terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Monk e Coltrane: um encontro histórico*

Por Edmilson Siqueira

 

Dia desse estive na casa do meu amigo Osny, que vive de vender discos pelo Mercado Livre. O motivo do encontro não era o mesmo de tantos outros (uma encomenda minha que eu iria buscar). Na verdade, era para pegar um presente. E que presente: um show da Nara Leão gravado em 1984 no Centro de Convivência Cultural. Vinte e uma músicas - talvez algumas inéditas, que ela nunca gravou. Sobre o disco da Nara eu conto depois que ele ainda tem história para acontecer.   
Pois, nessa visita, aproveitei para dar uma olhada na coleção de discos de jazz do Osny. Não são muitos, uns 400 talvez, o que é pouco perto dos milhares (e bota milhares nisso) espalhados em prateleiras por praticamente todos os cômodos da bela e grande casa em que ele e sua querida Marlene vivem, no Jardim Chapadão, em Campinas.  
Comecei a escolher alguns e quando vi já estava estourando o valor que eu pensei em gastar. Parei no sexto CD, um exemplar da Riverside Records, gravado na série Jazzland e lançado em 1961, com ninguém menos que Thelonious Monk (piano), John Coltrane e Coleman Hawkins (sax tenor), Ray Copeland (trompete), Gigi Gryce (sax alto), Wilbur Ware (baixo) e Art Blakey e Shadow Wilson (bateria). Ou seja, uma seleção do jazz dos anos 1950.   
As seis músicas do disco que juntas dão mais de 40 minutos, haviam sido gravadas quatro anos antes. E nem todas têm Monk e Thelonious juntos. Um pequeno aviso, na contracapa do CD avisa: "Quando Monk e Trane gastaram seis meses de 1957 trabalhando juntos no New York's Five Spot Cafe, ocorreu um evento histórico que certamente deveria ser exaustivamente gravado. Mas, conflitos extramusicais tornaram as gravações impossíveis, restando como únicas lembranças permanentes desses encontros memoráveis as três notáveis peças para quarteto que se destacam nesse álbum." 
Pois mesmo as gravações, que não foram concebidas como um álbum de estúdio, mas são uma compilação organizada a partir das sessões de 1957, são consideradas históricas, com seu valor artístico transcendendo qualquer contingência técnica. 
No vasto território do jazz norte-americano, poucos encontros carregam a aura mítica que envolve a breve, porém decisiva, colaboração entre Thelonious Monk e John Coltrane. O álbum Thelonious Monk and John Coltrane, lançado em 1961, sintetiza um período de profunda transformação para ambos os músicos e registra, ainda que em forma fragmentada, a química singular entre dois dos arquitetos do jazz moderno. Embora não se trate de um registro de estúdio concebido como álbum, mas de uma compilação organizada a partir de sessões de 1957, seu valor histórico e artístico transcende qualquer contingência técnica. 
À época, Monk estava afastado do circuito musical por problemas com a polícia e dificuldades de trabalho. Ele havia recuperado sua licença de músico e reassumido seu posto como um dos pianistas, dos mais originais, diga-se, do bebop. Coltrane, por sua vez, vivia uma fase de reconstrução pessoal e artística após ser afastado do quinteto de Miles Davis devido ao uso excessivo de drogas. O convite de Monk para integrar seu grupo no Five Spot Cafe, em Nova York, foi a oportunidade que Coltrane precisava: era a chance de voltar ao trabalho e, quem sabe, desenvolver o estilo que marcaria sua fase de maturidade. 
E a coisa começou a dar muito certo logo de cara. A simbiose entre os dois aparece com força nas faixas reunidas no álbum. Monk, com seu toque percussivo ao piano, acordes angulares e silêncios estratégicos, cria um terreno fértil no qual Coltrane encontra espaço para explorar longas linhas melódicas que parecem se estender ao infinito. A tensão entre a economia do pianista e a exuberância melódica do saxofonista produz um diálogo inusitado e harmônico que é, ao mesmo tempo, rigoroso e imprevisível. Há uma espécie de desafio entre eles, mas sem momentos de aspereza e sim de notórios incentivos.  


Faixas como “Ruby, My Dear” revelam o lirismo oculto na obra de Monk, frequentemente percebida como cerebral. Coltrane, aqui, soa contido e profundamente expressivo, desenhando frases cuidadosas que se apoiam na delicadeza da melodia original. Já em “Trinkle, Tinkle”, o saxofonista enfrenta uma das composições mais intrincadas de Monk com destreza notável, mostrando a rapidez rítmica e a firmeza técnica que o caracterizariam em sua fase posterior com o quarteto clássico. A faixa evidencia o quanto Coltrane absorveu a lógica estrutural de Monk, mesmo quando parecia operar em um universo expressivo diferente.
O álbum inclui gravações do quarteto de Monk sem Coltrane, o que pode parecer dispersivo, mas oferece um retrato mais completo daquele período. Nessas faixas, o ouvinte tem a chance de apreciar o piano de Monk com mais espaço, exibindo suas idiossincrasias rítmicas e harmônicas de forma ainda mais transparente.  
O pequeno trabalho que sobrou entre os dois, passado tanto tempo da gravação, permanece, segundo a crítica, como um documento essencial para compreender a metamorfose do jazz nos anos 1950. Ele captura Coltrane no processo de desenvolver seu “sheets of sound”, técnica que combinava velocidade extrema, encadeamento de arpejos e exploração profunda da harmonia. Ao mesmo tempo, mostra Monk em um dos períodos mais criativos de sua carreira, reafirmando-se não apenas como compositor singular, mas como improvisador de lógica interna absolutamente única. 
O fascínio do álbum reside também, no fato de que Monk e Coltrane se encontraram em um ponto raro em que suas trajetórias, tão distintas, se tornaram mutuamente necessárias. A disciplina e o rigor estrutural de Monk forneceram o arcabouço ideal para que Coltrane consolidasse sua abordagem harmônica; a intensidade e a busca espiritual do saxofonista, por sua vez, abriram novas possibilidades para a obra de Monk, revelando nuances que muitas vezes passavam despercebidas. 
Mais de seis décadas depois de seu lançamento, o álbum continua sendo uma audição indispensável para quem busca compreender não apenas a obra desses dois gigantes, mas o próprio desenvolvimento do jazz moderno. 
Além das duas músicas citadas, o disco tem ainda "Off Minor", "Nutty", "Epistrophy" e "Functional". Todas as músicas foram compostas por Thelonious Monk. 
O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=6DVvvphPXq0&list=PLL-NbN8uTOigEWB_YxFEI_WCPHeACQ5Su . 
E pode ser adquirido no Mercado Livre e em outros sites de vendas. O preço é meio salgado, pois o CD é meio raro (mais de R$ 200). Já o LP de vinil, lacrado, também está à venda por um preço mais elevado ainda (R$ 450). 

