segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Tom e Maucha

 Por Ronaldo Faria


Está difícil escrever a data. Aliás, desde o primeiro texto professado. Mas o que é uma data? Um ponto perdido na eternidade que há até a primeira terceira guerra mundial existir? Ou talvez a falha no exaustor que chupa o gás mortal que corre nos corredores sem fim. Senão, uma batida a mais que o coração deixou de dar. A irrelevante e arfante, inaudita e aflita canção não mais cantada? Nunca saberemos no saber-se-á.
No Leblon a noite cai doidivanas e infante. Entre morros, mares e areais. Ela sabe, sacana que é, que será envolvida em subterfúgios. Lamúrias, paixões tresloucadas, amores infaustos, beijos de línguas entrelaçadas, afagos no minimalismo artístico e profanado pelo fim que logo chegará no derradeiro gozo exposto no lençol. A noite agora denota em notas na voz da Maucha Adnet os sons que Tom Jobim sorveu de si mesmo e lançou ao mundo para ser devorado como o ardor de viver. E ser. O é.
-- Se eu chegar amanhã bebum até que é bom. Não sinto a agulha na veia penetrar e estarei sendo eu, verdadeiro e voraz.
Clarêncio, na clarividência que o nome dá, antecipa a picada e espera, à espreita da finitude, que o exame lhe dê mais alguns poucos anos de vida.
-- Gostaria de viver um tanto mais. Não pelos aniversários, já que isso não me apraz. Só pelos tantos dezenas e mil litros ainda a tomar e letras a escrever e professar.
Cordeiro, o amigo que cada vez parece esquecer o limiar e o lumiar, concorda enquanto puxa a corda do violão desafinado para tentar lembrar de ser. Na mesa de bar ficou o tempo ausente de fretes e mudanças, pajelanças e danças. Mas, afinal, ao final de tudo, no turbilhão de lembranças, ficam somente as sementes que brotaram bem além do além-mar.     
-- Logo mais chegarão as águas de março a decretar o fim do Verão.
-- E precisa? Quer matar o povão? Tem coisa mais fácil: coloca um capitão na marcha estradeira.
Fulgêncio, fugitivo do passado transgressor e opressor que o passado deixou nas graças de Deus, prefere não relembrar tempos atrás. Que as flores que ainda sobrevivem deixem em si a paz. Para todas as eternidades.
Aos poucos, no espocar de fogos que nunca foram acesos, os dois se juntam em pensamento. Há lamento? Não. Juramentos? Não. Tormentos equânimes e destinos atirados num catavento? Não. Talvez um silêncio deletério, mistério de loucuras transmutadas e caladas. Senão uma única palavra na mais certa lavra de ser: não.
No Corcovado, côncavo e eterno, o esquecer do sol sobrevoa nas nuvens plúmbeas e voláteis. Logo tudo pode virar tempestade sem saudade. Maldade? Esta fica para o fórceps que traz à vida o universo do verso loquaz e choro de orelhão a saudar a vida que se renova mordaz. Aqui ou na insana realidade que tudo se torna depois, se entorna a fatalidade fetal de um ou outro dedilhar. Clamar o quê? A chuva prevista não cai... até você voltar.
Terminemos, pois. Façamo-nos então o sol de Ipanema. Sem dramas, sem saudades da trema, sem sargaço que a poluição mata antes de vingar. A garota? Essa, às centenas, desfila com o corpo sarado, a bunda arrebitada, os seios siliconados, a boca esculpida com injeções mil. Na rua logo perto do mar, na esquina Vinicius e Tom, um sonhador prescreve a si mesmo uma dose de reviver...

sábado, 7 de dezembro de 2024

Entre dois iguais e Caetano

 Por Ronaldo Faria


-- Você lembra mesmo do passado?
-- Claro que lembro.
-- E isso ficou gravado tanto tempo na sua memória?
-- Ficou. Parte como algo a se esquecer e outra parte a aquiescer, como se estivesse pra sempre nas cenas de amor e paixão entre dois iguais.
-- Como assim?
-- Como algo que era um mundo à parte, apartado do medo e da dor da realidade. Algo de infância renascida e que guarda raízes indeléveis até hoje.
-- Sei. Coisa de mansidão estradeira, feita em dias de viagem e paragens de secura, mas com todas as cores possíveis. Saudade inefável, enfim.
-- É, quase. Um fim que nunca acabou. Se perdeu, se desfez, se reencontrou em sorriso de espera inglória após a morte e o desejo de revisitar um passado carcomido e enterrado.
-- Entendi. Triste, não?
-- Não sei. Como o corpo que ficou largado nos fundos da cova e nunca mais será revisitado, tal reencontro de lembranças foi sepultado.
A conversa, convexa e incongruente, chafurdada em recordações primatas e primárias, se esvai sem razão de aglutinar. Na distância de longas léguas, milhares de quilômetros e mares sem conta, a voz de história histriônica, lacônica, tragicômica. Em portais, móveis que se fecham e se abrem, portas com ferrolhos e ferrugem, sentenças proscritas e escritas, dicotômicas, atônitas, atômicas se explodissem além da memória. Senão, apenas cifrão esquecido nas contas da vida ou cifras da canção nunca escrita, na desdita inaudita que só o luar que iluminou gente e animais sentenciou em si.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Piramboca da parafuseta e Renato Braz

 Por Ronaldo Faria


Picotar na MP3, pisotear magias e mágoas inalteradas nas águas que hoje não se fazem ressaca mas amanhã trarão ondas óbvias de pouca mansidão. Mas teremos de sair para beber o café do Seu Luiz. Resistamos! Depois, nada teremos. Terrenos, fugitivos da vida e ressacados, andaremos abruptos e tolos a percorrer caminhos que a filha canina não mais percorrerá. Assim, Silmar, longe do mar que lhe deu o nome, vira pronome naquilo que isso tiver de ser. A ver e vociferar a mansidão que demove vozes e versos da sangria da vida deletéria. Estagnado em si, lúgubre e infausto, famélico e mordaz, sobrevive no sussurro estendido ao sol que queima sem pensar que seus raios matam e dão vida fugaz. E é somente Silmar, rima inócua no vazio que se faz levar.
Logo ali, perto do sono esperto que perpetua a imaginação profícua, alguém pensa que o amor sobrevive e resiste solerte e inerte no coração que se prepara para parar. Na aurora que seria altaneira anos atrás, um pássaro voa nos raros raios que sobremaneira se interpõem. No acordar de acordes surdos surgem canções. Imensidões rarefeitas e afeitas ao tardar de cada um. Na viola que viola o âmago do coração que surge em unção, a gratidão de ao menos saber soletrar um abecedário tão pouco proletário senão. Na noite, noir, a torre infiel a vazar no céu surge anêmica e cruel a fugir no trenó que foi roubado de Papai Noel. Daqui, com Silmar a ultimar final feliz, o infausto brinquedo de cada dança como fosse criança à espera de um final, enfim.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Adeus samba, até 2025

