terça-feira, 18 de março de 2025

Na secura

 Por Ronaldo Faria

 


Garganta seca e cabeça cheia de picuinhas, Venâncio vê a vida procrastinar e vaticinar que ainda deve haver um lugar aonde chegar. E para tanto ele sai a procurar. Ser teimoso na prosaica metamorfose que sofre a cada dia, percorre as ruas com seus asfaltos remendados, seus passos cansados, seus parcos trejeitos refeitos de pouco ardor. Malandro de si mesmo, catatônico, parte do aparte volátil e tátil do corpo da amada perdida sabe-se lá quando, é o limite entre a morte que povoa cada veia do seu coração.
Para Venâncio, a cortar bêbado o trânsito da avenida que os carros irrompem sem pudor, o mundo virou um grande labirinto retinto de sangue e solidão. Nas esquinas onde retinas e mulheres transitam em casais, desamor e amor, surgem lampiões acesos de olhares e trevas. Nalgum lugar, no inclemente dedilhar de um violão, um homem faz a serenata que acorda o pai da amada ainda de pijama. “Seu filho da puta, são duas horas da manhã! Ou para com essa merda ou te dou um tiro.” Atrás da veneziana, a lágrima de Ana.
Venâncio, na crueldade que a maldade da separação traz, prefere continuar seu prumo a ver o rumo que a discussão irá tomar. “Afinal, cada um que busque o seu porém.” Logo mais na frente, quase defronte dos arcos que fazem um bondinho correr sobre a malandragem que o Rio desemboca em maré, irá se sentar num boteco qualquer. Na sua mesa talvez se achegue um Zé Mané. Tanto faz. Ele nada ouvirá. Banido do derredor, viverá a sua dor. Talvez quando o dia resolver renascer ele rirá da cena onde é sempre mero aprendiz.
Na imaginação que apenas os loucos profetizam em razão, a vazão banal de rimas na prosa que o coração profana a beira do infindo torpor. Em louvor, o estupor do desejo que, mesmo benfazejo, não virá. Quem sabe, porém, no último suspiro, quando tudo resolver parar, Venâncio não veja que, como diz o poeta, há um mal ainda maior do que aquele que ele vive. Sob os arcos brancos, dois mendigos mancos pedem esmolas e um teco do baseado que o casal, amofinado e já louco, tem como derradeira razão de viver.
 
(Ao som de Eduardo Gudin)


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