Por Edmilson Siqueira
As últimas apresentações de Milton Nascimento durante sua
despedida dos palcos me despertaram um pouco de pena do gênio mineiro. Embora
todas a qualidade de sua música estivesse ali presente, Milton se esforçava
para cantar do jeito que já cantou. E quem ouviu, por décadas, o brilho
incomparável de sua voz, não poderia ficar totalmente feliz com a performance
de um grande cantor que, agora já com idade avançada, não era o mesmo, nem
poderia ser. Há poucos Jagger e Matogrosso no mundo. E mesmo o brasileiro faz
ótimos shows poupando agudos e danças pelo palco.
Claro que o fato de a voz de Milton não ter o mesmo
brilho de forma algum empalidece sua carreira. O último ano em que ele passou
pelos palcos foi uma despedida sincera, de gala eu diria, relembrando uma obra
imortal.
E como não teremos mais aquele mesmo Milton ao vivo e
como dificilmente ele vai gravar novamente, o jeito é curti-lo indiretamente,
através de grandes artistas que não só preservam sua obra regravando-a, mas
fazendo de forma magistral.
É o caso do CD que está rodando agora no meu Panasonic:
"Milton - Por Monica Salmaso e André Mehmari". Ouvi uma música acho
que foi no YouTube e nem esperei terminar para encomendar o bichinho.
Quando chegou foi um completo deleite.
Monica acho que dispensa apresentações. É uma das
melhores cantoras brasileiras atualmente, com um repertório e parcerias
irrepreensíveis.
André Mehmari é pianista (toca marimba de vidro também no
disco). Além disso é compositor e arranjador. Dois parágrafos da Wikipedia
bastam para deixar qualquer um de boca aberta: "Suas obras foram
executadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), Orquestra
Petrobras Sinfônica e Orquestra Amazonas Filarmônica, dentre outras importantes
formações brasileiras. Na música popular, gravou discos com o bandolinista
Hamilton de Holanda e cantora Ná Ozzetti.
Em 2010 assinou contrato com um dos mais importantes
selos italianos de jazz, EGEA, que representa o artista na Europa e para o qual
vai lançar cinco discos solo. O primeiro deles ("Miramar") foi
gravado no Oratorio Santa Cecilia, no centro histórico de Umbra (Itália) e já
foi lançado nesse país."
Ou seja, o cara é muito bom.
E, além dele, há ainda a participação especial de Teco
Cardoso tocando flauta baixo e sax soprano.
O resultado dessa união é um disco que dá prazer em ouvir
do começo ao fim, colaborando para tanto as incríveis interpretações de Monica,
o piano meio mágico e André e o acréscimo em duas faixas, do colorido do sopro
de Teco.
"A Lua Girou", canção que inicia o disco,
composta só por Milton, é quase uma oração pedindo a devida proteção aos deuses
da música para abrir os trabalhos. O casamento entre a voz de Monica e o piano
de André é perfeito.
Após o longo respiro da primeira faixa, o piano se
encorpa a seguir para "Noites do Sertão, com música de Milton e singela
poesia de Tavinho Moura.
A terceira faixa é uma dessas que se tornaram clássicas,
não só pela beleza da música e da letra, mas pelo conjunto apontar para um
tempo em que não vivíamos sob o tacão da ditadura militar. "Saudades dos
Aviões da Panais" ou "Conversando no Bar", de Milton e Fernando
Brant, é dessas músicas que, a gente tinha prazer de dizer quando Milton a
lançou, enganaram os censores do regime de exceção que a tudo proibiam.
Nova canção só de Milton, "Morro Velho" dá
sequência às pérolas que Monica e André nos presenteiam. Interpretação no ponto
certo, com o mesmo clima que Milton criou lá atrás e que ainda retemos na
memória.
A quinta música une as genialidades de Milton e Caetano.
À melodia rápida e à letra complicada, mas com todo sentido, é feita a leitura
de um trecho do conto homônimo de João Guimarães Rosa, do livro "Primeiras
Estórias". Fica tudo muito bonito e adequado, pois André deixa o piano
para tocar marimba de vidro, à qual é acrescentada a flauta baixo de Teco
Cardoso.
"Canção Amiga" é o resultado dessas uniões
mágicas que só a música e a poesia podem proporcionar. Um poema de Carlos
Drumond de Andrade musicado por Milton, se transforma em sons imaginários que
agarram as palavras do poeta e as torna mais belas ainda.
A faixa seguinte não é de autoria de Milton e sim da
artista chilena Violeta Parra. Está no disco não só por sua excelência e
significado, mas porque Milton a gravou no Clube da Esquina 2. Composta por
Violeta em 1953, essa música fez parte da peça produzida por Leonard Bernstein
para inauguração do "John F. Kennedy Center for the Performing Arts",
em 1971.
"Paixão e Fé", composta por Tavinho Moura e
Fernando Brant ficou nacionalmente conhecida na voz de Milton. Aqui, Monica faz
jus à interpretação do mineiro e o piano de André a povoa com um brilho
especial, num arranjo sensacional.
"Milagres dos Peixes", de Milton e Fernando
Brant foi uma dessas canções que a cretina censura da ditadura proibiu de ser
executada. O jeito foi inseri-la no disco, na ocasião do seu lançamento, sem a
letra. Depois que a ditadura acabou, pudemos conhecer a letra e percebemos que
a poesia era apenas um canto de amor de amor ao próximo, coisa da qual,
certamente, os obtusos censores não entendiam. O sax de Teco Cardoso, aliado à
voz de Monica e ao piano de André dá o tom certo e preciso para a bela canção.
"Credo", de Tavinho Moura e Fernando Brand, é a
faixa seguinte. Canção forte, de esperança em dias melhores, é acrescida de uma
citação à clássica San Vicente que lhe dá o devido ímpeto final em mais um
grande trabalho vocal e instrumental da dupla.
"Paula e Bebeto" de Milton e Caetano Veloso,
fecham esse momento precioso da música popular brasileira. Quase nada a
acrescentar aqui à excelência do disco como um todo. A mensagem universal da
música ("Qualquer maneira de amor vale a pena") hoje é quase um
mantra que se espalhou por aí e deve ter produzido frutos muito bons.
Encerro com uma boa notícia: o disco pode ser ouvido - e
assistido como um show particular! - na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=af1cJBh4pj0
e, claro, está à venda por aí nos bons sites do ramo.