 Por Ronaldo Faria

 


Na avenida o samba já nem se lembra que desfilou e fez a alegria da passista e do compositor. Para ela vieram os desejos carnais de tantos carnavais, para ele a cantoria de milhares de vozes vorazes em si como vestais a cantarem os versos desiguais.
-- Jerônimo, homônimo heteronômico fugaz, vale a pena achar que os carnavais do passado foram a verdadeira delicadeza?
-- Sei lá... Ou melhor, sei. Um deles ao menos foi. Mas só um, que permanece vivo no eterno relembrar.
 
Fevereiro de algum ano do Século XX, vinte para quem faltou nas aulas de números romanos. Jerônimo, a amada e outros interlocutores anônimos para a prosa brincavam no salão. Antes, ambos estavam na avenida. Logo mais estarão na cama, a brincar de fim de folia, a fazerem a cama correr os poucos metros quadrados e enquadrados no depois e após apócrifo do senão. Tudo começava na parede e parava na porta, como querendo sair sala a fora, abrir um portão, descer escadaria e se largar na rua que descia para encontrar a avenida.
-- Foi bom esse Carnaval?
-- Como assim? Quer que o paraíso se perpetue?
Claro que Camila, personagem essencial para se entender a história, queria. Mas havia realidade e passado, a fatalidade tardia, tríade de rebentos que já não chorava pelos peitos mas prendia desejos e carências infindos, pendia entre o desejo de ser feliz e a obrigação de fazer outrem feliz.
-- Vamos simplesmente viver?
No estupor do momento o silêncio e o lamento da vida se fazem notícia de jornal na voz de Camila. No final de qualquer coisa,,metros e metros quadrados, guardados na lembrança que não se esvai.
-- Está lembrando o que, Jerônimo?
-- Nem eu sei. Talvez fosse melhor esquecer de vez. Mas como seguir adiante se não houver algo a lembrar, a nos mostrar que a tal felicidade existe de fato, mesmo sem ser unanimidade? E se por um momento fátuo, inócuo, fizemos parte dessa minoria? Se pudemos de uma forma efêmera, macho e fêmea, acharmos que fomos felizes?
-- Talvez você tenha razão. Mas de que vale a razão de antemão? Afinal, mil e tantas variantes existem entre um início, o meio desatinado e o pseudo fim?
-- É, afinal o que é a razão? Mero e destrambelhado tesão? Um slow motion do passado arfado e calado em si? Sorrisos e afagos que dançaram de forró a fado? Fatalidade de duas vidas cruzadas em teclas e teclados, separadas na esquina fatídica do não...
Na décima e algo se saberá de que os amigos exaustos de quererem encontrar respostas para a vida se entregam à saideira. Nessa hora a certeza do fim derreou, o momento já não há, o tormento do amanhã vira deletéria imprecisão. Das tantas caixas de um acústico sonoro surge a noite enfim. Logo mais o caminhão de lixo surgirá para carregar recicláveis e emoções do passado.
 
(Com Celso Fonseca a rolar)

domingo, 1 de dezembro de 2024

George Benson, no tempo do jazz

Por Edmilson Siqueira


A única informação que posso dar sobre o CD que motiva esse artigo é que a guitarra nele tocada é de George Benson. Quando foi gravado e quais músicos dele participam é um mistério. Não há, na internet, qualquer referência a esses detalhes, apenas o CD à venda, com as quatro músicas nele contidas. Descobri apenas que o ano de lançamento do CD é 1990 e que ele foi produzido na França. E se a data estiver certa, é de quando Benson tinha 42 anos mais ou menos e ainda se dedicava exclusivamente ao jazz.
Mas isso não quer dizer que seja um trabalho menor. O disco "Invitation" é um ótimo exemplo da grande qualidade do ex-guitarrista de jazz George Benson, e do grupo que o acompanha (piano, bateria e contrabaixo). Eles dão totalmente conta do recado.
O CD foi gravado ao vivo, pelo que demonstram aplausos de uma pequena plateia tanto no meio da música, depois de alguns solos mais elaborados, como ao final de cada apresentação.
O disco todo tem pouco mais de 42 minutos, divididos em apenas quatro músicas. Ou seja, além da melodia normal (ou quase normal) de cada música, os quatro esbanjaram nos improvidos. O que, aliás, torna o trabalho todo muito mais atraente. É bom ver grandes músicos dedicando seu talento aos improvisos típicos do jazz.


 
George Benson está com 81 anos. Nasceu em Pittsburgh, na Pensilvânia, numa família de refinados músicos amadores. Aos seis anos já tinha começado a se apresentar ao público. Um ano depois, sua mãe se casou com um eletricista que também tocava guitarra de jazz amplificada. O jovem George implorou ao padrasto que lhe ensinasse a tocar. Infelizmente, suas mãos eram pequenas demais para alcançar o instrumento em toda a sua extensão e ele acabou ganhando um ukulele (pequeno instrumento havaiano de quatro cordas). Mesmo assim, alguns anos mais tarde, Benson ganhou a sua primeira guitarra. Em 1953 - ainda com 10 - ele gravou o single "She Makes Me Mad" nos estúdios da RCA.
Durante um bom tempo, foi um grande guitarrista de jazz, mas depois enveredou pelo pop, onde foi o autor de inúmeros sucessos. Dessa fase, assisti a um show dele em Barcelona, onde ele dividiu o palco com All Jareau. O show, excelente por sinal, saiu em disco e até ganhou prêmios.
Mas o misterioso CD "Invitation" que tenho, é importado e, pesquisando nas redes, descobri que ele tem outros nomes, como "Oleo" (Sonny Rollins), que é a música que abre o disco. Seu ritmo alucinante se transforma num desafio para uma apresentação ao vivo. Os longos solos de baixo e bateria são destaques para a apresentação de 10 minutos e 18 segundos, entremeada de aplausos.
A seguir vem "Lil's Darling" (H.Hefti), um clássico instrumental tocado com muita competência. Trata-se um blues onde tanto Benson quanto seus músicos se divertem bastante tocando durante 10 minutos e 57 segundos.



