terça-feira, 8 de abril de 2025

O Cair da Tarde de Ney Matogrosso

 Por Edmilson Siqueira*

 
Lançado em 1997, "O Cair da Tarde" é o décimo sexto álbum solo de Ney Matogrosso, um dos artistas mais versáteis e inovadores da música brasileira. Praticamente o único sobrevivente de um grupo que explodiu no Brasil na década de 1970, o Secos & Molhados, Ney construiu sólida carreira como intérprete, criando grandes sucessos e até hoje lotando casas de shows pelo Brasil afora. 
Neste disco, Ney presta homenagem a dois ícones da música brasileira: Heitor Villa-Lobos e Tom Jobim, interpretando composições desses mestres com a participação especial do grupo instrumental Uakti. Esse grupo, por sinal, é também inovador e talentoso: produz um som único e muito bonito a partir de instrumentos que eles próprios constroem e tem agenda repleta de shows no Brasil e no exterior. E pra ficar melhor ainda, o Uakti não está só: há um grupo de instrumentistas, digamos, convencionais em todas as faixas.
O "Cair da Tarde" é composto por 14 faixas que exploram a riqueza da música brasileira, combinando elementos eruditos e populares. Entre as canções, destacam-se interpretações de obras de Villa-Lobos, como "Melodia Sentimental" e "O Trenzinho do Caipira", além de "Águas de Março", esse só instrumental com o Uakti.


 
A faixa-título, "Cair da Tarde", que abre o disco, é uma composição de Villa-Lobos que captura a serenidade e a beleza do entardecer na floresta amazônica. A letra poética, de Dora Vasconcellos, e a melodia envolvente refletem a profunda conexão do compositor com a natureza brasileira. 
O disco, como um todo, é uma demonstração cabal da capacidade de Ney Matogrosso de transitar entre diferentes gêneros musicais e de reinterpretar clássicos da música brasileira com originalidade e sensibilidade.  
A surpreendente e sensacional colaboração com o Uakti adiciona uma dimensão única ao álbum, incorporando instrumentos não convencionais e sonoridades experimentais que complementam a voz distinta de Ney Matogrosso. Essa parceria resulta em arranjos inovadores que respeitam as composições originais, ao mesmo tempo em que oferecem uma nova perspectiva sobre elas.
Depois de "Cair da Tarde", o disco prossegue com as seguintes músicas:
- Modinha (Jobim e Vinicius)
- Veleiros (Villa-Lobos e Dora Vasconcellos)
- Tema de Amor de Grabriela (Jobim)
- Modinha (Serestas) (Villa-Lobos)
- Sem Você (Jobim e Vinicius)
- Melodia Sentimental (Villa-Lobos e Dora Vasconcellos)
- Canção em Modo Menor (Jobim e Vinicius)
- Prelúdio Nº 3 (Villa-Lobos e Hermínio Bello de Carvalho)
- Caicó (Tema folclórico)
- Cirandas: Se Essa Rua Fosse Minha, Terezinha de Jesus, Condessa, O Cravo Brigou com a Rosa (instrumental), A Maré Encheu e Passa Passa Gavião (instrumental)
- Trenzinho Caipira (Villa-Lobos com poema de Ferreira Gullar)
- Águas de Março (Jobim) 
- Pato Preto (Jobim)


 
Além do YouTube (https://www.youtube.com/playlist?list=PLrt7VbxNS8reSAh22GM5vP59kho3mcB--), o álbum está disponível em plataformas de streaming como Spotify e Apple Music. E também para compra nos bons sites do ramo.
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Na estrada de Lenine e Jackson do Pandeiro

 Por Ronaldo Faria



-- Ele comprasse?
-- Comprou.
-- E pagasse?
-- Pagou.
-- E você cobrou o certo?
-- Decerto.
-- Como decerto? Cobrou ou não o certo?
-- Sei lá. Mal sei o valor das coisas. Ele pagou aquilo que você pediu.
-- E nem quis desconto?
-- Esse é o ponto. Quis.
-- E você deu?
-- Claro que não. Preço marcado é preço cobrado.
-- Fez bem. Então me passa a grana.
-- Que grana?
-- A que você recebeu pela venda.
-- Que venda?
-- A que eu te mandei fazer, caralho!
-- Essa? Essa não fiz.
-- Como não? Tu acabou de me dizer que faturou?
-- Me enganei.
-- Como assim?
-- Acabei embaralhando as ideias. Você pergunta muito.
-- E o que você fez com a mercadoria?
-- Troquei por um jumento com o Zé Lorota.
-- Como assim?
-- É que antes de encontrar o Bastião encontrei Zé Lorota. Ele viu o que eu levava e perguntou se eu queria trocar no jegue.
-- Como assim? E tu trocou?
-- Troquei. É que tu ainda não deu visão no Gumercindo.
-- Quem é Gumercindo?
-- o jegue!
-- Só pode ser brincadeira. Não acredito que você trocou a mercadoria num jumento.
-- Pois troquei. E nem precisa agradecer.
-- Agradecer? Você me fodeu!
-- Que é isso. O bichinho é novinho. Ainda tem muito pra viver.
-- Viver? É tu, seu cabra burro, que não tem mais vida pra cagada cometer!
Foram dois tiros certeiros: no peito e na cabeça. O “vendedor” nem precisou dar o último suspiro. Caiu sem estrebuchar. Logo ali do lado a feira de domingo rolava entre barracas de carnes, moscas e fubá. Mandioca, aipim e fruta de caju. E o barulho era tanto que o corpo só foi achado três dias depois por um moleque que corria atrás do maranhão perdido. Puto da vida com a grana da mercadoria perdida, o dono da venda tenta agora cruzar o jumento com sua égua preferida.
-- Pra alguma coisa essa merda tem que servir...
Do outro lado da cerca o animal zurra de felicidade.