*A pesquisa deste artigo teve o auxílio da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Casa sem pressa (longevos tempos de república)

 Por Ronaldo Faria


Caminhos que não desfiz
saudades que não compus
tempos que nunca se foram
gente passou e chegou
viagens loucas e breves
no chão, no ar e no mar
tudo era imaginação
a qualquer tempo
em qualquer lugar
Quem sabe o que se perdeu
no tanto que se embriagou
de ilusões e lembranças
que o tempo até hoje deixou
No universo concreto
que na canção se desfaz
sementes lançadas ao vento
de afeto, abraços e paz
Carícias que não se desmancham, envoltas num véu que seduz
e bocas que se entregavam, em beijos banhados no mel
Oh casa cheia de luzes na pele e no louco céu
Hoje eu sou um poeta
a dedilhar a canção
para embalar essa festa
cheia de humor e emoção
Cidades foram e ficaram
saudades tantas por vir
afinal, o tempo brinca de ir e vir
e resolveu parar nestas notas aqui
e reviver tanta gente, no abraço e na canção
pois nesta casa sem pressa quem manda é o coração

sábado, 29 de novembro de 2025

Ao Gumex

Por Ronaldo Faria


Gumercindo, com gumex no cabelo, esperava Esmeralda chegar. Já tinha consumido algumas cervejas e outra brejas (redundantes). No boteco no Largo da Glória, estupefato com o tanto de bondes que bandeavam de lá, ele rodeava os olhos nas mesas pra ver se via a amada. Mas qual, certamente ela deve ter perdido a condução na Gamboa. E o Rio de Janeiro, para os poetas e loucos ainda brejeiro, tinha gente de navalha em cada esquina para levar pertences de gente despreocupada com os batedores de carteiras. Na terra abençoada por Deus com um Cristo que se diz redentor a receber visitas e turistas, Gumercindo ia a viver seus dias de capital federal de felizes vozes embriagadas e corpos de mulheres vestidas de duas peças. “Vou esperar um pouco mais. Ela vai chegar, tenho certeza. As flores que lhe enviei haverão de mexer com seu coração.”
-- Seu Gumercindo, estamos fechando o bar. O senhor quer algo mais pra levar?
-- Não, Gonzaga. Muito obrigado. Pode trazer a dolorosa.
Pagou a conta que despontava como boa para o português dono da bagaçada, deu boa noite e saiu no seu caminhar trôpego de funcionário público de repartição. Viu que a lua estava fraca, minguante. Os postes acesos brilhavam mais do que ela. O guarda de quarteirão lhe dá boa noite. Era o Percival, há muito dono do espaço. Substituiu o Pascácio, aposentado por perder a visão. Teve catarata sem nunca ter ido à Floresta da Tijuca ver a Cascatinha. Era gente boa. Morava em Vicente de Carvalho, longe pra caralho. Mas nunca faltou no batente e conhecia toda a gente.
-- Um bom resto de trabalho pra você, Percival...
Gumercindo entrou na pensão, foi direto ao seu quarto e fez chá de hortelã para dormir melhor. Logo cedo terá que ir de bonde à repartição. E o motorneiro, Seu Walfrido da Silva, não perdia a hora. Era mais certo que o relógio cuco que badalava a cada minuto na pensão. “Vamos dormir. Amanhã eu vejo o que aconteceu com a Esmeralda”. E logo lhe chegou o sono. Enternecido de goles a mais, vieram-lhe os pesadelos e desmazelos de quem dorme sabendo que não irá sonhar. Acordou no dia seguinte e leu a manchete do jornal que chegou à mesa na procuradoria federal “Mulher foge com o palhaço do circo soviético”. A partir daí virou radical, se vestiu de verde e se tornou integralista até a última redoma da alma. Morreu só, anos depois, no quarto pequeno no Centro da cidade. Gonzaga, o garçom, Percival o guarda de quarteirão, e o português dono do boteco foram acompanhar o enterro. “Perdi um grande cliente. Que Deus esteja ciente disso e me dê outro”, pensou o lusitano antes do caixão baixar em sete palmos contados a dedo. Defronte do cemitério do Caju, um moleque solta pipa sem dar atenção a tão pouco dramalhão. Ao fim, o fim de outra visão.

(Ao som de Luiz Melodia)

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Pataquada

 Por Ronaldo Faria


Chegou chegando. Traquinando, até. Menino que sempre foi e é, audaz e louco, fora da órbita terrestre, sempre em teste, presto, vaticinou o próprio destino: ser, escrever, beber, ver, rever, acordar e adormecer. Crer e descrer. Embriagar-se na hora cronológica e certa de enlouquecer. Encontrar o equilíbrio sísmico de si e continuar a trilhar nas letras negras que invadem a brancura da tela desmiolada e desmedida. Ou seja, verdadeira pataquada. Consternada, a vida aceitou que Lautério vivesse sem critério. Afinal, um a mais em vários bilhões sobre a Terra, que problema em se esquecer dele num planeta em farsa e falsetes diários? O Criador (o tal que veste milhares de vestes às inúmeras religiões de poucos e tantos menos) resolveu cravar na aposta de deixar o bicho solto. Mas, dizem alguns, ele sussurrou “que bosta”. Lautério, um impropério secular de vilipêndios em compêndios que ninguém nunca leu, vivia ao léu, lisérgico e deletério. Já perto da curva do rio ou do cabo de alguma esperança, queria apenas não ter pena de si mesmo. “Caralho, no calhamaço de papel consumido no tempo há coisa insone mesmo a dormir na escuridão.”
 
II
 
Vilmar e Conceição subiam e desciam as ladeiras de Olinda na infinda busca do amor. Cruzavam-se muitas vezes, mas na pressa de caminhar sem parar no ritmo da tarde nem atentavam em se ver. O silêncio dos passos nas pedras centenárias onde blocos de frevo dançavam a cada Carnaval era maior que o desejo dos dois. Déspotas do futuro em augúrios que talvez nunca existissem, nem sabiam que o agora era o que se foi e o depois algo que nunca virá. Alhures tecer as cores do céu, seguiam livres e apostatas às próprias vidas em purpurinas e sinas mil. Eram poesia e ensandecidas lavras tardias. Composições bisonhas de canções enternecidas, fugazes olhares e brincadeiras benfazejas. Ida e volta, horas partidas e urdidas nas ardidas saudades da poesia. E assim o foram na madrugada tardia e na orgia, quando pararam, se viram e viraram um apenas. Ao redor, a rodar sombrinhas coloridas, lamúrias de lamentos benfazejos como uma desbotada fotografia.
 
III
 
Candelabros e descalabros vão passar. Por ferrugem, falta de energia ou coisa pra se falar. Na Polinésia a inércia é olhar o mar. No Interior do planeta, as matas brincam de respirar. E como diria o poeta, “todas as coisas do mundo correm pro mesmo lugar”. De lá ou de cá.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Com Donato, Shank e Valença (ou vale o que está escrito)

 Por Ronaldo Faria


O som que vem do bar rompe a avenida e chega no mar. Entre as paredes de concreto e as mesas cheias de casais que se enroscam em palavras e promessas, o pianista divide o palco com saxofone e bateria. No asfalto, um ou outro carro cumpre seu limite de velocidade. Já na areia fria pela noite que cheira brisa e paz, João e Rebeca brincam de fim do próximo segundo que se tornou passado em frações de segundos. Súbitos, súditos de seu amor, etéreos na terra que gira na rotação derradeira, fazem da areia seu universo de versos finais. Logo mais estarão em beijos mil, carícias servis, descobertas refeitas com as cobertas jogadas no chão.
No piano, altiplano da troca de emoções e canções, malabarismos de paródias que não acabam se acercam de sonhos e bisonhos desejos ensejados no cadafalso que leva o amor ao coração. Há luar e estrelas, nuvens raras e secas de pingos futuros, bêbados diuturnos até. Tem também catadores de lixo, pombas que teimam em vasculhar a sujeira da areia, poetas e proxenetas. Cansados amantes à espera do primeiro raio solar, notívagos que decidiram madrugar, operários e faxineiras que despencam do ônibus no seu eterno trilhar. Há ainda o cachorro de rua, que vira a última lata para sobreviver, a uivar e acreditar num lar.
No bar o garçom fecha a última conta: “Deu R$ 220,00 sem os dez por cento.” Na dicotomia do destino, desatino cretino dos loucos e vespertinos, um transeunte que transita sem rumo diz adeus à vida ao se jogar diante do circular. “Porra, fodeu geral. Agora vem a polícia, a perícia e o escambau. Até chegar o próximo ônibus eu já atrasei geral” – vociferava Marcondes que vai chegar tarde no turno da fábrica de metal fundido. “Estou fodido” – sentencia. Perto das ondas que enchem de espuma a bruma geral, João e Rebeca ouvem o barulho do atropelamento, o lamento dos passageiros e até a sentença do motorista: “Esse merda se jogou na frente...” Mas qual, cada um com seu cada qual. No sol que surge do horizonte, as línguas dos dois dão o cúmplice recado ao mundo: Lei de Muricy... cada um que trate de si.