A terceira faixa é outro clássico: "All The Things You Are" (O.Hammersmith e J. Kern). Quase tão rápida quanto "Oleo", é nova oportunidade dos músicos mostrarem seus talentos. É a faixa mais curta do disco, com seus 8 minutos e 30 segundos.
Encerrando a apresentação, pelo menos no CD, a última faixa é a que dá título ao disco, "Invitation" (B.Kaper e P. Webster). É a mais longa do disco com seus 12 minutos e 19 segundos. É também um blues mais soturno que encerra magnificamente o conjunto sonoro aqui apresentado.
Muita coisa de George Benson pode ser encontrada no YouTube. Mas não encontrei esse disco específico. Se alguém quiser comprar, ele está à venda em https://www.discogs.com/release/6650564-George-Benson-Invitation?srsltid=AfmBOopw_u8YDYWnfCLu94ZiOr5vyGeiqkddlllOgj210we3rg7Ny1z_

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Manchetando com Celso Fonseca

Por Ronaldo Faria


Tragicomédia. Efeméride banal. Uniforme disforme e colegial. Coisa imaterial como se diria hoje às manchetes vespertinas de jornal. “Parem as máquinas! A verdade voltou!” Ou será que ela nunca chegou?
José está perdido no infindo infinito de onde ninguém chega ou sai. Acabara de levar uma dedada que lhe disse que um câncer talvez inexista. Felicidade? Só os próximos exames irão confirmar. Mas a praia, cheia de areia e ondas, brisas e coxas e peitos ao vento, está logo ali. E o sol brilha amarelo e eterno no céu. Quando a Terra acabar, por conta e documento sem alento dos homens, ele ainda estará ali a rir da imbecilidade de seres ditos humanos. Tivesse sido os outros animais, irracionais, ou a própria natureza a comandarem a peça teatral, tudo estaria igual como a milênios.
-- E aí, José, vai a saideira?
Derradeira? Claro que não! Que venham muitas mais. Ele mal havia começado sua estrada estradeira. Sua ida e loucura mal começaram a trilhar letras e sílabas, frases e parágrafos, sentimentos ágrafos que não terminam nunca. Agora, solitário, lobo e cordeiro de si mesmo, o importante era crer que a vida pode ainda resistir um tempo, mesmo a esmo.
-- Viu o resultado do Botafogo ontem? Tenho dó de quem torce para um passado distante, tão equidistante como a Terra de Plutão.
-- É, botafoguense só se fode. Ou seja, é um brasileiro padrão.
No copo a cerveja teima em esquentar. Na cabeça as lembranças entram em torpor.
-- Se Garrincha estivesse vivo ele talvez chorasse de dor de ver o que restou...
-- Talvez. Mas quem não tem um choro guardado por alguma merda que no passado fez? Soubéssemos do futuro estaríamos assim no presente?
-- Manoel, traz mais umas tantas porque o Zé aloprou de vez!
O português obedece feliz e mete o dedo na comanda. Ao redor, em derredor e dor, o vento de ventilador de teto não lembra mais dos afetos de meio afeto que fez nas mesas abaixo.
 
II
 
-- Cléber, você por aqui?
-- Com certeza. De novo, renovado.
-- Beleza, mano. Então vamos para as entradeiras.
-- Claro. Que desçam e cheguem cada vez mais...
Cléber, carioca da gema, da Zona Norte, onde a cidade se formou e depois migrou para o mar, acreditava que viver o momento, fosse ele em alegria ou tormento na mesa de bar, já valia ter visto as horas parcas correrem em 24 num insano respirar. Na praia, aprisionada nos corpos morenos e efêmeros, libidinosos e fogosos, tantos uns e tantas outras viajavam no mundo etéreo que o verão dá. Na areia quente e requentada na paródia que é viver, a viagem na derrocada letal.
-- E aí, Cléber, como está Marilena? Gostosa e peituda como sempre?
-- Não sei mais. Aliás, da última vez que a vi estava meio caída. Como dizia a propaganda: o tempo passa, o tempo voa.
-- Verdade. E é cruel. Chega rápido. E corrói tudo sem pedir permissão. De repente, estamos nós a desatarmos nós que nenhum de nós achou que tinha feito.
-- É. E são nós de marinheiro, que nem que já foi escoteiro sabe desatar.
No céu, devagar surge o luar. A brisa muda de odor, o mundo antevê outra cor. A luz que se vê é do Arpoador.
-- Mas tudo vale, não é?
-- Se a alma não for pequena, sim. Como disse o poeta. Mas e se não houver alma? Pra quê fingir que há um depois?
-- Moços, querem um amendoim? – a voz do garoto quase roto, retinto, soa como destino que pede para toda conversa desconversar.
-- Não, obrigado. Mas boa sorte pra você.
-- Porra, Gilberto, deixa de ser mão-de-vaca e dá cinco contos pro moleque!
-- Tá bom, deixa um aí!
-- Obrigado, doutor. Boa biritagem pra vocês! – responde o menino que sai a correr de mesa em mesa: “Quer um amendoim?”
Na rua, rotunda e moribunda, os carros passam viajandeiros. Os ônibus, atolados de pessoas cansadas e arfadas depois de mais um dia de trabalho árduo, parecem apenas brotar das esquinas em sinas sinuosas. O mundo é foda, parceiro.
-- Que bom que o mundo ainda existe, não é?
-- Para alguns, para alguns...
 
III
 
-- E se eu for morto por um louco e insano que não sabe sequer o que é ser lânguido?
-- E o que é ser lânguido?
(Lânguido - adjetivo
1. que se encontra em estado de abatimento, de grande fraqueza física e psicológica; sem forças, sem energia.
2. característico do que é doente; mórbido, doentio.)
-- É verdade, vai ser foda!
No meio desse papo louco de botequim, mais um dia estranho...