sábado, 5 de abril de 2025

Forfé geral e Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria 


No forfé que Jeremias armou, sobrou pra todo mundo. De Epaminondas a Mané Piraju. Os meganhas chegaram batendo geral em todo mundo. Sobrou bordoada até para o Seo Gastão, senhor de 90 anos que batia ponto na birosca só pra achar que ainda estava vivo. Foi um tal de dizer “não sei quem foi” e “nem estou aqui” que o eco de qualquer caverna seria mentira de taverna. Os homens da lei não quiseram nem saber: desceram o porrete sem fé e nem dó. Da cintura pra cima, era tudo melhor. Do lado de fora, o sargento, que não aguentava ver sangue nem com unguento, só gritava “bate mais e manda ver que a cerveja depois é por minha conta”. Jeremias, o causador de tudo, apanhava sem dó e dor. Seu crime: amar a bela Marinalva, filha do doutor da cidade e das leis. Do lugar, o grande burguês. “Quem tirar mais sangue desse meleca de gente ganha um final de semana de folga inteirinho!”
-- Jeremias, tu me ama mesmo?
-- Claro, Marinalva. Daqui até depois do sol.
-- Que coisa mais linda de alguém falar.
-- Pra você eu serei sempre poeta. No funeral ou na festa!
-- Como você consegue rimar coisas tão díspares?
-- Disparo?
-- Deixa pra lá. Vem aqui me beijar.
O juntar dos dois surgiu de repente, no rompante que o amor dá e flerta em querer ser. Viram-se num entardecer na praça da igrejinha dedicada a São Simão. Ela comprava um sorvete de graviola. Ele ouvia a viola de Mestre Longuinho. Entreolharam-se de soslaio e dali surgiu um amor cheio de beijos e saudades afins. No outro encontro, sob o tronco de ingazeira, juntaram lábios e afagos, fogosos desejos e tragos de uma descansada em imburana que ele tinha trazido. Dali para depois não faltou nem um segundo. O mundo era pequeno para tanto calor e tocar, sublimar tristezas e desabrochar de riquezas. Eram potes e baús de gozo, salivas e trocar de gostos e gestos num gestual que nem mesmo o ser mais animal conseguiria fazer. E assim foram de encontro em desencontro a ver o mundo que não vai acabar. Mas, como em todo o conto de louvor há um Calabar, aos ouvidos do coronel Otílio a história foi chegar. Ferido no desejo de ver a filha casar com o varão do major Hermes Cançandão e juntar terras e riquezas, não pensou duas ou três vezes. “Antônio da Peixeira, vai na cidade e manda o sargento Pedro de Tonha descer o cacete geral. ” Nem precisou de resposta. O capanga montou o alazão e disparou pela estrada forrada de luar.
No bar do Crispim, ali aonde ainda tinha um pouco de felicidade, invadiram os oito soldados da lei que o grupamento dispunha. Coronel Otílio prometeu dar moedas que eles nem na melhor das loucuras saberiam dispor em alcunha. “Mas é só pra quem bater gostoso e bem dado. E em Jeremias vale isso e mais mil”, professa o cabra que dá as ordens do doutor. Depois de tal profecia, nem precisava cobrar que a coisa fosse bem feita. Rolou cacete e a cobra piou e a maritaca se arrastou. Quando os meganhas deixaram o lugar, estava tudo em cacos. Havia feridos, corpos ardidos, gritos urdidos. E lá num canto, sem encanto ou pranto algum, Jeremias jazia numa poça de sangue que parecia igual quando sua mãe teve seu cordão primeiro rasgado e partido.
-- E aí, tudo ajeitado?
-- Coronel, nem se você eu teria feito melhor ou igual.
-- Pague todos e deixe um troco para consertar o bar do Crispim. Diz pra ele que não foi nada de rixa. Só um acerto de contas. Senão, diga o que quiser. A vida é mesmo um faz de conta.
Seis meses depois, no dia de se casar com Carlão, filho do major Hermes Cançandão, Marinalva foi achada enforcada no pé de ingazeira, vestida de vestido de noiva e com um bilhete em que dizia sim para Jeremias. Nessa noite não houve folia. Deitado na rede a ver o mundão além das vistas que lhe pertencia, coronel Otílio disparou um tiro certeiro no coração.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Plantios

 Por Ronaldo Faria


Plantemos cervejas e cerejas. Uma para cada instante. Para agradar o ébrio e o infante. Aquele que dilacera seu coração e o outro que sonha no frescor da dor. Por isso, deixemos esse plantio brotar, emergir da terra, se transformar em mares e cantos de bar, meros lugares a andar. E levemos a produção até o público final. Cada um, decerto, saberá ao certo fazer com ela aquilo que tiver de ser feito. No peito desnudo, para um o gozo e ao outro o universo, o seu mundo disperso. Logo, plantemos cervejas e cerejas e esperemos as chuvas e sóis que as farão surgir. E se urgir o desejo de tê-las antes dos brotos brotarem, possamos dormir profundamente para tudo não matar antes de ser. Nalgum lugar, além-mar, outro alguém estará as mesmas sementes a regar...

terça-feira, 1 de abril de 2025

Morar em Babilônia

 Por Ronaldo Faria

 


Aurora está deitada no alpendre a tentar aprender a sina de viver. Em meio a descobrir que a cachaça derruba o bêbado e o ébrio de fim de semana, não se culpa de submergir à própria loucura. No alforje que sempre leva na busca de um cavalo branco e manco onde seguirá nua pelas areias brancas da última praia que conseguirá enxergar, o mistério do tédio em perfídia a tramar. Suas feridas, nunca cicatrizadas, são, pasmem, a certeza de que há nós atados nas estradas onde almas cansadas descansam sem saber.
Aurora, plenipotenciária senhora, jovem demais à eternidade e idosa dadivosa ao momento pleno, sabe que o agora é muito pouco. O homem que a segue, rouco, estupefato pelo fato de somente a conhecer, não passa de um louco a quem deixaram sair do hospício sem a camisa de força. Por ele Aurora tem pena. E nessa piedade segue a procissão que o padre Narciso, seguidor de Padim Ciço, clama por alívio da dor. Nela, uma ou outra beata chora lágrimas que podem fazer a semente brotar no chão esturricado e pisado do sertão.
O amanhã será, decerto e quase certo, incerto e presto, pronto, um novo incesto. No verso do sanfoneiro cego que toca debaixo do umbuzeiro, o casal acasalado e agarrado prepara o gozo que se fará vida nova para o lugarejo colocar na estatística do IBGE outro nascituro a menos. No rádio de galena surge o narrador a vibrar com o gol do Flamengo. Para Aurora, melhor fosse que no meio do rio seco surgisse a galera lusitana para navegar além da janela ou da gamela onde descansam as tripas do carneiro esquartejado.
-- Aurora, posso entrar?
-- Claro. Só não sei se terá cama para recostar.
-- Não tem problema. Não sei dizer nada mais que um fonema. Qualquer coisa, apelamos para telegrama ou telefonema... quiçá uma dança. Na eletrola, a folia vai rolar.

domingo, 30 de março de 2025

Clima de jazz

 Por Edmilson Siqueira


 O disco se chama "Jazz Moods", o que pode ser traduzido para "Clima e Jazz" ou algo parecido. Só que o conteúdo é de jazz puro, o que, obviamente, cria muito mais que um clima para se ouvir grandes instrumentistas. 
E são grandes mesmo. Olha só a seleção das 12 faixas: Stan Getz, Dave Brubeck, Stephanie Garappelli, Kai Winding, Gerry Nulligan, Dizzie Gillespie, Phil Woods, Winton Marsali, Chick Corea, Gary Burton, Art Blakey & The Jazz Messengers e Michael Urbaniak. Só cobra criada, como diria Adelzon Alves no programa "Amigo da Madrugada", lá na Rádio Globo do século passado. 
Convenhamos: juntar um time desse num só disco já é uma façanha. Infelizmente, a única informação do pobre folheto do CD que tenho, é que todas as gravações foram produzidas pelo RTV Communications Group, da Flórida (USA). E o CD é inglês. Ainda bem que a lista das músicas traz os intérpretes, compositores e onde e quando foram gravadas. 
Assim, é possível saber que a primeira faixa - "Autum Leaves"  e apresentada por Stan Getz - é de autoria de Kosma, Prevert, Mercer e Parsons e foi gravada ao vivo num Concerto na Riviera, em Cannes (FR) em 23 de janeiro de 1980. Acompanharam Getz, Andy Leverne, Brian Bromberg e Chuck Loeb. E, como praticamente todas as outras faixas, se trata de um clássico, inclusive essa versão de Getz, que, digamos, viralizou à época, quando esse verbo só era usado em relação a perigosos vírus. 
 