domingo, 23 de novembro de 2025

O nascimento da MPB

Por Edmilson Siqueira

"Prepare Seu Coração". Não, não se trata de um artigo sobre a famosa música de Geraldo Vandré e Theo de Barros, mas sim do título de um livro que estou lendo. Seu autor pode não ser conhecido das novas gerações e, mesmo os de gerações as mais velhas, como eu, talvez se lembrem dele como um produtor de televisão, de musicais e festivais de televisão.  

Trata-se de Solano Ribeiro, uma figura onipresente nos anos 1960 e 1970 na cena teatral e musical brasileira, desde os primórdios da bossa nova, dos teatros de opinião, dos festivais da Excelsior, da Record, da Tupi e da Globo, além de inúmeros shows que fizeram história na cultura brasileira.  
Lançado em 2018 pela Editora Kuarup, o livro tem o subtítulo "Histórias da MPB" e ela realmente faz parte da maioria das histórias que ele conta. Mas, sua pequena autobiografia com a qual inicia os trabalhos, mostra sua participação em tudo que se estava fazendo de novidade nos anos 1960 tanto no teatro, quanto na música.   
Solano Ribeiro conheceu os baianos Gil, Caetano, Gal Costa e Bethânia quando todos eles ainda estavam na Bahia; fez teatro com Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri; frequentou o famoso Beco das Garrafas, onde a bossa nova dava seus primeiros passos; trabalhou com Lennie Dale, um gênio da dança e foi namorado, por breve tempo, de Elis Regina, quando ela ainda era a cantora de "Menino das Laranjas", seu primeiro sucesso depois que aderiu à nova MPB.  
Ele mesmo escreve, num resumo de sua vida artística no final do livro: "Depois de um início barulhento no pequeno Teatro de Arena e de alguns "especiais" com a Bossa Paulista e um mix entre cariocas e paulistas, no Teatro Cultura Artística, em 1965, lancei o Festival Nacional da Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, que revelou Elis Regina, deu origem à sigla MPB e foi embrião do mais importante movimento musical do país. Os Festivais da Record de 1966, 1967 e 1968, com uma Bienal do Samba no meio-dia, serviram de palco para novas tendências, experimentações e ousadias que emocionaram o país que parava para ouvir e ver a MPB passar. A música popular superou o futebol. A final do Festival de 1967 acusou o índice de 97% de audiência." 


Boa parte do livro se desenvolve nesse clima de competições musicais a ascensão da Rede Globo e o declínio de outras emissoras também é contado, sempre do ponto de vista musical. Outra parte acontece após os festivais, com a Globo e suas emissoras crescendo, o aparecimento da Som Livre, e a internacionalização da música. 
Mas, todas as histórias que o autor conta, com exceção de algumas no início do livro, se passam sob a ditadura militar, que começou em abril de 1964. E muitos artistas eram perseguidos pelo regime, cuja censura se acentuou fortemente a partir de 1968, com o AI-5.  
Assim, os festivais ocorriam sob forte tensão. Como exemplo, há um capítulo no livro que trata do III Festival Internacional da Canção, da Globo, que ocorreu justamente no ano de 1968, um pouco antes do AI5 acabar de vez a possibilidade de liberdade artísticas - e outras liberdades também - no Brasil. 
Depois de contar como as canções chegaram à finalíssima brasileira que iria concorrer depois com as do exterior, ele escreve: 

"A final nacional do III FIC no Maracanãzinho, apresentava mais um confronto estético-ideológico. Vandré, hábil manipulador do senso político e emocional das plateias, classificado em São Paulo, se apresentava no palco imenso daquele ginásio par 30 mil pessoas sozinho com um violão. Contra seu principal rival, Tom Jobim, acompanhado de Chico Buarque, alguns Caymmis, o Quarteto em Cy e grande orquestra, além da preferência da direção da Rede Globo advertida pelos militares de que, caminhando e cantando que soldados morriam pela pátria vivendo sem razão, o Vandré não podia ganhar e a Globo, que sempre fazia a hora, não podia deixar acontecer: 
- De jeito nenhum. Segurança Nacional. É uma ordem e pronto. 


Não deu outra. Geraldo Vandré arrasou, mas o esperado aconteceu: "Sabiá"na cabeça. Vitória para Tom Jobim e Chico Buarque. Vais, várias vaias. E o Vandré, na posição de vítima em que adorava estar, discursou para a galera inconformada e ruidosa: 
- Perdoai-os, pois a vida não se resume a festivais." 
Para quem não sabe, depois do festival, com a chegada do AI-5, Caetano e Gil foram presos sem acusação formal e tiveram de sair do país, indo pra Inglaterra. Vandré saiu do país, ajudado, segundo consta, diz o autor do livro, pelo seu grande amigo, o então governador de São Paulo, Abreu Sodré. Chico Buarque, proibido de se apresentar no Brasil, foi para a Itália. Edu Lobo e Carlinhos Lira, para os Estados Unidos.  
O livro traz fatos históricos da música na visão da um dos personagens de praticamente tudo que aconteceu naqueles conturbados e criativos anos. 
"Prepare Seu Coração" está à venda nos bons sites do ramo e livrarias. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Pela estrada

Por Ronaldo Faria


A estrada de poeira estava, pra variar, poeirenta. A tropa de bois passava compassada para se ver depois compadecida no matadouro, mesmo sem saber que a caminhada era para a morte. O sol inclemente e solar, cheio de calor e luz, batia na cabeça de Clemente. Boiadeiro e estradeiro desde que rolou na placenta da mãe, com algibeira e roupa de couro, tinha na profissão o sustento de Filomena e das nove crias paridas e criadas. Da corrida na estrada tortuosa, sem corredeiras de riachos ou copos com água, tirava cada centavo e seus parcos avos que a venda lhe cobrava por saco de farinha ou pedaço de carne que secou ao sol por dias.
Mas Clemente não era triste. Tinha o sorriso estampado nos dentes que lhe sobravam. Na pele morena (esturricada para quem não conhece a cor do sertanejo), cabelos desgrenhados pelas corridas do cavalo na caatinga, olhos marejados pelo pó que subia, era guardião dos tempos de outrora e da aurora da vida. No lavradio corria fosse noite ou fosse dia. Nas intempéries da vida percorria o destino como acauã a cantar seus lamentos surdos no sonhar da incerteza morta detrás da porta. Ao desatino da saudade, praguejo e veleidade. Afinal, quando a boiada estivesse entregue ao seu destino final, os braços de Filomena seriam o último fonema dito e fatal.
-- Clemente, vamos parar na casa das primas para dar uma pausa nesse sofrimento?
-- Pode ir, Tazinho. Vou armar uma rede entre essas duas galhadas e ver a saudade destrinchar.
No mundo que se arvora imenso, escuro e incerto, de presto a luzir feito o céu escuro do sertão, Clemente tinha na memória o cheiro de querosene a queimar entre telhas de barro e alpendres onde se foge do sol durante a rotação do dia em leilão. Via cada filho, macho ou fêmea, a correr aos seus braços em abraços de cumplicidade, sentia o prato de favas cozidas a descer garganta e lembranças, retornava à infância perdida. Queimava o chão cansado de brotar, buscava formigas de asas, tanajuras, para espetar em gravetos secos, via a paz nunca derrear. E sabia que se mais tivesse vivido, mais teria existido.
Na casa onde um lampião coberto de celofane vermelho brilhava, Tazinho tonteava de corpo em corpo. E roçava nas pernas, se entregava aos seios solícitos, beijava bocas ávidas e brincava de ser amado nem que fosse naquela só noite. A cada um, a unicidade de ímpias vontades e veleidades. Tudo no transbordar de efêmeras blasfêmias que dizemos ao vento e nos arrependemos logo depois. Enfim, como todo fim que nos é dado de fato, Clemente vê-se de novo entregue à Filomena. Junção de todo fonema que ama, percorre os últimos quilômetros que o separam do seu amor. Ao chegar, enxerga a amada vestida de chita florida, um tanto encardida pelo tempo, mas reluzente à visão do trôpego e sôfrego boiadeiro que acabara de chegar. Num pé de mandacaru, a se livrar dos espinhos, um carcará espera apenas o burrego fraco morrer. Já o homem desfalece em amor o tempo que vive.
 