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Papo de dois viventes do século há muito passado

 Por Ronaldo Faria


-- Quantas já foram?
-- Sei lá, Raimundo. Você é muito sistemático. Isso importa? Está preocupado com a conta? A gente vai rachar meio a meio. Deixa de estrupício.
-- Não é isso. É que a Aurora está em casa me esperando.
-- Ô meleca, ela te espera faz mais de 50 anos. Vai ser justamente hoje que ela irá resmungar? Ela já está dormindo faz tempo...
-- Sei não. Será que a novela das seis já acabou?
-- Raimundo, ela acompanhava as novelas da Rádio Nacional. Acha que ainda está acordada?
-- Seu garçom, por favor, que horas são?
-- São 19h20, Seu Raimundo...
-- Está tarde, Zequinha. Falei que voltava às seis e meia.
-- Mas pelo amor de Deus, o medo é da canja esfriar? Pois saiba que ela já esfriou. As pelancas da galinha já dormem sobre o caldo.
-- Como você é mau, Zequinha. Você sabe que eu não gosto de canja fria...
-- Se é por causa disso, ô colega da caderneta, manda duas coxinhas quentes pra mesa!
-- Coxinha? Sabe que eu não posso com fritura desde que operei a vesícula há 40 anos atrás.
-- Isso é coisa da sua cabeça. Não esquenta. Vamos comer as coxinhas e conversar sobre a Copa de 58. Lembra que ouvimos juntos a final na casa de papai? Tinha um monte de gente colada na transmissão. Quando acabou era o tal de festejar e gritar. Vou te dizer, naquele dia, papai estava tão bêbado que aproveitei e tomei um gole da pinga que ele nem lembrava que estava a bebericar.
-- É, foi emocionante. Acho que veio a redenção da nação. Como disse o Nelson Rodrigues, perdemos a vergonha de sermos perdedores, vira-latas, ou algo assim.
-- Ah, já vivemos muito, não? Claro que não. Só por termos quase 90 vivemos demais? Eu posso até usar bengala, ser meio banguela, sentir dores no corpo quase todo, mas ainda venho aqui no boteco do neto do Seu Irineu tomar minhas cangibrinas.
-- Você gosta de parecer um garotão, como dizem esses de agora. Mas desde que a Marieta morreu não tem prumo na vida.
-- Prumo nada. Foi a segunda chance da liberdade. Quando eu vou pra casa eu não vou preocupado com a pelanca da galinha. Vou pra assistir minha tevê, comer o que tiver e dormir.
 -- Por isso que seus filhos e netos não te procuram. Você se acha a derradeira bolacha de sal do pacote.
 -- Raimundo, você é um imbecil carimbado e lambido de selo. O fato da pelancuda da Aurora ainda babar na fronha te faz melhor? Faça-me o favor...
-- Eu pelo menos chego em casa e tem alguém.
-- Claro, isso se o aparelho de audição dela não estiver descarregado!
Preocupado com o tom da conversa, Kleiton, o garçom, toma as rédeas da história.
-- Senhores, muita calma nessa hora! Vai a terceira cerveja ou já fecho a conta?
-- Terceira? Zequinha, você quer ficar bêbado de verdade? Traz a conta!
-- Raimundo, com todo o respeito, vá se foder! Não saio daqui sem a saideira! Traz a terceira!
Discute de lá, pragueja de cá, e chegam à conclusão que uma latinha irá satisfazer o desejo ensandecido de beber.
-- Então está bem, vou trazer a latinha e a conta.
A voz de Kleiton vira a sentença final.
-- Tem o dinheiro pra pagar?
-- Claro, minha aposentadoria é pouca mas dá pra esse arroubo.
-- Consegue fazer a feira se pagar?
-- Com certeza! Não sou mendigo.
-- Então está tudo certo. Até a próxima semana?
-- Claro. Apesar de você ser um chato, virei.
O destino, porém, bradou diferente. Aurora, asmática, naquela semana, como dizem hoje, empacotou. Raimundo, viúvo novo, se fechou em casa a pensar nas canjas que não mais existirão e no boa noite dito com a voz da amada que não ouvirá. Zequinha, que há muito já sabia o que era esse destino moribundo, compareceu religiosamente ao bar e bebeu até não querer mais.
-- Já são três Brahmas? Fecha, por favor. Ainda quero viver mais uns dois anos.
No mundo próximo uma chuva fina definhava na esperança. A vida estava quase uma lambança.
 
(Ao som de Pixinguinha e saber se os diálogos estão corretos ou não)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O melhor de Nina Simone

Por Edmilson Siqueira


Nesses tempos de grandes discussões políticas, onde o racismo é um dos temas mais frequentes, estou ouvindo aqui uma ativista que não só sofreu na pele a discriminação por ser negra, como lutou contra o preconceito em praticamente toda sua carreira.
Estou falando de Nina Simone (1933-2003) e, para ter um bom conhecimento sobre sua carreira, nada melhor que uma coletânea com 14 gravações de vários gêneros.
Sim, porque embora seu nome seja relacionado mais ao jazz e ao soul, Nina passeou, como sua voz marcante, pelo folk, R&B, gospel e pop, tendo iniciado seus conhecimentos musicais no piano clássico.
Eunice Kathleen Waymon era seu nome de batismo. O nome artístico foi adotado aos 20 anos, para que pudesse cantar blues escondida de seus pais, em bares de Nova York, Filadélfia e Atlantic City. Eles não aceitavam sua opção de ser cantora, pois ela estudava para se tornar uma pianista clássica. "Nina" foi tirado de uma corruptela de "Niña", apelido que recebera de um antigo namorado de língua espanhola, enquanto "Simone" foi uma homenagem à atriz francesa da qual era fã, Simone Signoret.
Quando jovem foi impedida, por ser negra, de ingressar no Instituto de Música Curtis na Filadélfia, apesar de ter cursado piano clássico no famoso Juilliard School, em Nova York. A partir daí, se destacou por posicionar-se contra o racismo na crescente onda que tomava os Estados Unidos na década de 1960. E seu envolvimento foi tão grande que foi escolhida para cantar no enterro de Martin Luther King.
A coletânea que estou ouvindo (O Melhor de Nina Simone) começa com um clássico pop, "Don't Let Me Be Misunderstood" (Benjamin Marcus Caldwell), onde suas qualidades vocais se aliam a uma sincera interpretação, não deixando qualquer dúvida da qualidade de tudo que virá pela frente.
A segunda faixa já é um jazz dos melhores: "Do Nothin' Till You Hear From Me" (Ellington e Mills) com uma interpretação meio funkeada, ajudada pelos metais. Um show.
A faixa seguinte entra num campo onde Nina era craque: o jazz lento, que exige esforços vocais acima do normal e que só grandes cantoras conseguem. Trata-se de "Solitude" (De Lange, Ellington e Mills). 
O jazz continua em alta na quarta faixa com o clássico "I Love You Porgy" (George Gershwin, Ira Gershwin e Heyward), do musical "Porgy and Bess" que ganhou com Nina uma de suas mais marcantes interpretações.
"Love Me Or Leave Me" (Donaldson e Khan) é a quinta faixa, também no estilo jazzístico, mas bem mais rápida e com um ótimo piano. Nina passeia pela música com a natural desenvoltura. 
Um blues marcante aparece na próxima faixa e de ninguém menos que Bob Dylan - "I Shall Be Released"). O estilo pop segue em toda música, com um acompanhamento firme de uma guitarra e de teclados. Ótima faixa também.
"Work Song" (Adderley Brown Jr) é a sétima faixa. Mais um pop agitado que cai muito bem na voz de Nina. 