A segunda faixa fez parte de um disco histórico de Dave Brubeck: "Blue Rondo" (Brubeck) e essa gravação também foi feita ao vivo, no mesmo local da primeira faixa, só que três anos e cinco dias depois. Brubeck se apresentou com Chris Brubeck, Rabdi Jones e Bill Smith.
Em seguida aparece Kai Winding, com Frank Strazzeri, Kevin Brandon e Ted Hawke numa gravação de estúdio, realizada em Hollywood (CA) em primeiro de setembro de 1977. Se o grupo não é muito conhecido por aqui, a música é. Trata-se de "Morning of the Carnival", a nossa Manhã de Carnaval de Luiz Bonfá e Tom Jobim. Preciosa gravação, diga-se.
O grande Gerry Mulligan vem a seguir, com "Applecore 6.16" dele mesmo. O time que o acompanha é dos mais respeitáveis: Lionel Hampton, Hank Jones, Bucky Pizzarelli, George Duvivier, Grady Tate e Candido Camero. 
Dizzy Gillespie, que dispensa comentários, é o dono da sexta faixa, "Slewfoot" (Bland). A gravação não tem data nem local, mas as palmas no fim (se não foram acrescidas) revelam uma gravação ao vivo. E no palco estavam outros 14 músicos fazendo a cozinha toda para o sopro majestoso de Gillespie. 
"Caravan" (D. Ellington, Tizol e Mills) com Phil Woods pede passagem na sétima faixa.  O grande saxofonista do jazz está acompanhado aqui de John Fosset, Marc Fosset e Louis Bellson. A faixa foi gravada já num estúdio digital em Ohio (USA) em 22 de setembro de 1987.
 


O estudioso da história do jazz, grande trompetista e diretor da Jazz at Lincoln Center Orchestra em Nova Ypork, Winton Marsalis, se incumbe da mais que clássica "My Funny Valentine" (Rodgers e Hart) na oitava faixa. Com um time excepcional - Bobby Watson, Billy Pierce, Charles Farnbrough, Jimmy Willian e Art Blakey - a música foi grava ao vivo no Bubba's Restaurant em Fort Lauderdale, na Flórida em 11 de outubro de 1980. 
O Concerto de Riviera, em Cannes, é o responsável por mais uma faixa do disco. Gravada também em janeiro de 1980 (não há registro do dia), "Moment's Notice" (John Coltrane) nos traz ninguém menos que o grande pianista Chick Corea, acompanhado da Oliver Jackson Orchestra.
 A décima faixa - "African Flower" (D. Elington) ficou para Gary Burton com seu vibrafone, acompanhado de piano, bateria e contrabaixo nas mãos de Ahmad Jamal, Sabu Adeyola e Payton Crossley. Também gravada no Concerto da Riviera em Cannes, em 26 de janeiro de 1980.
 A décima-primeira faixa ficou com Art Blakey & The Jazz Messengers. Trata-se de "A Wheek Within A Wheel" (Watson). Na gravação, também em 11 de outubro de 1980 na Riviera, os "jazz messengers" de Blakey foram Winton Marsalis, Billy Pierce, Jimmy Willians, Charles Farnbrough e Ellis Marsalis.
 E, por fim, a última faixa, a mais recente de todas, gravada em 1993, no Village Vanguard, é com polonês Michal Urbaniak. Violinista, saxofonista, compositor e arranjador, ele toca "Softly As In A Morning Sunrise" (Romberg e Hammerstein), acompanhado de piano, bateria e contrabaixo de Mike Gerber, Ron Carter e Lenny White 
 Enfim, trata-se de um grande disco, com músicos e repertório excepcionais. Não encontrei no YouTube para ouvir de graça. Mas há alguns exemplares à venda no Mercado Livre.

sexta-feira, 28 de março de 2025

À Justiça quase tardia

 Por Ronaldo Faria


Rolou a tal determinação de julgamento. Agora o jumento, cansado e manco de tanta espera, poderá ver a carroça pelo homem se levar. A justiça, antes tardia do que nunca, em manchetes e preces lúdicas e sofridas far-se-á. Gregos e troianos juntarão exércitos para cantar na praça a prosaica canção de almas lavadas e renovadas, enxaguadas quiçá. Crenças enxovalhadas às milhares de mortes conspurcadas e jogadas a sete palmos servirão de aplausos tardios, mas vindos por fim. Bem vindos. A história, essa senhora tantas vezes entregue ao nada, tragada por páginas mal escritas ou proscritas, até riu discreta e soberba ao saber o desenrolar. Ao derredor de tanta dor, condoída e torpe a estátua estática tira a venda que a cega e se entrega ao clamor geral. Coisa de tempos antes que já sofrem de artroses por tal esculacho. Num planalto seco e distante, entre ecos e outros tantos, o calendário marca o tempo em que se escreverá nos capítulos dos livros de História, em homenagem a Capitu, “perdeu, Mané”.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Qualquer hora e nada será como antes

 Por Ronaldo Faria


-- Saravá, mizifio!
-- Saravá.
-- O que suncê quer?
-- Nem eu sei, minha mãe. Estou que nem barco em maré: sem areia, chegada e nem pé.
-- Aí é ruim...
-- Eu que o diga.
-- Mas e a fé? Tá junto?
-- O que é fé? Se for esperança, há muito já perdi.
-- Pode ser esperança ou pode ser lembrança. Lembrança de coisas boas, tardias de riso à toa.
-- Sei. Então até isso está difícil.
-- Pense que ao menos você ainda está aqui pra falar, ver, andar, respirar.
-- Só que tudo bem pouco e quase nada.
-- Mas é do pouco que vem o muito, mizifio. Pensa nisso. E saravá. Que Oxalá esteja contigo.
-- Saravá! Vou rezar pra isso.
Francisco levanta e sai do centro a deixar a cantoria e os atabaques para trás. Sai pelo portão e chega à rua. A chuva cai fina, quase nenhuma. Mas o asfalto, já molhado, brilha nas luzes que o poste traz e proseia com as poças que o tempo faz. O cheiro de alfazema e sete ervas toma conta do lugar. Devagar, segue entre as árvores que trazem abrigo. Uma ou outra marquise também alivia o cair de pingos que aumentam a cada passo. Mas, como diz o ditado, na chuva há que se molhar. Nesses dias em que a vida é, melhor com as intempéries não brigar. Logo encontrará um bar. Irá entrar, puxar uma cadeira, sentar, pedir a gelada e se deixar levar. Certamente o destino não desatará, mas, aos poucos, com uma porção de costelas de porco, o afoito e louco sofrer irá tentar sumir um momento só para não perder de vez o corpo que o carrega para todo o lugar.
 