(Com Xangai e Renato Teixeira)

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Ao tijucano interplanetário Jards Macalé

Por Ronaldo Faria

O violão se cala de tristeza nas mãos do poema. E embaralha vozes e trovas nas covas entreabertas da madrugada. Nas trevas, entravadas e entregues das ruas da Tijuca, o samba se enturma nas coxas daquela que se atira ao dito ritmo. No rumo do poste rodeado de insetos à busca de calor, o homem bambeia de lá pra cá e até dali por acolá. A noite cauterizada ninguém vai calar. Nas pedras que se acolhem num nome pomposo de paralelepípedo, retas e perpendiculares, onde pares pulam em festa, casais caminham de mãos dadas. No céu há quem diga que vê fadas.

Mas o violão, calado e cansado de tocar magia e sonoridade, está surdo e mudo. Catatônico feito o velho nonagenário que bebe seu xarope tônico. Dicotômico, o poeta fica à espera da quarta-feira para encher de dedos as páginas brancas, quase tântricas. Em cada dedo existirá um pouco de letra perdida, sumida na cabeça que roda sem parar. No automóvel que rompe o silêncio sepulcral que cala bocas e gestos, um ou outro ser em descalabro e gelado porvir. No telhado, gatos espocam em gemidos cálidos seus pulos de muro em muros. Na árvore as folhas despetalam em mil talos.

O violão, porém, no contudo que só o entretanto se faz em toda a via, descansa num canto da sala. Falta-lhe as mãos que o encheram de brincadeiras e tons nas mais diversas tonalidades. As cores que teciam suas cordas de música e emoções viraram unções na dramaturgia que é a vida ao fechar as cortinas. No fim da estrada talvez um lampejo de morte ou angina. Com sorte, talvez lhe chegue uma consorte cheia de carinhos e aninhos. E acolha na colher da volta as estranhas entranhas do destino daquilo que tiver de ter sido. Na sombra do fim, nos resta em réstias só o olhar a ver-se fito.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Mais histórias da MPB

Por Edmilson Siqueira

Nesses tempos de podcasts adoidados por aí, quem tem tempo como eu de ficar pescando histórias de artistas da música no micro, acaba conhecendo muita coisa que, depois, embasam, muitas vezes, bons papos sobre a arte de compor e cantar e abastecem alguns artigos deste blog.   
Dias desses, Djavan contou que a música "Oceano" já tinha sido iniciada há um bom tempo, mas que ele tem mania de começar alguma coisa e depois deixar de lado, esquecer que fez, mas que deixa tudo gravado. Um dia, ele estava em Los Angeles gravando, quando sua filha ligou e disse para ele escutar o algo que ela havia descoberto numa das fitas gravadas por ele. E tocou o início de "Oceano", com o próprio cantando, claro, só que em espanhol. Espanhol? Pois é, ele não disse por que estava em espanhol, mas achou lindo aquele começo - na verdade era só a primeira fase que estava gravada - e quando voltou se atirou nela. O resultado, todos sabem: um dos maiores sucessos do moço. Só que ele contou mais um detalhe. Após a gravação, o produtor Mazzola achou que caberia ali um violão espanhol. E chamou, para espanto de Djavan, ninguém menos que Paco de Lucia. Quando o espanhol ouviu a música, disse pra Djavan: "Essa música tem muita harmonia e eu só conheço três". Djavan sorriu e disse: "Então vai lá e faz o que você conhece". E, claro, ficou lindo o solo do violão. 
Outro podcast delicioso para quem gosta de música é "Um Café Lá Em Casa", do grande Nelson Faria. Ali, a união da música com a entrevista que ele faz com os convidados, é um prato cheio de prazer para os curiosos como eu e para os ouvidos de quem aprecia boa música. O próprio Faria, um grande violonista e guitarrista, acompanha, meio que no improviso (ele é um grande jazzista) seus convidados, em versões únicas de grandes músicas.  
Dia desses, assistindo ao programa no YouTube, onde a convidada era ninguém menos que Rosa Passos, fiquei sabendo que ela estava "programada" para ser pianista. Estava aprendendo, indo muito bem, até que um dia lhe caiu nas mãos um compacto duplo (para os mais novos, era um disquinho com duas músicas de cada lado) com parte da trilha sonora do filme "Orfeu do Carnaval", cantadas por ninguém menos que João Gilberto e seu violão. Rosa conta que foi sua irmã maios velha quem comprou o disco. "Quando ela botou na vitrola e eu comecei a ouvir, meu mundo parou. Eu fiquei assim hipnotizada pela forma com que João Gilberto cantava e tocava violão. E disse pra mim mesma: é isso! É isso que eu preciso!". Foi aprender violão e deixou o piano de lado. Detalhe: Rosa Passos tinha 11 anos.  


No mesmo "Um Café Lá Em Casa", gravado há quatro anos, encontramos, num bate-papo super descontraído o já saudoso Lô Borges. E ele conta muita coisa em mais de uma hora de programa, desde a origem do Clube da Esquina (o local, a música, o disco), até dos dias mais recentes. 
Pra ficar só no começo: Lô tinha dezessete anos quando fez a música "Para Lennon e MacCartney" (com letra de Fernando Brant e Márcio Borges), um grande sucesso na voz de Milton, que já tinha se consagrado com "Travessia". Pois Lô conta que, logo em seguida ao estouro da música, Milton foi até a casa dele. Lô pensou que ele ia pedir mais uma música, mas Milton foi direto: "Eu vim aqui pra pedir pra sua mãe autorizar você a ir morar comigo lá no Rio. Vamos fazer mais músicas e um LP inteiro chamado Clube da Esquina". A autorização era necessária porque Lô ainda não tinha 18 anos... 
O podcast "Um Café Lá Em Casa" pode ser encontrado no Youtube: https://www.youtube.com/umcafelaemcasa . Há dezenas e dezenas de vídeos, todos ótimos. 