A oitava faixa já nos remete à canção francesa (Nina viveu na França, onde morreu, aliás). E é um clássico: "Ne Me Quitte Pas" (Jacques Brell). A interpretação clara e meio seca de Nina retrata fielmente o sentido que o compositor quis dar ao apelo à amada para que não o deixe. 
"Gimme" (Stroud) já mostra uma Nina emprestando sua voz marcante para o mais puro rock and roll. Uma faixa que dá vontade de afastar os móveis e sair dançando ao melhor estilo dos anos 1960. 
A décima-faixa - "Nobody Knows You When You're Down And Out" - é uma daquelas baladas que ficaram famosas nas vozes de grupos vocais, só que com uma qualidade melódica superior e que se encaixa muito bem na voz de Nina.
A faixa seguinte - "He Needs Me" (Arthur Hamilton) - traz o bom e velho jazz de volta. Uma canção lenta e triste, com um trio (piano, baixo e bateria) muito competente a acompanhar Nina.
A décima-segunda-faixa é "Spring Is Here" (Duke e Gershwin - há controvérsias sobre a autoria) e é também um belo exemplar da canção jazzística que as grande cantoras negras americanas costumavam embalar os cabarés. Nina mantém a tradição.
"My Babe Just Cares For Me" (Khan e Donaldson) é outro clássico do jazz gravado por muita gente. Nina não deixa por menos, captando toda a intensidade e ironia da canção. Destaque também, novamente, para o trio que a acompanha na faixa. Infelizmente, o CD não tem uma ficha técnica, apenas o nome das músicas e seus compositores, assim mesmo com algumas dúvidas sobre eles. 
O disco se encerra no puro rock and roll, com um clássico do grupo The Animals dos anos 1960. Trata-se de "The House Of Rising Sun" (Holmer e White). Nina dá uma nova intepre,tação à música, puxando para o country e mostrando uma nova possibilidade para a famosa gravação.
O CD pode se comprado no Mercado Livre e em outros bons sites do ramo. Não encontrei no YouTube a gravação para ser ouvida, mas lá está quase toda obra de Nina Simone.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Cadeiras na calçada a ouvir Amelinha

 Por Ronaldo Faria


Juju proseia com Celinha. No ar há uma mistura de palavras e ideias em invenção e prosopopeia. Existe, nalguns momentos, até epopeia. Coisas que vêm de Atenas ou da Galileia, dada à idade de ambas. Sentadas em suas cadeiras na calçada, abismadas com os tempos modernos, pouco afeitos e fraternos a vetustas senhoras, contam histórias imemoriais que nem Gutemberg saberia numa folha de papel imprimir. No frigir dos ovos, beijos eram ósculos.
-- Você lembra quando Astrogildo foi lá em casa pedir minha mão em namoro a papai?
-- E não lembro... O Seu Arcanjo ficou uma vara, queria colocar o rapaz pra fora a varas de marmelo no lombo.
-- Foi. Ele dizia: “filha minha só sai de casa aos 15 anos”. Eu nem menstruado tinha.
-- É, mas os tempos eram outros. Que bom seria se o outrora tivesse se perpetuado...
Na rua que teima em dividir o quadro em lado direito e esquerdo, esquinas, um rapaz passa com sua bicicleta elétrica e grita alto: “ E aí, vovós, tudo beleza?”
-- O que esse moleque depravado quer dizer com beleza?
-- Sei lá. Beleza pra mim era o entardecer na fazenda, com os bezerros a mugirem, o lampião a iluminar o escuro em meia-luz com aquele cheiro gostoso de querosene. Um ou outro morcego a voar nas telhas do quarto. Era de botar medo, mas nenhum nunca veio o nosso sangue chupar.
-- Cruz credo, ainda bem! Minha mãe dizia que eles só comiam frutas. Eram do bem.
-- E as procissões pra pedir chuva, você lembra?
-- Como não. Eram lindas. Todo mundo de branco cantando incelências para ver se os santos davam uma ajuda pra terra não ficar esturricada além do que já estava. O padre suado na frente a excomungar o fato de ser padre e ter de orar aos céus quando melhor era ficar na sacristia a beber vinho e contar tostões.
-- Mais bonito do que elas só as noites de lua cheia com o sanfoneiro chamando a roda de ciranda. Todo mundo em volta a fogueira a rir e brincar de viver feliz.
-- E tão lindo quanto triste era o enterro dos anjinhos que nasciam mortos ou não vingavam. A ruma de gente a seguir o caixãozinho até um campo santo qualquer.
-- Por que tudo isso acabou?
-- Sei lá. Acho que foi o tempo que passou. E voou rápido como se quisesse desaparecer de propósito pra provar que as nossas vidas são só uma vela a queimar.
-- Que mal doloroso...
-- Fazer o quê...
Ao longe o som do sino da igreja badala para a hora da oração a Nossa Senhora. Mas essa realidade ainda existe? Ou será simples chiste de um padre esquerdista na bandalheira que virou a fé?
-- Acho que está na hora de irmos entrar pra rezar, jantar e depois dormir.
-- Será? Posso dizer uma coisa feia, mas bem feia?
-- Pode, né...
-- Então, vai lá: puta que pariu, que se foda a hora da missa! Eu tenho um licor de jabuticaba aqui em casa. Quer entrar e tomar?
-- Não é pecado?
-- Pecado, eu cheguei à conclusão, é morrer. Afinal, ao fim de tudo, vivemos pra quê?
-- Quer saber, tem razão. Vamos encher o pote com seu licor.
Elas riram em seus dentes restantes e resistentes e foram para a sala degustar o tal licor que de tão velho já viu há muito o álcool evaporar. Mas, para Juju e Celinha pouco importava. Atávicas, para elas o drama era estupor. E ligaram a vitrola, colocaram os discos que quiseram, relembraram seus maridos mortos e enterrados. Solertes e brejeiras se embrenharam nas lembranças do tempo em que ainda tinham tranças. Riram muito mais e um tanto ainda mais e dormiram feito duas crianças no sofá coberto com a manta encardida de fios do Egito. O tempo para elas voltara afinal. E agora sem tempo, sem agonia, sem final.