II
 
-- Que família mais linda! Parabéns, Zefa. Fosse comercial de margarina não poderia ser mais bonita. É muita boniteza demais! Além da conta.
-- Obrigado, Pafúncia. A sua também é muito linda.
-- Para, Zefa. A minha não chega nem aos pés da sua. Ela é só sorriso e ternura. Se tivesse concurso de família, a sua seria o Clóvis Bornay. Ia desfilar só pra ser hors-concours. Mas, tudo bem. Quem tem, tem. Borogodó e fashion.
-- Não é tanto assim.
-- Pelamor! Querida, você não nasceu com a bunda pra lua. Nasceu com a bunda, o peito e o dedão do pé. Deixa de querer ser humilde. Não faz que nem a Gertrudes...
-- Tudo bem, Pafúncia. Aceito os elogios. Quer mais um champanhe?
-- Amiga, e eu vou desprezar uma francesa legítima pra tomar? Nem morta!
Sentadas nas cadeiras à beira da piscina onde uma competição de veleiros poderia acontecer sem problema, as amigas acendem um Gitane tradicional e que grita em francês quando o fogo do isqueiro Cartier, o queima: “Me brûle, mais fais-le avec amour”.
-- Rodrigo, me traz outra garrafa de champagne Louis Roederer Rosé Vintage, mas a da safra 2013. Não vá errar. Desça na adega e se certifique que é de 2013.
-- Sim senhora, madame.
-- O quê? Fale direito, pra Pafúncia ver.
-- Oui, madame...
-- Agora sim. Pode ir. E passa na cozinha e diz para Beatriz trazer uns petiscos de caviar e salmão.
-- Oui, madame...
-- Zefa, como você mantém um serviçal que se esquece de falar francês?
-- Ele é bonzinho, Pafúncia. E sabe que essa gente, honesta, está difícil de encontrar. Você demite um e não encontra outro em cem.
-- É verdade. Uma tragédia total. Fosse em Mônaco, não seria assim.
-- Mas deixa pra lá. E Clarêncio? Quando volta dos Alpes?
-- Amiga, nem te conto...
Aos poucos a noite vai chegando e se aconchegando na mansão que descansa num bairro jardim. As duas vão se abrigar perto da lareira e sorvem agora um Bollinger Special Cuvée acompanhado de ostras de Coffin Bay e trufas brancas de Alba. Não se ouve um barulho externo sequer no inebriante lugar. No alto da serra, com vidros blindados e antirruído, o som que rola é apenas das vozes das amigas e do show do Alok, particular.
-- Mas é isso, sua família é o baobá...
-- Pafúncia, você é hilária!
-- Vamos tomar. Alok, toca Raul!
 
III
 
-- Saudade da Dona Ivone Lara. Se samba tem clássicos, um desses clássicos vinha de lá, daquela mulher, devagarinho.
-- Pode crer. Essa era uma dama do samba.
Zé Emerenciano e Mestre Jardel fazem uma resenha forte na birosca sob a escuridão quebrada por uma ou outra lâmpada de poste que resistiu aos tiros da milícia, do tráfico e dos alemães que passam pelo lugar.
-- E o Flamengo? Viu a lambada que ele deu nos gringos que vieram aqui no Maraca?
-- E não... Não fui lá porque a grana está curta, mas vi pela tevê. Nosso time é foda. O tal de Tite se tivesse levado o Mengão nas duas Copas, hoje seria heptacampeão.
-- É verdade. Mas tudo tem esquema. Você acha que a imprensa, os empresários, os outros clubes, a CBF teriam aceitado? É claro que não. Foda-se a seleção. O que conta é o cifrão.
-- O pior é que é verdade.
Do lado de dentro do balcão, o espanhol nascido em Portugal faz o sinal para saber se a dupla da Agremiação e Escola de Samba Baba de Quiabo e Camarão quer mais uma garrafa.
-- E precisa perguntar, Manolo? Manda logo ver!
-- Mas traz aquela que você ia levar pra casa e tomar com a cumparsita.
O calor de outono que pensa ser verão atrasado traz uma brisa mansa e amiúde. Os copos, suados de gotas de prazer, transbordam pela mesa de plástico. No morro hoje, ao menos, não há um morto novo. As estatísticas, imprecisas e sisudas, ficarão paradas. Talvez um marido espanque a mulher, ela o denuncie à polícia, uma criança morra de desnutrição, um ou uma qualquer perca seu emprego de salário mínimo e ínfimo. Mas qual, ali todos estão acostumados no abandono e esquecimento. Por outro lado, também, alguém subirá sua casa de alvenaria com dez sacos de cimento. Fará a sala, o quartinho e o banheiro. E um amor gostoso e verdadeiro irá rolar. Olhares irão se cruzar. A mãe pedirá para o filho ter cuidado a ir e quando voltar. A vida continuará em pandeiro, destino e tamborim. Afinal, no final das contas que não fecham, tudo apenas irá se repetir. Logo, pra que dar piti?
-- Na epifania da vida, pitaco só dá quem tem saída!
-- Bonito, Mestre Jardel. Podia ser enredo de samba. Já imaginou o senhor a comandar a bateria com um samba assinado junto?
-- Zé, você já bebeu demais. Manolo traz a conta!
Refeita de emoções e coberta de risos bons, os dois amigos sobem o resto da rua para se guardarem nos recintos devidos.
-- Boa madrugada, Mestre Jardel. Que os deuses nos deem a fidalguia da porta-bandeira e a beleza da passista na avenida. 