Outro dia, o próprio Mazzola, que adora contar histórias, disse que achou que o disco "Realce", de Gilberto Gil, poderia ser sensacional. Ele estava, Los Angeles, onde Gil fazia um show com sua banda. Mazzola chamou Gil e disse que queria botar uma cozinha de músicos americanos na gravação. Gil, a princípio, não gostou muito, pois estava com seus músicos etc. Mazzola não se deu por vencido e convidou Gil a escutar o que poderia ser feito. E mais: queria lançar o disco a nível internacional. Gil acabou topando. Aí Mazzola  convocou músicos só de primeiro escalão, gente que havia tocado com Lionel Richie e outros astros pops de lá. Passou as músicas pra eles, fizeram os arranjos e gravaram as bases. Claro que não foi tudo num dia só. Foi numa semana. Quando Gil ouviu ficou vidrado. Amou. E não teve dúvida alguma em botar sua voz na música título e em outras do LP. A história completa, com todos os detalhes - e são muitos - está em https://www.youtube.com/watch?v=tBtjnrt2EaM. 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Tempo errado no errôneo tempo

 Por Ronaldo Faria


Nos olhos que se interrompem e irrompem no final da tarde, um restante de pássaros ainda tenta voar. Daqui a pouco a briga será por um lugar nos galhos sem folhas e flores do final de inverno. Do asfalto, abaixo das árvores, sentado num banco de praça, o senhor decrépito e modesto ainda segura o saco de milho moído que alimentou andorinhas arengueiras e pintassilgos fortuitos e famintos. Para sua sorte, nenhum nunca lhe cagou a cabeça. “Os passarinhos reconhecem quem os ama”, repete a todos transeuntes que passam ligeiro para pegar o metrô.
-- E ela, como está?
-- Sei lá. Se eu não me faço presente, viro um ausente vítreo. Sumo no sumo do limão da caipirinha...
Cântaros de saudades nos cânticos antigos rolam ladeira abaixo nas lágrimas a correrem dos olhos. Na rua, escura e brilhante sob a lua, mãos se entrelaçam entre largos abraços. Nos olhares, tardios e velozes, sombras de pernas. Ao redor, luzes em matizes mil. No ar, cheiro de jasmim. No capim molhado da chuva que brotou das nuvens a cobrirem o vento de pingos pequenos, formigas cortam folhas para comerem mais tarde. O tempo se esvazia em pocilgas escondidas no destino. Nele, há corações partidos e um adeus cretino.
-- Quer dizer que é assim: via de mão única?
-- Acho que sempre foi. Eu é que não enxergava além de nós...
Aos poucos, espocam estrelas brancas e sânscritas. A cidade em grande parte já dorme insone. Mas um ou outro louco ainda percorre o lugar. Moradores de rua se acotovelam e se roçam em poucos e rotos cobertores para escapar do frio. Brisa serpenteia esquinas e brechas de concreto para fazer o mundo parar. Casais cantarolam o último refrão já embriagados e chapados. Quem não for dormir e amar na mesma cama irá descerrar os panos da trama envolta no drama da solidão. Sem pernas cruzadas, lábios colados, suores trocados. Em soluços, alguns buscarão soluções em diásporas e fugas finais. Outros traçarão monocórdicas poesias bêbadas de unções do tempo errado no errôneo tempo.
-- E o que fazer, diante de tudo dito e redito, escrito e crível?
-- Nada a fazer. Agora é apenas e somente esperar. Mesmo que tal espera seja um fel agridoce. 

(A ouvir PC Silva)

sábado, 15 de novembro de 2025

Bate em papos e papadas

 Por Ronaldo Faria


 
-- Lembra da Hortência que era a florescência da mais bela erva?
-- Lembro, claro. Dela e da brisa que envolve a lembrança e suga as emoções que envolvem o lugar.
-- Pois é. Virou avó.
-- Ainda bem que sim. Senão, talvez já teria virado pó.
-- Dele veio, a ele voltará.
-- Podemos crer que sim.
-- E do Benito?
-- O agricultor que criava cabrito?
-- Ele. O primeiro vegano de nossa geração.
-- Sei. O que aconteceu com ele?
-- Continua vegano, mas deixou de criar caprinos.
-- Caiu na real que para a bicharada era tudo prisão?
-- Não. Preferiu vender todos e virou ceramista.
-- Que legal.
-- Faz estatuetas de cabras.
-- E vende bem?
-- Não sei. Como elas são esculturas monumentais, acho que ninguém tem quatro metros de pé direito, no mínimo, pra comprar...
-- E a Carminha?
-- A musa da turma?
-- Ela. Cansou de ser musa. Agora é a nossa Brigitte Bardot.
-- Assumiu a causa animal?
-- Não. Cansou do Brasil e mora em Saint-Tropez. Lá aderiu ao topless em definitivo, sem medo. Virou cartão postal do sul da França. Um monumento vivo.
-- Porra, que bacana. Ela realmente tinha uns seios de fechar qualquer comércio planetário.
-- E o Perdônimo?
-- Aquele que a gente dizia que era o antônimo da realidade?
-- Ele mesmo. Virou pastor.
-- Evangélico? Puta que pariu...
-- Não. Ele que comprou as cabras do Benito. Mas deixa elas reproduzirem e vende depois para um frigorífico e abatedouro. Está faturando alto. O Pessoal da JBS já está temendo a concorrência.
-- Então esse é o nosso antônimo mesmo.
-- E a Lucimara?
-- Aquela que não se conseguia chegar junto nem na marra?
-- Ela mesmo. Virou freira. Está no Vaticano. Quer dizer, quem a quis entrou pelo cano.
-- Alguém, porém, seguiu a vida sem mudar muito?
-- Teve. Teve o Raimundo.
-- O CDF da turma?
-- Ele.
-- Que fim levou?
-- Virou político, foi eleito deputado, faz uma porrada de emendas para as ONGs da mãe e de um cunhado e está rico pra caralho. No Congresso é o Mundinho 25%. O Centrão não vive sem ele. Entre os caras do Baixo Clero ele é ídolo.
-- Quem diria...
-- É, quem diria.
-- E você?
-- Eu estou ainda aqui, antenado na turma do passado.
-- E o que faz da vida?
-- Virei influenciador, coach e algo perto de estar sem nunca ter estado.
-- Boa sorte.
-- Obrigado. Mas não esquece de me curtir, clicar no sininho e me acompanhar nas redes sociais.
-- Tudo bem. Amém...
-- Deus está contigo. “Pisarás o leão e a cobra; calcarás aos pés o filho do leão e a serpente.” Salmo 91 só pra ti! Esse é o Perdônimo, que é meu mentor intelectual. Ele me ensinou.
-- Valeu. Adeus.
-- Adeus, não. Logo iremos lembrar de mais gente que ficou pra trás.
 
(A ouvir Flavio Tris)