sábado, 23 de novembro de 2024

Fantasia de passado

 Por Ronaldo Faria


Na mesa, ensimesmado, Valfrido vaticina a sorte pueril de viver. Ri tresloucado e desdenhado nas horas escuras que sombreiam de luzes os negrores ao redor. E viaja em si mesmo. Acaricia a própria barba para se saber amado. Naufragado nas efêmeras pernas das fêmeas que habitam seu passado, submerge e emerge a cada gole e som da canção. No bar, uma roda de samba ensaboa de suor os casais que dançam o fim de mais um dia em nostalgia. Valfrido, sentimental a ponto do sentimento se tornar mortal, é um a mais na travessia que converge aos loucos e sonhadores. Na encruzilhada se encontra perdido.
Noutra mesa, calada e ruborizada com a cantada que acabara de levar, Selma redescobre o imbróglio que é ser virgem com ascendente em capricórnio. “Ir ou não? Responder ao aceno ou ficar na minha, feliz por sê-la?” O amanhecer ainda não chegou ou disse que está para aportar. Há muito a se fazer e viver. Selma se assemelha à certeza de que a solidão pode ter fim, tal e qual crescem no jardim a camélia e o jasmim. “Melhor ficar na minha...” Na fila do banheiro feminino, a floreira forra de vermelho o inerte desvelo.
Como todo o conto sobre dois que desejam virar um ser uniforme e disforme, Selma e Valfrido se esbarram enquanto o garçom tenta entender o pedido de Francisco, um personagem que em nada mudará o fim deste escrito. “Desculpa, não te vi” – diz Valfrido embriagado na beleza de Selma. “Sem problema”, respondeu a nova musa, coberta literalmente de ouro linguístico no eufemismo do amor e da paixão. A certeza é que ambos mentiram a si mesmos. Seus olhos com certeza se cruzaram e se encontraram quase míopes e esbugalhados.
A partir daí, a traduzir o solilóquio que se fez, os dois transgrediram poemas e prosas, conversaram sobre mil versos enquanto a vendedora chega com um buquê de várias rosas. “Me dê duas, das mais bonitas”, diz Valfrido. “São suas, já que ninguém até então te presenteou com nenhuma.” De fato, Selma nunca havia ganho uma pétala sequer. No mundo de hoje o romantismo parece ter se esquecido de fazer parte dos dicionários e do imaginário. “Obrigado, vou guardar com todo carinho”, disse com a voz da descoberta.
Decerto, todos pensarão que a história se acabou nas cobertas de um ou do outro. Em orgasmos e engasgos de saliva. Mas não. Saíram do bar ao fechar e seguiram pelas ruas e esquinas a gargalharem sabe-se lá do quê. Nem era preciso saber. Afinal, no final de tudo, só a eles interessa a troça ou a troca de beijos e afagos, mãos coladas e cabelos acariciados como fossem infindos agrados. Despediram-se no portão, se despiram da solidão e disseram que na manhã aberta voltariam a se ver. Depois, nas respectivas camas, antes lugar de choros e dramas, descobriram que há chamas a crepitar nos raios do sol a chegar.
 
(Com as bênçãos do som de Belchior)

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Alceu em vacância na falência

 Por Ronaldo Faria


Vesúvio derrama rios de fogo sobre as ruas imaginárias do tempo que o vento traz no fim da tarde. Em alarde, Bethânia faz rotunda a bunda que desfila nas ladeiras de Olinda. A brincar de vastidão na imensidão que desagua nas águas do oceano que se faz atlântico e atlético pelas ondas que arrebentam com força descomunal, ela revoa longínqua no coração do amado. Este, como um fardo da vida à espera do famigerado fim, permeia nos lençóis que há muito não veem o sol o tempo do primogênito nunca vindo. Heterônimo de si mesmo, a esmo, vagueia entre factoides e opioides pela estrada onde a direção é uma fada enfastiada. Fatiada de emoções e desejo em unções. Castro era ele. Castrado de esperanças e até menos casto. Na cena da praia havia um urubu.

E onde Bethânia e Castro se encontrariam e se envolveriam em trâmites nunca descritos ou escritos? No meio da trama, traumática e ávida de toques e sinais, certamente os corpos irão se confrontar e se envolver num vir e vir, volver. Como roupas a voarem em revoadas de maritacas que cobrem de barulho o silêncio da querência, os corpos estarão em ladeiras e eiras e beiras a beirar a felicidade e a liberdade. E se contorcerão em atabaques e baques que nunca serão esquecidos, aquecidos por corpos nus e misturados. Em fardos de beijos e toques, lânguidas lambidas e fornicações, ambos farão de quase nada um mundo de fado. Assim, numa metáfora infinda se unirão na distância intrínseca à felicidade e permearão aquilo que o coração, bobo, bombeia para viver.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

A florir as flores mortas

 Por Ronaldo Faria

 