IV

 -- Onde tem quizumba? É só dizer que eu desço a navalha!
-- Calma, João Exu. Não é quizumba. É quizomba. É festa!
-- Aí então, se otário se fizer, dou navalhada na testa.
-- Tudo bem, a gente sabe. Mas fica na sua, fica bem.
João Exu, como o nome diz, era filho do senhor das ruas. Mas quem disse que essa entidade é do mal? Ao contrário, ela traz a paz para as encruzilhadas. Põe ordem nas demandas e arruma e destranca as vidas que estão em dívidas com trancas antigas e nuas. É o rei das noites e madrugadas infaustas e rotas, causticas e tronchas. Aquele que bebe com os solitários, os sonhadores e flagelados perdidos pelo dia a dia. Quisera todos fossem como ele. Com certeza a vida seria uma festa sem hora pra começar e nem momento de acabar. Sequer haveria um novo Calabar. Só o bom e ritmado som de macumba.
-- Você vem com a gente?
-- Vou ver. Talvez sim, quem sabe não.
-- Então desce essa branquinha e decide. O busão já está no horário.
-- Tudo bem, vamos lá.
Subiram os quatro, pagaram a passagem, cruzaram a catraca, deram boa noite ao motorista (para alguns chofer) e sentaram no fundão, perto da porta de descer. Viram as ruas e avenidas, esquinas e faróis (para outros semáforos) passarem. Vez ou outra, o ônibus para num ponto e sobe gente e desce gente. Uns mais e outros menos.
-- Chegando lá, é entrar na prosa, na troça e deixar rolar a vida. Se deixarem no palco, damos uma cancha.
-- Se a resenha mudar de lugar e os caras deixarem o bicho pegar, eu retalho meia dúzia.
-- Calma, ninguém vai entregar ninguém. João Exu, relaxa.
No ponto desejado o quarteto desce. O som do pagode cresce e o cheiro de manga rosa permeia a madrugada. Não dá cinco minutos e eles estão na folia. Afônico, o partideiro convida o Trio Candura pra dar uma deixa. Carlão da Cuíca pede a João Exu que fique na mesa a beber e curtir o que é raiz. Mas, enquanto o furdúncio se esmera, o cabra da mesa recebe Juliana e a vê sentar. Entre vozes e algozes que tiveram a sorte de não ter as gargantas decepadas no amanhecer, o casal se acasala ali mesmo, sem medo de ser feliz. Num canto, sentado solitário na mesa cercada de garrafas vazias de cerveja, o criador da história ri de quem achava que tudo ia acabar em tragédia. João Exu e Juliana hoje têm cinco filhos – três garotos e duas meninas – e vivem felizes no bairro do subúrbio que Deus lhes deu. Ele é segurança de supermercado e nunca em ninguém sequer bateu. Ela é confeiteira de festa de casamento, batizado, bodas de ouro e velório. Ao derredor, só existe o verdadeiro amor...
 
V
 
-- E a agamia? Você viu? Está se tornando preponderante no mundo jovial.
-- Eles não estão errados. Fosse eu nos tempo atrás, devia ter seguido isso aí. Mas nem sabia que isso existia. Também, quem mandou ser admirador de Vinicius de Moraes...
-- É isso. Que merda termos nascido há quase 70 anos. Vivíamos num turbilhão. O mundo dos anos 50/60 vieram pra foder geral. Deixaram um sabor de mudança e levaram milhões de jovens pelo mundo a sonhar que podiam tudo transformar. E muitos despirocaram, morreram em combate ou calabouços, viajaram para sempre em doses de heroína e LSD. Enfim, morreram ou ainda morrem hoje na crença do planeta justo e solidário.
-- Ou seja, um bando de otários.
-- Não. Um monte de poetas, apaixonados pela vida e solitários. Gente a se reverenciar e eternizar no que possa ainda existir de bom nessa bola que roda sem parar.
-- É verdade. Logo, que a agamia conquiste mais gente para sofrer involuntariamente em si, sem proliferar o desamor àqueles que ainda acreditam que dois é mais e melhor do que um.
-- A Terra agradecerá, ou não...
Nas caixas de som, agora, Marisa Monte diz que a melodia é doce nas noites de luar.
-- O pernoite é cem reais. No crédito ou no débito?
O casal em questão, não os amigos de bar, nu e entrelaçado, laçado no desejo saber-se-á por que, vai contra as pesquisas e estatísticas. Apenas se ama e proclama ao mundo que tocar, alisar, acarinhar e, até, penetrar, ainda é o melhor lugar a estar.
-- Quer saber: foda-se essa tal de agamia! Como diriam no passado, eu quero é rosetar.
Na portaria do motel, a atendente diz ao senhor vestido com a camisa da seleção que lá não é lugar de trazer um jumento.
-- A Zoonoses é quase aqui do lado. Se o senhor quiser, eu posso ligar lá.
O homem dá marcha à ré e rumina algo que não dá para entender. No quarto, o casal num gozo igual pede mais outro balde de cervejas para beber, viver e bebemorar.
 
(No fim tudo vira Leila Diniz)

terça-feira, 25 de março de 2025

Dois gênios do sopro juntos e misturados

Por Edmilson Siqueira


John Coltrane e Miles Davis estavam no antológico "Kind of Blues", uma das obras máximas do jazz. E, claro, não estavam ali por acaso: eram gênios notórios, cada qual no seu instrumento. 
Mas "Kind of Blue" foi uma espécie de ápice do encontro desses dois. Antes, eles já tinham gravado muita coisa boa na Columbia. Pois o disco "Miles & Coltrane" da série "Columbia Jazz Masterpieces" junta diversas gravações dos dois: duas de 1955 e cinco de 1958. E os dois estão muitíssimos bem acompanhados, com Julian "Cannoball" Adderley no sax alto; Bill Evan no piano; Paul Chambers no baixo e Jimmy Cob na bateria. Todas as gravações de 1958 são com esse time. Já as duas últimas do disco, gravadas em 1955, não têm "Cannoball" e têm Red Garland ao piano e Phily Joe Jones na bateria.
Para se ter uma ideia mais precisa da qualidade desse disco, basta dizer que o mesmo time das cinco faixas iniciais, seria o mesmo que, no ano seguinte, estaria dando ao mundo o "Kind of Blues". Era o Sexteto de Miles Davis. E todos seus integrantes, com exceção de Jimmy Cob, tiveram grandes carreiras solos. Cob, baterista, morto em 2020, é considerado um dos grandes da história do jazz.
"Música brilhante de dois gigantes" - assim o crítico norte-americano de jazz Scott Yanow encerra um pequeno comentário sobre o disco. Antes, ele escreveu: "Além de duas seleções ("Little Melonae" e "Budo") de sua primeira sessão para a Columbia, este LP contém a apresentação completa no Newport Jazz Festival de 1958. Quando se considera que o sexteto de Davis na época incluía gigantes como o saxofonista tenor John Coltrane, o sax alto Cannonball Adderley, o pianista Bill Evans, o baixista Paul Chambers e o baterista Jimmy Cobb, não é de se surpreender que os fogos de artifício tenham resultado. Ainda assim, o poder e a motivação desta versão intensa de "Ah-Leu-Cha" são uma revelação, e a banda realmente balança e se estica em "Straight, No Chaser", "Fran Dance", "Two Bass Hit" e "Bye Bye Blackbird". 
 