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A cabeça começa a falhar

Por Ronaldo Faria


-- Desculpe a sinceridade, mas acho que você está ficando gagá!
As palavras de Josué bateram forte em Rosivaldo. Ele tinha marcado um bate-papo etílico com dois amigos, só que havia esquecido de avisar a um que o dia era o de amanhã. “Caralho, como assim?” Como a informação era tripartite, todos por essência saberiam hora e lugar. Mas qual... a um faltou uma palavra essencial: “amanhã”.
-- Você tem razão. Sobre o pré-gagá. Mas é foda deixar uma informação tão importante fora do texto. Não há nem pretexto. A não ser, como você deduziu, início de uma senilidade. Afinal, está chegando mesmo a tal idade avançada. Será que vou começar a esquecer geral? Dia, hora, obrigações, realidade, até a forma de comer, andar, cagar na hora certa, amar? Deus, ir tão cedo para um asilo ser cuidado por uma enfermeira, quiçá nem gostosa, é muito bosta...
Rosivaldo, que agora fazia parte de um grupo comemorativo de sexagenários avançados, na beira perto dos 70 e algo, achava que poderia chegar longe na idade com a lucidez intacta por mais uns míseros dez anos. Mas agora bateu um medo. Ou precisa, a partir de tal, ler, ver e rever qualquer informação escrita ou dada para garantir a sua verdade. Ou, no mínimo, sua veracidade com a realidade temporal e pedir ajuda de universitários ou os outros incluídos na informação. “O tal mundo paralelo não pode ser mais o meu elo com o mundo do calendário. Pois, todos sabem, camelo não é dromedário.”
-- E aí, ao menos o tal amigo entendeu a sua demência cerebral?
-- Sim. Entendeu. Até riu. Tá certo que eu lhe devo umas várias agora, mas tudo bem, vida e amizade não se medem em cifrões. O legal é ver que ainda há quem saiba que herrar é umano.
-- Ainda bem, mas vê se não erra outra vez.
-- E agora, vou à farmácia comprar qual: Lavitan memória, Memoriol B6, Pharmaton, Ômega-3, Gerovital, Tebonin ou Fisioton?
-- Sei lá. Foi a primeira vez que ouço as sinapses falharem antes da bebedeira...
-- Tem razão. Acho que está na hora de pedir outra. Seu Manoel, põe aquela que abre a cabeça. Gelada de rachar neurônios, por favor. Se é pra esquecer, que seja por um bom motivo.
 
(Com João Cavalcanti a cantar)

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Fomos jovens

 Por Ronaldo Faria

 

Para onde levamos nossas vidas? Ficamos no ensejo de sempre relembrar ou fizemos um caminho por outros caminhos que nos rodearam em esquinas nas sinas e esperanças anchas de um porvir? Achamos, perdemos, traduzimos errado emoções, porções e copos que se davam nas mesas dos encontros e desencontros da vida? Talvez, ou não ou quem sabe sim. Seguimos esquinas escuras e prematuras, fomos caímos e levantamos em vão nos tantos vãos criados que pisamos. Sobrevivemos às escusas que o destino nos dava, aos maiores poetas da alegria, aos famigerados contrários, aos corpos dos amores que cheiravam a amor eterno e terno. Vivemos em noites e madrugadas arfadas e infladas, inflamadas de paixão e tesão, decibéis e alcaloides. Fomos chamar o insone Juca vários dias mesmo sem conhecê-lo ao vivo e a cores e, no desmazelo dos encontros e desencontros que o tempo e o destempero nos dão, levantamos em dores de cabeça no dia de depois para nos prepararmos para nova orgia. Descobrimos que as cartas escritas a mão e cheias de saudade reprimida ou o telegrama de frases curtas, mas rápido como a paixão, deixaram de existir. O instantâneo da internet deixou um vácuo nas emoções das esperas, no abrir o envelope com borda verde e amarela a crer que este trazia notícias além de qualquer alegoria tardia.

Fomos jovens numa juventude tardia. Nascidos muitos ou quase todos na metade do século passado, entre parteiras, mães de primeiro amor ou na primazia da liberdade que pouco havia, cumprimos um estágio entre a verdade plena e as mentiras que surgiram. Sínteses de tormentos em que a tal liberdade era tolhida por fuzis e carabinas, torturas e tortuosas mentiras, crescemos a esmo. Nos tornamos Nostradamus da esperança de que tudo um dia acabaria, vimos nossas profecias chegarem de avião do outro lado dos oceanos que dividem o planeta. Sorrimos, perseguimos nossos sonhos, acordamos dos pesadelos, consagramos a hóstia com o sangue daqueles que lutaram para o sol raiar em qualquer lugar. Juntamos, acasalamos, casamos, separamos, refizemos tratos e troças, tivemos filhos, netos, fetos inconcebíveis, histórias mil e até histriônicas. Mudamos de cidade, de espaços plenos, lugares. Alhures, sequer lembrávamos que existia um lugar onde nos encontrar, seja no interior ou no mar. Da bucólica Comendador Tórlogo Dauntre, perdida no bairro de nome Cambuí, às pedras do Estácio ou da Lapa cariocas. E assim, ensimesmados ou trôpegos de poesia e harmonias fora do quadrado, fomos buscar nossos caminhos alinhavados. Por fim, como gatos, brincamos no novelo de lã que o destino, em desatino ou sete vidas, sentenciou.

Que a vida ainda nos dê, hoje e sempre, como diz o poeta do samba Nelson Cavaquinho, carinho concreto, reto e certo e mão amiga...

domingo, 9 de novembro de 2025

Monica Salmaso, uma das melhores do Brasil

Por Edmilson Siqueira


"Minha Casa", da gravadora Biscoito Fino, foi lançado neste ano, mais precisamente em setembro. Forte e delicado, como é toda obra de Monica Salmaso, o disco é um momento de rara beleza, tanto pelas interpretações do fino repertório, como pelos arranjos e músicos que a acompanham com grande qualidade.  
Gravado ao vivo em outubro do ano passado, o disco marca também o reencontro da cantora com seu público, depois do isolamento imposto pela pandemia de covid-19. Nessa época, seus fãs eram presenteados com o projeto "Ô de Casas", onde, usando a tecnologia disponível, ela fazia duplas remotas com grandes nomes da MPB. Do projeto, com mais de 170 encontros virtuais, resultaram inúmeros momentos de emoção que nos confortavam diante do mal que grassava pelo país, tanto na saúde quanto na política.  
Quanto ao disco, ele não foi um projeto estudado e ensaiado. Foi o show ao vivo, que começou em 2023, que o moldou, transformando o espetáculo na matriz gravada.  
Ao mesmo tempo, para Monica, o disco representa um momento de inflexão: pela primeira vez ela concebeu o show primeiro e depois o álbum, não seguindo o modelo habitual de álbum de estúdio seguido de turnê.  
Além da maturidade, artística, esse fato representa uma confiança no repertório e no formato, reafirmando a cantora como uma das grandes intérpretes da música brasileira contemporânea. 
Salmaso assina a direção musical junto com o saxofonista/flautista Teco Cardoso — que também integra a banda em cena. Banda, aliás, cheia de cobras. Além de TEco Cardosos, participaram da gravação: Tiago Costa (piano, arranjos), Neymar Dias (viola caipira e contrabaixo), Lulinha Alencar (acordeom), Ari Colares (percussão) e Ricardo Mosca (bateria). 
A primeira faixa e uma parceria rara entre Egberto Gismonti e Paulo César Pinheiro: "Saudações". Um samba que se inicia com Monica tocando tamborim e cantando. Um samba de chegada, muito próprio para iniciar um espetáculo. 
"Vou na Vida" (Swami Jr. e Virgínia Rosa) é a segunda faixa. Música de raiz mineira, se daria muito bem na voz de Milton Nascimento, com ritmo marcante. Destaque para o solo de flauta de Teco Cardoso. 
A terceira faixa é Noite Severina (Lula Queiroga e Pedro Luís), um xote nordestino típico, com letra filosófica e muito bem resolvida. O acordeom de Lulinha Alencar dá o clima gonzaguiano.  
E por falar no Rei do Baião, a faixa seguinte é Aparição de Gonzaga (Ian Faquini e Guinga). As melodias complicadas e sempre belas de Guinga, ganharam incrível letra de Faquini, à qual se junta trechos do poema "Aos Críticos" de Rogaciano Leite. Uma espécie de obra prima que ganha emoção ainda maior na interpretação de Monica. 