Vida, essa ávida redenção de trajetos e trovas mal escritos, contritos e limítrofes entre o prazer e a dor. Ao menos era isso que pensava Ana Catarina. Na sua retina, esverdeada e turva, a vida passa em dias apocalípticos e lúgubres. E em cada um deles se transforma em palavra inglória que surge na página em branco e se enche de letras e sílabas negras. Talvez um poema à espera do fonema perdido nalgum lugar da noite em surdina. Senão, mera criação inebriante que sai do coração infante daquele que espera a quimera da felicidade sem saudade.
Num bairro próximo, entre a mesa do bar e monóxido de carbono, Artur Castro, casto em seu desejo de ser poeta, vê o tempo passar. Sem passaporte diplomático ou primeira classe, ele é somente miragem na vida. Mas não desiste de poder singrar longas marés em galés cheias de rum, marujos a buscarem tesouros nas pernas das mulheres de cada porto, um capitão cego e com ambas as pernas de pau a gritar contra a retidão do mar. Na certidão de nascimento, feita após  o tormento de um parir a fórceps, o sentido inato da exagerada dose de solidão.
Entre os dois, a dor junta louvor e torpor. Na desdita certeza de se viver, o destino corre como Quasimodo, torto e devagar, a tragar sorrisos, carinhos curvilíneos, beijos de línguas desencontradas e atadas no forjar. Ana e Artur, dois seres ungidos e carcomidos no seguir de meses feito reses no pasto, vão no vasto seguir a rodar ciranda no terreiro. Como colibris sugam o mel das flores que sobreviveram ao cheiro da vida e se se tornam incólumes vozes no lumiar do verão. Arautos do amor se tornam a gota que vem com as ondas do mar.
A ouvir e ver tudo, o grilo atônito com o fim das árvores e afônico sem poder sequer cantar em voz grilar, se prende no vidro talvez para dizer que a sorte ainda virá. Quem sabe Artur e Ana não se cruzarão numa esquina finda, dessas que surgem no ápice da história... Ou talvez apenas tenha passado de passagem feito miragem letárgica e pragmática para servir de fotografia fria e literal. Ao casal, marginal e fetal, a folia da foda passada, a cansada marginália, a inóspita hóstia que o bispo do juntar nega àqueles que descobrem ser seu próprio mundo. Tudo junto e misturado.
Mas como tudo que o sentido do sensitivo vê ou crê que enxerga, na cega lâmina da felicidade, os segundos seguem sem sentido. Assim, Ana e Artur, como grão de areia que tem cheiro de água e mar, vão a seguir os limites que se transbordam de corpo e alma, farpas de fálicas vidas. Em dado momento da história, porém, vão à janela e enxergam a rua logo abaixo feito astro que orbita em torno dos prédios e do tédio. Sem saber, dão adeus de narciso à vida. No etéreo, suas almas rompem os corpos e se encontram tântricas no rarefeito luar da quimera. E aí a paz do sublimar se faz tela à pintura em aquarela.

domingo, 17 de novembro de 2024

Rosa Passos, compositora

Por Edmilson Siqueira


Em janeiro de 2022, comentando aqui o excelente disco "Azul" de Rosa Passos, escrevi o seguinte: "Suas composições (da Rosa) serão objeto de um artigo aqui, com certeza, mas hoje quero botar o foco nas belas e sensíveis interpretações de alguns dos nossos grandes compositores reunidos num só disco."
Pois bem, chegou a hora de falar sobre as composições da cantora e compositora baiana, que, ao longo dos anos, vem mantendo a altíssima qualidade de seus discos. E essa qualidade não destoa quando a maioria das músicas de um disco têm músicas da própria Rosa Passos com parceiros letristas. 
É o que acontece em "Morada do Samba", gravado em agosto de 1999, onde, das treze faixas, seis delas são de Rosa com três letristas diferentes. Independente da autoria, todas as faixas têm ótimos arranjos, geralmente delicados, combinando com o toque joãogilbertiano do violão da cantora. A qualidade que impera no disco se deve não só à cantora, pois a produção é de Almir Chediak e os arranjos todos ficaram a cargo de Lula Galvão, Gilson Peranzzetta e da própria Rosa. 
As letras estão divididas entre alguns dos bons letristas da MPB. O mais constante, em três músicas, é Fernando de Oliveira, um poeta baiano, desenhista e médico sanitarista. Sobre ele, o Dicionário Cravo Alvin de Música Brasileira diz o seguinte: "No ano de 2014 lançou o primeiro livro de poesias, “O Livro das Estações”. O volume contou com apresentação do poeta, romancista e teatrólogo Ildázio Tavares, referindo-se a dois fatores que considera essenciais no estilo do autor dos textos: 'Primeiro, a configuração de uma poesia que se enraíza na tradição popular – que dela se reapropria para lhe dar um sentido novo, evidentemente erudito. Assim o faz Fernando de Oliveira. Segundamente, o exercício da síntese que, sem ele, não há poesia – há algaravia – e Fernando sabe disso e procura aquele desiderato, talvez supremo do verso que Ezra Pound definiu tão bem: dizer muito com poucas palavras'”.
Já Rosa Passos escreveu sobre ele: "A poesia de Fernando é leve, livre, e tem movimento, cor e beleza, como as estações do ano. Para mim ele é um dos maiores poetas do Brasil”.



Sérgio Natureza e Walmir Paiva completam as parcerias de Rosa no disco, sendo que de Walmir, ela grava ainda "Calmaria", só dele.
As três músicas com Fernando Oliveria são "Esmeraldas", "Pequena Música Noturna" e Roseira". Já com Sergio Natureza, Rosa gravou "Marco" e "Nada Igual". "Primavera" é dela com Walmir Paiva.
Além dessas parcerias, todas muito agradáveis de se ouvir, Rosa Passos selecionou um repertório que complementa o disco de maneira notável. 
Começa com "Beiral", de Djavan, seguindo com "Lá Vem da Baiana" e "Saudade da Bahia" de Dorival Caymmi e "Retiro" de Paulinho da Viola.
Ou seja: além de oferecer delicados sambas ao estilo bossa nova, compostos por ela e seus parceiros, Rosa ainda vai buscar em renomados compositores brasileiros o complemento de qualidade para seu disco.
O CD pode ser comprado por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ujNnSF1dlg0&list=PLoXfp0i0y0QI6GmckvzwxGFCn_I9HEgPV .