O LP Miles & Coltrane com as gravações de 55 e 58 (as últimas gravadas no Festival de Newport) foi lançado em 1988 pela Columbia. O CD que tenho é uma edição francesa, de luxo, com três encartes, dois com informações sobre o disco e outras gravações que a Columbia tem do sexteto de Miles, e o outro é o catálogo de jazz da Columbia, dividido em 8 seções: Reedições, Fusion, Artistas Contemporâneos, Jazz Vocal, Gospel, Blues, World and Jazz e Jazz e Cinema. Trata-se de um catálogo de fazer babar qualquer colecionador, pois nas 32 páginas do dito cujo, ao invés de lista com os nomes dos discos, estão 80 fotografias das capas dos discos. E, detalhe, entre elas, na seção World and Jazz, o disco "Brasileiro" do nosso maestro soberano Antonio Carlos Jobim.
Em 1955, Miles Davis já era um músico consagrado no mundo do jazz. Coltrane ainda iniciava sua carreira. Embora tocasse antes de 1955, seus principais anos foram entre 1955 seu encontro com Miles) e 1967, durante os quais reformulou o jazz e influenciou gerações de outros músicos. As gravações de Coltrane foram prolíficas: ele lançou cerca de 50 gravações como líder nestes doze anos, e apareceu em outras tantas lideradas por outros músicos. Ou seja, foi Davis quem proporcionou a Coltrane as condições para que sua arte aparecesse. E ele se sentiu tão seguro do que queria, que recusou fazer uma turnê para a Europa logo após a gravação de "Kind of Blue". Mas Davis insistiu muito e Coltrane acabou concordando. 
Quando chegaram em Paris, Davis comprou, num antiquário, um saxofone e deu de presente para Coltrane. O que fez o músico mudar seu comportamento. Coltrane passou a excursão inteira tirando sons do sax e, nos shows, era o que fazia os improvisos mais longos e mais inusitados. O presente acompanhou Coltrane para  resto da vida. 
As músicas do disco o crítico Scott Yanow já revelou, mas vou colocá-las aqui novamente na ordem correta e com os devidos compositores:
1 - Ah-Leu-Cha (Charlie Parker)
2 - Straight No Chaser (Thelonius Monk) 
3 - Fran-Dance (Put Your Little Foor Right Out) (Mils Davis)
4 - Two Bass Hit (John Lewis)
5 - Bye Bye Blackbird (M. Dixon e R. Henderson)
6 - Little Melonae (John McLean)
7 - Budo (Miles Davis).
O CD, não a edição de luxo francesa, pode ser encontrado nos bons sites do ramo. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=7tIgg-zRqeM .

segunda-feira, 24 de março de 2025

Para Caetano cantar

 Por Ronaldo Faria


Caetano, tântrico ser, que bom que pôde nascer nos arrabaldes de Santo Amaro que alguém purificou. Não o fosse, na fossa que a mais inócua e iniqua fossa dá, não poderíamos andar e desandar naquilo que nem o mar denota em lá. Na nata do leite sempre haverá coqueiro e paixão. Quem sabe, também, a sofreguidão que só a imensidão de oceanos nunca navegados nos faz tragados em tragos e subterfúgios naufragados e submissão. Graças aos deuses, sejam esses quem forem, a Bahia brindou de narcisos e mutantes os instantes que a instantaneidade traz. Assim, desde a baiana que tocamos as mãos no cinema numa sessão qualquer, depois de mortos nos vermos vivos e crivos, que o mundo possa prosear as lágrimas derramadas feito vaca profana encarquilhada. Senão, no não de arrependimento que só surge no dia depois, seja feita a vontade que se traduz. Na febre imberbe que delimita os dentes que faltam na boca informal, o poeta que nunca foi normal se traduza na busca anormal. Menino talvez, à busca de alguma tez. Lúcido e herói naquilo que fez. A relembrar camaleoas que beijaram sua boca, gemeram juntas no gozo único e dormiram ao lado a ladear e alardear que o dia seguinte não tarda a chegar. E como este será? Talvez o próximo êxtase fugaz, o silêncio mordaz, a sagaz blasfêmia entre o macho e a fêmea. Efêmera, a mórbida falácia irá sublimar aquilo que nem a maior presença do mar traduzirá em palavras. Nas lavras da vida, a sórdida e mórbida paixão não nos deixe a sublimar a cadente emoção...

sábado, 22 de março de 2025

No viajar

 Por Ronaldo Faria

 


-- A parada foi para mijar. Fosse no Pravda, seria manchete vulgar...
Clemente, comunista de carteirinha, mesmo que essa esteja amarelada e cheia de datas passadas, no passadio entre a loucura e a euforia tardia, acende mais um cigarro. Logo virá o catarro que povoa os pulmões no eterno instante. Cantante no cantar sem semblante, entorna outro copo de cerveja. Que Deus (ateu que é) não o veja. Seu paraíso ainda é Leningrado.
-- Você sabe quantos companheiros tombaram num sonho? É medonho descobrir que vidas que sonhavam um novo país justo tombaram em cubículos extremos, poças de sangue vazias e marés de mares que mais não se vê.
Do outro lado da mesa, no boteco incrustrado no subúrbio escuro, o amigo ouve a olvidar que o passado possa retornar e salvar as vidas decantadas e contadas em emoções mil. Que Maria viva e povoe o mundo de mais mil Marias que lutem libertárias e vivas. Que José traga o verso da revolução à realidade e a iniquidade e miséria sejam verbos do passado. Nas mesas que povoam a sequência estapafúrdia da geometria do bar que tenta faturar mais em menor espaço, outras conversas praguejam. Num ou noutro momento, um beijo. Logo mais, quem sabe, um sexo.
-- Você já pensou que não estaríamos aqui hoje se não fosse a coragem daqueles que tombaram em prantos?
Não. O ouvinte não havia pensado nisso. Submisso, omisso e constrito, não tinha atentado para os atentados políticos do passado. Talvez cansado de locupletar, prefira apenas ouvir e tomar. Na árvore perto, uma pomba perde as últimas penas. Logo vai morrer.
-- Você sabe o que é ultimar a vida a saber que seu desejo de juventude foi extirpado e arrancado por seres vis que sequer mereciam o nome de seres humanos?
-- Garçom, traz outra vodca!
Afonso, ser limítrofe e etéreo, prefere se embriagar e “viajar” de vez do que ouvir Clemente em seu verbo histórico e estoico. Ser etílico, profilático e tardio, vive a vaticinar seu destino sem tino ou desatino. Não quer ser nada além do que já é. Afinal, sabe que logo nada será. Todos, indistintamente, o serão: pó e solidão fechada no afã que nunca existirá. À exaustão de querer ser feliz, na infausta sodomia tardia, quer apenas ter um fim, pagar a conta e sair para o seu quarto e sala. Viver seu ínfimo fim.
-- Clemente, já estou bêbado. Preciso agora só de um Uber e, quem sabe, beber em cassa minhas tragédias pessoais e casuais. Pede a conta!
Companheiro acima de tudo, ligado umbilicalmente a seus pares, Clemente levanta a mão e faz o sinal de fechou. A literatura comunista pode esperar o ouvinte voltar à normalidade. A cidade, catastrófica e utópica, claustrofóbica a jorrar nas vazias carótidas, dorme sob as luzes ergofóbicas. O garçom, expropriado e crente de que é assalariado naquilo que faz, agradece os dez por cento. Na televisão passa o tento que o goleador do time adversário faz. No fim do mês, o salário estratosférico do jogador paga centilhões de caipirinhas que o garçom nordestino de nascença deixa às mesas todo dia.
-- Já está pago, companheiro. Que a vida nos possa prover de algo mais...