Num repertório tão bem selecionado e quase teatral em sua sequência, não poderia faltar a música de Tom Jobim com uma incrível letra de Chico Buarque. "A Violeira", quinta faixa, é um drama cheio de humor meio negro, sobre a saga de uma mulher que se aventura no mundo, saindo do Nordeste e indo parar em Ipanema.  
A sexta faixa traz uma parceria entre Dori Caymmi e Paulo Cesar Pinheiro; "Quebra-Mar". Trata-se de nada menos que mais uma obra prima da dupla. A emocionante interpretação de Monica faz jus à beleza da melodia e à sensibilidade da letra. Destaque para o contrabaixo tocado com arco de Neymar Dias.  
"Acalanto" (Teresa Cristina) vem a seguir. Canto de areia, samba do amor perdido nas águas e nos braços de Iemanjá. Clara Nunes teria gravado com certeza.  
"Teleco-Teco", samba da Marino Pinto e Murillo Caldas, traz, em seu bojo, a mesma ideia de "Com Açúcar e Com Afeto", de Chico Buarque. É a história do malandro que deixa a mulher em casa enquanto vai pra "orgia", como se dizia antigamente. E, depois, claro, a mulher perdoa.  
Chico Buarque, com Vinicius de Moraes, são os autores da faixa seguinte que, obviamente, dispensa qualquer comentário: trata-se de "Valsinha" que Monica interpreta com a mesma qualidade que dela se espera. O arranjo e a flauta de Teco Cardoso também de destacam na faixa. 
Guinga aparece sozinho como autor da décima faixa, "Paulistana Sabiá". Difícil enquadrar num estilo essa pequena joia que Guinga nos oferece, como tantas outras já oferecidas. E desta vez com uma letra erudita que nos leva a sonhar. 
A décima-primeira faixa traz um samba folclórico adaptado por Xangô da Mangueira e Zagaia, dois históricos compositores da escola de samba. É um samba de roda que remete à roça, como a periferia do Rio era chamada. O arranjo com sons típicos do campo deu ao samba o clima da região em que foi criado. 
Novamente Chico Buarque, presença constante na obra de Monica, comparece, desta vez com uma composição somente sua, "Assentamento" , que se encaixa mais na porção política das músicas do cantor e compositor. Mas, como em toda sua obra, tem beleza de sobra.  
"Morro Velho" (Milton Nascimento) é a décima-terceira faixa. A música já clássica de Milton é um dos pontos altos do show, pois melodia e letra se encaixam perfeitamente na voz de Monica.  
Outra parceria meio rara na MPB nos traz Baden Powell e Paulo César Pinheiro, com a desconhecida "Santa Voz". Desconhecida porque a música tem, obrigatoriamente, mais de 25 anos (Baden morreu em 2000) e não fez o sucesso de outras criações de Baden. Mas se trata de ótimo samba. A letra é uma homenagem aos cantores. 
A décima-quinta faixa "O Tempo Nunca Mais Firmou", de Chico Chico e Sal Pessoa é uma sucessão de prazeres sonoros: o acordeom de Lulinha Alencar na abertura é pungente, seguido da ótima viola caipira de Neymar Dias, também responsável pelo arranjo. A voz de Monica se casa perfeitamente aos dois únicos instrumentos da faixa. Um show. 
A seguir vem "Xote" (Gilberto Gil e Rodolfo Stroeter) versa sobre uma lenda nordestina que Gil tão bem conta na letra. O xote (é o ritmo e nome da música) foi gravado primeiramente no disco "O Sol de Oslo", um dos melhores da carreira da Gil. E Monica honra a qualidade da música e da letra. 
"Mortal Loucura", a faixa número 17 do disco trata-se de um poema de Gregório de Matos musicado por José Miguel Wisnik. O poema se baseia numa série de jogo de palavras, onde o final de uma palavra chama outra com sentido diferente. Esse jogo aliado ao talento do autor - um dos maiores poetas brasileiros - nos dá um poema vigoroso que a música de Wisnik soube incorporar muito bem.  
"Tá?" (Pedro Luis, Roberta Sá e Lula Queiroga) é um baião vestido de protesto ecológico, contra o homem depredador da natureza. Outra letra inteligente que suprime a última sílaba das palavras que encerram cada verso, sem, no entanto, ofuscar o significado.  
A décima-nona música - "Gírias do Norte", de Onildo Almeida e Jacinto Silva - é um côco (ritmo comum por lá) que junta várias gírias locais para contar uma história meio engraçada e que, ao mesmo tempo empresta rara sonoridade aos versos. Mais uma ótima interpretação de Monica que aproveita a penúltima música do CD (no show houve dois bis que não estão no disco) para apresentar a cozinha toda de seus ótimos músicos.  
Por fim, a vigésima faixa nos traz "Menina Amanhã De Manhã?" de Tom Zé e Perna. Uma música deliciosa com mais uma letra mais que esperta que encerra o disco em alto astral. 
O CD está à venda nos bons sites do ramo e quem quiser não só ouvir todo ele, mas também assistir ao show inteiro, inclusive com uma música a mais - "Violada" - é só acessar o YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=-G8mv070FPI&list=PLjMk_448Pd1Nd-XIp01eOGMJQFeqM6H1H . 

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Saudando a saudade

Por Ronaldo Faria


Saudade santificada e apoteótica, aquela que nenhum olho nem na melhor ótica nenhum óculos irá encontrar. Porque ela está além das lentes que acolhem a vida. Saudade profética e estética, estática no tempo como se esse quisesse somente parar sem sair do lugar. Coisa de semente que não brota a lembrar e relembrar, se descascar feito laranja largada no pé, solitária à espera de um bico de pássaro para comê-la.
Saudade que a gente guarda em si e resguarda cada momento pleno de lembranças anchas num lumiar que escurece a cada dia. Coisa pequena e gigantesca, como os lábios ou as tetas (seios) da amada. Provérbio de verbos mil, tresloucados e resguardados, guardados em flores que cobrem os galhos secos da poesia nunca escrita. Inaudita, segue no retinto entre o coração, o peito vazio e a incerteza do próprio senão.
Saudade proscrita nos introitos tortos e performáticos que as frases ao léu levam além do fel que escorre das bocas sem os lábios outros a se esconderem na prosaica lucidez que já não há. Sanha de sobreviver com o corpo se tornando um nada banal na frieza frágil que se cristaliza além da estrada que termina no nunca e jamais. Acalanto à busca de um canto ou um cântico onde possa deitar no colo da saudade para reviver a canção.
 
II
 
-- E aí, você acha que estamos indo embora?
-- Acho. Mas, também, tanto faz. Onde toca samba toca jazz.
-- Ou seja, nada ficará?
-- Algo irá ficar. O tempo, porém, será ermo. Bem ao termo do sonhar.
 
III
 
A árvore defronte do morro que não existe, antes coberta de flores de cor grená, agora está que é só galho seco, sem uma folha sequer. Ela se rendeu à morte da beleza para sobreviver porque sabe que logo mais irá reflorescer. Encher-se-á de verde, virar pouso de andorinhas, pombas, bem-te-vis, pardais, graúnas e sabiás. Nos seus galhos fará dormir os pequenos corpos cansados de tanto voar desde os primeiros raios do sol. Irá balançar aos ventos de fim de ano e seguir seu destino sem desatino sequer. Porque para isso ela nasceu e foi feita: seguir. A árvore, bela e resistente num canteiro diminuto de cimento, há anos se transmuta e muda de acordo com as estações atabalhoadas dos anos. Esperemos ser iguais nesse pouco tempo que restar...
 