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Acabou...

 Por Ronaldo Faria


Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijos.  Terminou a busca pela sereia com gosto de cereja, a benfazeja loucura dos quatro dias, a orgia fatídica e idílica. Findou a profética magia que determinava que haveria o dia da centelha do querer. O bloco desceu a ladeira mas esqueceu de subir de novo. A galinha gemeu e não colocou o ovo.
Acabou! Acabaram os dias de Momo, rei destronado, que esquentaram os corpos trágicos e cômicos ao mormaço de quase 50 graus. Nada mais de bebidas e energéticos, intrépidos foliões e rejeitados amantes que dormiram sós na solidão de uma escola que erra o enredo. Os vendedores com seus grandes isopores já estão roucos de tanto gritar. As falsas baianas retomam sua rotina de voltar a retornar.
Acabou! Chega de “está cedo”, onde a madrugada ainda diz que falta muito para o sol tornar a raiar. O sol já ressurgiu rei no calendário e no lunário. E veio senhor de tudo, resoluto em terminar com amores descabidos, cabides que seguram as roupas íntimas e molhadas,  dádivas que só surgem na entrega eterna da paixão. Como renegados e execrados no amor, surgem parceiros perdidos nas estórias inglórias da ilusão.
Acabou! A hora agora é de brindar a realidade, a frágil e fácil verdade, a famélica crença de que o amanhã será além de uber ou metrô. De abrir a janela ao som do recomeço, no apreço de querer ser. De descer no elevador e dar bom dia sonolento ao vizinho que, igualmente, lamenta o mecanismo da máquina que o coloca no chão. Nesse momento, se isso for alento, sopra a brisa de vento. No ar, a emoção parece ser de domingo. De um domingo distante em que a folia poderá retornar.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Na inconstância de Constância

 Por Ronaldo Faria


Peripécias de peças sem palco e passos sem som. Périplos à busca da perfeição e palavras vagas e vãs. E talvez o fim esteja a poucas horas. Com a hóstia na boca, Constância contrasta com o tempo que ferve do lado de fora. O padre, na verve, prega para os poucos fiéis que ainda decidem se a decisão de ter ido à missa foi boa ou ruim. “Na avenida ao menos tinha um tamborim”, pensa Serafim. Do seu lado, Constância espera que o barulho do samba não mate o arrulho dos pombos na capela de Nossa Senhora do Fervor.
-- Constância, queria ter ido o “Farofa e pó é tudo farinha”. Porra, Carnaval é só uma vez por ano! Missa tem todos os dias.
-- Quer falar baixo. Ou melhor, calar a boca. Está na hora da consagração.
-- Consagração é na Praça da Apoteose! Isso aqui é como se os componentes da bateria tivessem desistido de sair.
-- Irmãos, o sangue de Cristo! Amém – diz o padre contrito na sua fé e profissão.
-- Deu. Constância, estou indo. Te vejo em casa amanhã de manhã ou na quarta-feira.
-- Se você sair, não precisa nem ir pra casa!
-- Fui!
Serafim levanta do banco e sai resoluto pelo portal de madeiras entalhadas e pintadas de verniz. Abre os braços para o sol que queima o mundo sem piedade e grita: “Valeu, vida, eu estou aqui!”
Entra no carro, liga o motor, passa a primeira e acelera na rua vazia. O povo não está no Largo do Rosário e da Reza. Está todo mundo no bloco a fazer do tempo um pouco de vento nas ventas, a aspirar carreiras e seguir na esteira da música que sai do trio-elétrico.
-- Obrigado, vida, por me dar a chance de revoar feito pomba vagabunda de praça a comer restos esquecidos entre um pacote de migalhas de bolachas ou biscoitos.
Enquanto isso Constância beija a mão do padre que dá o seu anel de pedra preciosa para ser enxaguado de saliva e cuspe pelas ovelhas agarradas. As desgarradas há muito não comparecem no altar.
-- Como Serafim pode ter me trocado por um desfile de bloco? E tudo aquilo que vivemos? Que trocamos nas noites de açoites de corpos e nos risos de descobrir que o amanhecer depois surgiria para mais?
Na bunda da foliã a banda passa e abunda o cenário ao derredor com olhos de desejo e uma certeza onde o não é sempre não (nas graças daquilo que deve ser). A dor não faz parte do compasso. No passo das pessoas ressoa o tempo, imensidão de tristezas represadas, vastidão de carências castigadas, encontro de loucuras que dão razão ao maior desejo de ser feliz na cidade que fervilha de tesão e solidão do depois. Mas o que é o depois?
Serafim já passou há muito de Bagdá. Está perto da Faixa de Gaza. Falta só acreditar que nesta madrugada terá uma gozada. Senão, no cadafalso que se abre quando o mestre de bateria apita o final de tudo, o desejo será atropelado pela realidade. Na forja que cria e molda os próximos dias até daqui a um ano próximo de folia, será preciso crer que vale a pena persistir. Cambaleante, Serafim entra no carro, escapa de barreiras alcoólicas de policiais de saco cheio de terem que resguardar a sociedade que se encheu de saciedade e chega em casa. Estaciona o carro na garagem, desce e vai no controle remoto que seu corpo dá encontrar o quarto onde está Constância. A porta, porém, está fechada.
-- Constância, abre a porra da porta! Cheguei! Me perdoa!
O silêncio inclemente que vem detrás da porta é a certeza de que o máximo hoje será o sofá de dois lugares, ralo e velho, que tem na sala. Serafim, no espaço que sobra ao chegar vê que a sua mala está no chão, pronta para com ele zarpar. Devagar, relembra da igreja e da ameaça velada. Tudo bem: o combinado não é caro. “Mas quem sabe amanhã, aliás logo mais, o coração de Constância não mude de ideia?” Serafim deita no sofá, boceja e cai no sono profundo. Na rua o caminhão de lixo passa a catar os restos que cada um acha ser resto. Ainda no clima, um dos lixeiros canta o samba da Mangueira. Logo mais os jurados decidirão se a Verde e Rosa fará jus a mais um título.
Ps.: o título de eleitor do Serafim não estava na mala. Numa madrugada em que festejava a vitória do partido ele foi roubado junto com a carteira em vinte e quatro reais.
 
(Ao som de Cazas de Cazuza)

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...