ao vivo. Os longos solos de baixo e bateria são destaques para a apresentação de 10 minutos e 18 segundos, entremeada de aplausos.
A seguir vem "Lil's Darling" (H.Hefti), um clássico instrumental tocado com muita competência. Trata-se um blues onde tanto Benson quanto seus músicos se divertem bastante tocando durante 10 minutos e 57 segundos.



A terceira faixa é outro clássico: "All The Things You Are" (O.Hammersmith e J. Kern). Quase tão rápida quanto "Oleo", é nova oportunidade dos músicos mostrarem seus talentos. É a faixa mais curta do disco, com seus 8 minutos e 30 segundos.
Encerrando a apresentação, pelo menos no CD, a última faixa é a que dá título ao disco, "Invitation" (B.Kaper e P. Webster). É a mais longa do disco com seus 12 minutos e 19 segundos. É também um blues mais soturno que encerra magnificamente o conjunto sonoro aqui apresentado.
Muita coisa de George Benson pode ser encontrada no YouTube. Mas não encontrei esse disco específico. Se alguém quiser comprar, ele está à venda em https://www.discogs.com/release/6650564-George-Benson-Invitation?srsltid=AfmBOopw_u8YDYWnfCLu94ZiOr5vyGeiqkddlllOgj210we3rg7Ny1z_

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...