(A ouvir Zeca Baleiro e outros mais)

quinta-feira, 20 de março de 2025

Mestre batuqueiro

 Por Ronaldo Faria

 


-- Bate mais forte esse repenique! O bumbo, quero ver o bumbo marcar a bateria! E essa porra dessa cuíca, não vai aparecer? A caixa! Cadê a caixa que eu não ouço? Vocês não são sambistas! São um bando de maricas! Não tocam nem pandeiro!
Mestre Pafúncio, no furdúncio do Carnaval quase a chegar, pede a nota dez para seus comandados fardados de amores de corcéis. O presidente da escola não irá aceitar outro nove ponto nove. E se ele deixar o comando da bateria, que fará?
Descompensado no compasso marcado dos instrumentos de percussão, lembra do primeiro gato que matou para seu primeiro tamborim. O bicho até que não gemeu ou miou muito. A pancada na cabeça foi certeira. Depois foi só desfilar feliz e sonhador.
Mas e agora? Na garganta dos componentes da escola o samba está afinado, mas falta à harmonia juntar samba e melodia. Falta a bateria. Sem ela no recuo, a bater com força e som de primazia, o patrono da agremiação vai ter é tão somente uma maldita azia.
-- Está bom! Está bom por hoje! E caralho, vocês são da comunidade! Cadê a identidade? Vão pra casa dormir e amanhã logo cedo quero todo mundo aqui!
Debandada feita, Mestre Pafúncio desce o morro, pega o trem e vai parar no cabaré da Firmina.
-- Pafúncio, acabou o ensaio cedo?
-- Se tivesse sido ensaio, estaria tudo bem. Foi a maior merda que já vivi. Do jeito que foi, ser rebaixado vai ser o mínimo que acontecerá.
-- Calma, Wilma vai te dar o melhor...
Wilma, dessas mulheres que qualquer homem daria a própria vida para se emoldurar na eternidade de um Toulouse Lautrec, era o amor maior do mestre de batucadas e ritmos afros. Houvesse aforismos, ela seria como aquilo que sobreviverá imortal. No seu corpo, em curvas turvas e imagens vívidas e vividas, Pafúncio já tinha se entregue mais de mil vezes. Em sedes, emoções e revezes mil. Ela era o tal porto seguro que as marés travestidas de rebentações largavam às pedras para o naufrágio final. Ele, porém, sempre voltava ao cais das pernas que anteviam lábios e se atreviam a roçar coxas e seios de mamilos cheios de amor.
-- Pá, você voltou?
-- Voltei. Quer dizer, pelo que sei eu nunca fui.
Ao som de uma vitrola genérica, feérica e desprovida de vida, os dois rolam na cama, sobem e descem em seus corpos, trocam gozos e ósculos, lambem cada pedaço de pelo que no outro houvesse. Vivem na sofreguidão. Germinam em terras calcinadas, povoam porções de palavras esgarçadas e esmiuçadas, levitam além do colchão sujo de sêmens mil. Dormiram depois entre corpos fúteis, copos úteis à sede carnal, cópulas vazias e tardias para o nunca mais. Quando o sol resolve salpicar de calor e cor de novo o lumiar do quase Carnaval, Mestre Pafúncio se levanta e volta à quadra da escola para comandar o maior ensaio que o morro já assistiu. No desfile de domingo a nota, antes mesmo que qualquer jurado escrevesse seu papel, foi aquilo que se denota na fé. Na apuração, com a bateria nota dez, o presidente e patrono, que fazia bichos sonharem os pesadelos de apostadores tristes com a perda de seus parcos dinheiros, pedia, emocionado, que Mestre Pafúncio não deixasse a comunidade. Na quadra, todos comemoravam o título inédito. Num quarto pequeno, deitada com outro homem, Wilma sabia que era ela a verdadeira vencedora. Na rua, no fio de eletricidade, uma pomba é eletrocutada na loucura da cidade.
 
(Ainda com Eduardo Gudin)

terça-feira, 18 de março de 2025

Na secura

 Por Ronaldo Faria

 


Garganta seca e cabeça cheia de picuinhas, Venâncio vê a vida procrastinar e vaticinar que ainda deve haver um lugar aonde chegar. E para tanto ele sai a procurar. Ser teimoso na prosaica metamorfose que sofre a cada dia, percorre as ruas com seus asfaltos remendados, seus passos cansados, seus parcos trejeitos refeitos de pouco ardor. Malandro de si mesmo, catatônico, parte do aparte volátil e tátil do corpo da amada perdida sabe-se lá quando, é o limite entre a morte que povoa cada veia do seu coração.
Para Venâncio, a cortar bêbado o trânsito da avenida que os carros irrompem sem pudor, o mundo virou um grande labirinto retinto de sangue e solidão. Nas esquinas onde retinas e mulheres transitam em casais, desamor e amor, surgem lampiões acesos de olhares e trevas. Nalgum lugar, no inclemente dedilhar de um violão, um homem faz a serenata que acorda o pai da amada ainda de pijama. “Seu filho da puta, são duas horas da manhã! Ou para com essa merda ou te dou um tiro.” Atrás da veneziana, a lágrima de Ana.
Venâncio, na crueldade que a maldade da separação traz, prefere continuar seu prumo a ver o rumo que a discussão irá tomar. “Afinal, cada um que busque o seu porém.” Logo mais na frente, quase defronte dos arcos que fazem um bondinho correr sobre a malandragem que o Rio desemboca em maré, irá se sentar num boteco qualquer. Na sua mesa talvez se achegue um Zé Mané. Tanto faz. Ele nada ouvirá. Banido do derredor, viverá a sua dor. Talvez quando o dia resolver renascer ele rirá da cena onde é sempre mero aprendiz.
Na imaginação que apenas os loucos profetizam em razão, a vazão banal de rimas na prosa que o coração profana a beira do infindo torpor. Em louvor, o estupor do desejo que, mesmo benfazejo, não virá. Quem sabe, porém, no último suspiro, quando tudo resolver parar, Venâncio não veja que, como diz o poeta, há um mal ainda maior do que aquele que ele vive. Sob os arcos brancos, dois mendigos mancos pedem esmolas e um teco do baseado que o casal, amofinado e já louco, tem como derradeira razão de viver.
 