IV
 
-- E aí, Renato, vamos pro centro saravar?
-- Vou pensar. Mas até deu vontade de bater um atabaque.
-- Vamos lá. Quem sabe não é a hora de rever e ver o que nunca virá, mas que a gente teima em acreditar...
Amigos de tempo remotos e tortos, Renato e Humberto, desses que não se sabe se estão juntos por caminhos tortos ou certos, brindavam no boteco mais um dia passado. Frágeis, fortes, dicotômicos e atônitos por tudo que já passaram e viveram, agora estão entregues aos tragos que descem garganta a dentro. São apenas lembranças paradoxais de uma trança do cabelo de Maria ou das pernas de Zélia a subir no ônibus circular. Culpados por padecerem no mundo e parecerem normais em toda loucura viva, são dois num só em pálidos segundos doloridos que se transformam em urdidos acordares quando o mundo ainda respira o negror de ver o tempo passar.
-- Quer saber, vamos sim. É hora dos santos agradecer e reverenciar.
Pagam a conta, que remonta três dígitos, entram no Uber mais perto e descem diante do centro onde a umbanda é a banda do bem. Dão cinco estrelas para o motorista que ficou calado todo o percurso, seguem o curso da vida, sentam na plateia (porque bêbado não dá para na gira entrar), cantam aos santos, recebem os passes de Vovó Maria Conga, Pai Manoel e Nanã Buruquê. Saem refeitos e quase perfeitos do lugar sagrado e cheio de milagres.
-- Porra, estou me sentindo bem pra caralho! Vamos tomar a saideira?
Param no boteco que teimava em estar aberto na área de conflito entre duas facções e são baleados sem nada ter a ver com a briga da comunidade que habita a cidade distante e inaudita. Viram pé de página no jornal que registra a sina. Ao menos o baluarte da imprensa livre (mesmo no extrato dobrar e jorrar sangue) deixa claro que ambos eram ficha limpa.
 
V
 
Cândido e Candinho eram amigos desde os Anos de Chumbo. Lutaram juntos contra a ditadura, foram torturados, seguiram ao exílio e sonharam a hora de voltar. Foram recebidos no retorno aos gritos de “Anistia” e “O povo unido jamais será vencido”. O aeroporto era o porto que se abria mesmo longe do mar. Voltaram para ouvir, como diziam poetas, os cantos do sabiá. Seguiram juntos e unidos. Unha e carne. Na cantoria que existe entre o oceano e o sertão. Viajaram quilômetros em milhares de estradas da felicidade e da agonia na verborragia que lhes restava ainda. Pregaram a reconciliação, a ação que dá uma sobrevida à vida, mostraram que o perdão leva a algum lugar, seja esse qual for. Foram arauto e silêncio na querência que a sequência da história fez-se de sentença e glória. Meio sentença e outro tanto sinal. Pregaram, diriam os incautos e profanos, em vão. Morreram quase no mesmo dia, não lhes separasse meses de remissão. Enterrados em lápides diferentes, como toda a gente que lhes foi o súbito e maior altar, dizem que se encontram num céu desses que ninguém jura de pés e mãos juntos que há.
 
VI
 
O altar da pequena capela é a cena central. Cheia de cocô de morcegos que vivem no desassossego de trocar o dia pela noite a defecarem nas imagens dos santos restantes do lugar, como retirantes da fé, ela está ali: entregue ao tempo que gira sem parar. A fazenda, antigo engenho chamado Murta, é somente um espaço cheio de pedras e rezas, reses mil. Cheio de histórias, velhas de vestido preto e um telefone de pilha e manivela pra girar, são o restante de tempos nunca impávidos e sequer em colosso. Nele uma menina como que esquecida da mãe e do pai cresce a incandescência do sol que brilha claro cheio de lumiar. Entregue aos tempos antigos de juntar família e algo qualquer que se deseja ser no ar, dá-se ao homem único e escolhido. Em silêncio, com o pano onde irá derramar a virgindade arrancada, vê-se em véu branco como a festa da cantilena da sereia que sabe que não existe além-mar. Feito barca que corre um rio revolto a desaguar nas ondas que teimam em tentar dormir na areia que há, cumprirá seus sonhos insones e largar. Longe do lar conquistado, sem um fado sequer que valha qualquer foda tida, irá morrer numa cama asséptica e branca de um hospital de nome de tal e tal. Na areia clara e fina do rio que chamam de real, certamente o tempo que se esvaiu há tempos no coronel e lembrava o nome de Jesus lhe retorna ao lar...
 
VII
 
Um grupo pra reviver 45 anos de uma república? Casinha pequena e pétrea na parafernália da metrópole que se fez acrópole do passado, casuística e mística, quase música e certa pichação (com certeza hoje coberta de tinta) do poeta que chora a resposta posta para cravar a vida da amada numa esquina que não tem o grito do Ipiranga e muito menos as bênçãos de São João. Porém, se tudo na vida destino há, que venha tal encontro a que se destina...
 
VIII
 
Arrependimento não haverá. Não há. Afinal, o tempo não tem como voltar. Errou-se? “Erro” se perpetuará. O que ficou, ficará. No seu tempo proscrito na imensidão. Voltará claro e volátil de tempos em tempos, como se quisesse se refazer. Ao saber que não poderá, surtará. E irá bater nas efemérides e intempéries que sofrem na seca um pé de cajá.
 
IX
 
Caralho, os numerais em algarismo romano o tal de aprendiz de poeta ainda sabe... Revoltado e ao mesmo tempo a aceitar o que foi e vier, José é só um pingo de cinza na humanidade que a verdade transformou em algoritmos sistêmicos e isquêmicos. Agora, em Marte ou no quadrado esférico e retangular do luar lá fora e aqui dentro, no aforismo quântico tudo está igual. Saudoso desde já da vida que se esvai a cada dia naquilo que ainda virá, o mundo cumpre seu destino interrupto e modal. Afinal, há milênios mil faz tudo isso sempre igual. Loucos, poetas e profetas souberam vê-lo em pesadelos e embriaguez em enlevo e zelo. Já aqueles que nunca souberam tê-lo, as telas de pequenos buracos marcados de sangue recobrem de vida o lugar cheio de pernilongos a sugar o sangue da gente incauta na busca do prazer.
 
X
 
De verdade, me pergunto como os escritores e poetas antes do computador (filho de 1957 sou deles também, mas sobrevivi para ver a tecnologia chegar) conseguiam rever e revisar seus textos sem rasgar papéis ou laudas e dizer “caralho seria tão mais fácil se não precisasse colar ou reescrever tudo novamente!” E tanto reescrevi, rasguei, colei e xinguei. Nada como um dia depois do outro, como uma noite e madrugada no meio. Seja o que isso for...
 
XI
 
Bahia, minha terra etérea e verdadeira, com seu povo e sua linhagem, descoberta de amores (um que me livrou da morte no Ceará com a sobrinha-neta de Lampião), louvores, raízes, cheiros, odores, luzes, descobertas, paixões, unções, lembranças anchas, coisas que nunca deixarão o copo torpe e repleto de lembranças que a gente nem sabe, hoje, se realmente existiram. Bahia minha, saudade suada e calada, a gritar a cada dia numa imensa nostalgia, deixa dormir a amada que vive sua noite sem dois em dó apertado.
 
XII
 
Doze escritos como os mandamentos. Tormentos, lamentos, excrementos do viver. Candelabros e descalabros a brilharem na lua gigante e infante, arfante para muitos e tantos. E ainda bem que nessa Terra há amantes nus e sob as mantas jogadas no chão nesse Inverno que parece o inferno do calor seco e quente. Que os deuses da loucura e daquilo que tiver de ser saibam ser no desmedido do que for na seca flor. E se não acordarmos amanhã, nem aqui ou nos polos norte e sul, que a morte nos seja tão nobre como esse escrever.
 
(Com Caetano e tantos outros)

Algo mais com Cannonball Adderley*

Por Edmilson Siqueira Pensa num disco que soa moderno, mas que foi lançado há 67 anos. É disso que se trata esse "Somethin' Else...