(Ao som de Eduardo Gudin)


domingo, 16 de março de 2025

Nina Simone canta os blues

Por Edmilson Siqueira


Quando uma cantora tem verdadeira paixão pela música e seu talento proporciona que ela passeie com a mesma qualidade por qualquer gênero, nós somos presenteados com grandes discos. E quando essa cantora é também compositora das melhores, a coisa ainda fica melhor. É o que acontece com a gigantesca Nina Simone (1933-2003) e com essa seleção de blues que começou como um LP de 12 músicas, depois foi relançado em 1991 pela RCA/Novus como o acréscimo de 5 faixas sob o título "The Blues".
É esse CD que tenho, comprado na Hully Gully Discos. Como o Osny trabalhava (aliás, trabalha ainda) com CDs usados, esse veio com uma dedicatória que alguém fez para alguém, desejando que o presenteado (ou presenteada) tivesse "bons momentos" ao ouvir o disco. Talvez o disco não tenha caído exatamente no gosto de quem ganhou, tanto que ele foi parar na Hully Gully para ser vendido novamente. Eu comprei e, desde então, tem me proporcionado bons momentos... Outro detalhe, desta vez sem brincadeiras, esse foi o primeiro álbum de Simone pela RCA Victor, depois de gravar anteriormente pela Colpix Records e Philips Records .
Dele, o crítico de música Scott Yanow escreveu os seguintes: "A maioria das músicas desta reedição em CD data de 1966-1967, apresentando a cantora e pianista única Nina Simone acompanhada por uma seção rítmica funky (com Eric Gale e Rudy Stevenson nas guitarras e o organista Ernest Hayes), além de Buddy Lucas no tenor e gaita; algumas das outras seleções utilizam um grupo de apoio maior. Simone é a estrela em todo o material baseado em blues, apresentando versões novas e emocionais de músicas como "In the Dark" de Lil Green, "My Man's Gone Now", "Since I Fell for You" e "The House of the Rising Sun". Algumas das músicas originais de Simone lidam francamente com amor e sexo, enquanto outras protestam contra o racismo e a pobreza. Música estimulante e ainda atual." Estimulante, atual e, eu acrescentaria, de ótima qualidade como se pode ouvir nas 17 faixas.
Nina Simone foi pianista, cantora, compositora e, além disso, importante ativista pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Ela nasceu Eunice Kathleen Waymon nasceu em Tryon, na Carolina do Norte. O nome artístico foi para que ela pudesse cantar escondida de seus pais que queriam que ela fosse uma pianista clássica. Curioso na sua vida artística é que ela queria enveredar pela música clássica e cantava jaz, blues, e rock para ganhar dinheiro suficiente para viver e estudar. Em 1964 ela se formou como musicista clássica, mas o apelo ao popular acabou vencendo. 


 
Nina interpretou canções de diversos estilos, indo do gospel ao soul, passando pelo rock e era uma respeitada cantora de jazz. Também compôs várias canções e nesse disco estão seis delas, algumas com parceiros. Foi uma das primeiras artistas negras a ingressar na renomada Escola de Música de Juilliard, em Nova Iorque. Sua canção "Mississippi Goddamn" tornou-se um hino ativista da causa negra. Fala sobre o assassinato de quatro crianças negras em uma igreja de Birmingham em 1963. Ao se apresentar em um evento militar em Forte Dix, Nova Jersey, em 1971, em plena Guerra do Vietnã, Nina Simone deu voz àqueles que eram contrários ao conflito, quando cantou um poema em que Deus é chamado de assassino, após 18 minutos de "My Sweet Lord", de George Harrison.
Nina faleceu em sua residência, enquanto dormia, na cidade francesa de Carry-le-Rouet, em 2003, após lutar por muitos anos contra o câncer de mama.
As 17 músicas desse CD são as seguintes:
"Do I Move You?" (Nina Simone)
"Day and Night" (Rudy Stevenson)
"In the Dark" (Lil Green) "Real Real" (Nina Simone)
"My Man's Gone Now" (George Gershwin e DuBose Heyward)
"Backlash Blues" (Langston Hughes e Nina Simone)
"I Want a Little Sugar in My Bowl" (Nina Simone)
"Buck" (Andy Stroud)
"Since I Fell for You" (Buddy Johnson)
"The House of the Rising Sun" (Traditional)
"Blues for Mama" (Nina Simone e Abbey Lincoln)
"Do I Move You?" (Nina Simone)
"Whatever I Am" (Willie Dixon)
"The Pusher" (Hoyt Axton)
"Turn Me On" (John D. Loudermilk)
"It's Nobody's Fault But Mine" (Blind Willie Johnson)
"Go to Hell" (Morris Bailey, Jr.)
"I Shall Be Released" (Bob Dylan)
"Gin House Blues" (Fletcher Henderson e Henry Troy)
A primera versão, com 12 músicas, dá para ouvir no YouTube (https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_n8bGWcGfrh8tucEFPShPjhbgOfVau19kQ ) e o disco ainda dá pra ser encontrado nos bons sites de venda por aí.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Sem segredo e degredo

 Por Ronaldo Faria

Simone, homônima sem nome, passeia no seu passo pequeno como fosse aneurisma desses que a gente não espera e cega nosso fim feito fera. E derrama no enlevo dos segredos o degredo que nem o coração consegue ter. Mulher de enigmas, nascida em manjedoura em pleno cataclismo, está sempre entre amor e cismo, ensimesmada de tanto torpor e dor. 

Mulher na fé e no dissabor, parturiente de um ente que espera a paz, sublime na vastidão que o fim traz, escapa por um triz do fotógrafo que busca a foto que bate entre a realidade e os esmeris. No seu corpo, riso tosco, o fosco que ofusca o capô do velho Fusca. Decerto e na certa no próximo sinal ou semáforo haverá um amor para lhe pedir perdão e acasalamento.
Simone, clone de falácias e velozes sonhos que eclodem, segue entre livros e louvores a tracejar traços e troças àqueles que a amam em vão. Desvão de mil e milhares palavreados e rimas, sinas e sinais, desses que não se finda ou se funda nem no Monte Sinai, deixa seus olhos de amêndoa a romper bastiões e bandeiras. Nalgum momento, em desalento, o tormento irá virar brisa leve na tormenta.
E como fosse um fóssil encravado no coração dos homens que visitam a Paulista numa Paulicéia nunca destravada ou desvairada, Simone, essa insone lamúria que pousa feito pomba na plúmbea janela, se esmera na férrea linha que os trilhos de aço não dão ao chegar. E vai a jogar sua fumaça cinza e colorida na vida fragilizada daqueles que a esperam no hangar. 
Na mesmice que volatiliza a brisa da noite, fratricida no dia que o amanhã fará despertar, o largar de infaustos desejos e palavras tresloucadas e que surgem inalteradas de algum lugar. Em todas, blasfêmias que nem mesmo as fêmeas mais fragilizadas irão repetir. Ao fim de tudo, no submundo da perfídia inconsequente e ciente, sentimentos voláteis têm seu fim.

(Se alguém ainda lembrar de fitas K7, essa eu tive)

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...