quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Dona Ivone Lara e a santa Iara

 Por Ronaldo Faria

“Sorte ou morte? Onde existirá o limite que existe e define a definitiva e imprecisa lasca que há entre o trincar e o quebrar?”

Manduca se perguntava há algumas décadas como era estar e viver nesse vendaval que a brisa de fora não fazia nem pétala de roseira tremer e ser. Intransmutável, seu tempo corria milésimos que os anos vindouros ou findos não sabiam nem sequer contar. Os dedos das mãos eram poucos para recontar. No mar, longínquo e raso, apenas os tolos de amor morriam afogados a pedir por clamor. Marinheiros da tristeza e da solidão nunca viram seus barcos lá se perderem. As sereias, brejeiras e faceiras, sequer chegavam perto da areia. Sabiam elas que a poesia a tudo espanta, menos a dor. Em meio ao mundo, nascia nalgum lugar uma flor.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Com João Cavalcanti

 Por Ronaldo Faria 

 

Põe óculos, troca óculos, ajeita óculos numa espera de ósculos que foram, vêm ou virão. Na poesia que entardece, a noite aquiesce e se aquece. Na brancura da ternura da poesia ainda não escrita, o imbróglio que se desmancha na mancha que não some entre sabões em pó e um pós caminhar de estrada onde a terra sucumbe aos pés perdidos e ardidos de sol, urdidos em lençóis. Entre a cama, o drama e a trama, Cesarino, feito quando o vaqueiro, de facão ligeiro, rompe a carótida do bicho, se embrenha feito vaca prenha que toma banho num poço qualquer à espera da cria logo chegada. Nas letras da vida abstrata de quem trata as troças do mundo como um vazadouro de vertedouros, sucumbe a si mesmo. A esmo, se esmera em aços que brincam de brilhar em esmerilho. Parte de um todo que não tem início e nem meio e nem fim, vive em parcimônia que cheira amônia. Sentencia e chantageia o tempo, vive trôpego e banal como fosse marginal, desses letal ou/e coisa e tal. Num aforismo que cabe num quadrilátero enfiado num triângulo que existe no retângulo que a esfera faz, seguimos em rodopios e centenas de pios do pássaro preso na gaiola de gravetos. Feito substrato de quem espera receber um trato, o tratado do tempo que blasfema ao destino. Em desatino, uma tina de álcool se derrama à madrugada concebida.

-- Que ideia mal concebida. Acho que a nossa cabeça está mesmo fodida.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Doidivanas noitadas

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, troca os copos?
O garçom pergunta solícito e amigável.
-- Por favor. É tudo fermentado, mas entre cerveja e vinho não há muito tratado.
A voz de Adamastor soa retumbante no salão.
Na fria madrugada tragada em si mesma, ensimesmada de tanta coisa para contar e escrever, a vida chega enviesada e formatada, onde ninguém poderá mudar. Mas o que é a vida? Entreouvida na contemporaneidade perdida, nada mais é do que segundos ungidos e múltiplos no girar de uma bola cheia de terra e água no universo a vagar.
Copos trocados, campesinos longínquos vibram pelo seu trabalho no Chile um reles notívago sorver. Ao derredor, haja dor e dormência, iníqua sofrência que só os anos de hoje trouxeram ao dicionário.
Adamastor, que se fosse música seria um adágio em mi menor, se é que isso existe, espera que a esfera que roda acima da sua cabeça vire algo como uma fera. E pule e pulule. O amanhã? Haverá? Em arabescos e afrescos, frágeis e fúteis lembranças adentram em sons vaticinais. Na vitrola, agora, Vinicius de Moraes. “Na noite, nos bares, onde anda você?” Senão, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Desencontrado, o poeta profetiza a efeméride tardia e vadia. Nos próximos dias, saber-se-á, a vida entrará no seu quadrado.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Papo de poeta ou poetiza, no piano

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, Lívia, podemos ir pra minha casa?
-- Acho melhor que não.
-- Mas eu moro sozinho. É isso mesmo? Vai rolar só uns beijinhos?
Lívia, dessas mulheres que se pode chamar de lívida ou senhora de si, dá o ultimato: “Não. Te ligo”.
-- Tudo bem. Até quando der outra vez.
Na voz de Paulo, o pulular de quem não sabe sequer o que é parar de pular ou ulular. Perdido, liga o carro e arranca nas rebentações de além-mar.
-- Boa noite, senhor Jairo...
Em casa, Lívia, abre um vinho, liga a tevê e vê a derradeira ou próxima reprise que se antevê. Mulher plena, dessas que o poeta mais velho a colocará no patamar de deusa efêmera, não precisa de pênis, corpo peludo ou ser impoluto para viver. Muito menos emplastado. Dona de si, diáfana naquilo que o parnasiano mais tresloucado escreveria, apenas se basta. Na varanda, uma pomba dessas de varanda ou rua, troca suas penas.
-- E aí, Bastião, valeu!
Paulo chega ao apartamento apertado que algum deus lhe deu. Vai da entrada à sala e o quarto num segundo. Depois, mijar célere no banheiro imundo. Abre a geladeira e vê a cerveja derradeira. “Devia ter comprado mais.” Liga a televisão e desliga logo. No celular, o algoritmo diz que uma velha amada está a ligar. Desliga o aparelho, acende o cigarro e se põe a pensar: “Porra, a Lívia bem que podia querer topar somente poder vir trepar.”
Na cidade que é uma efeméride constante, inconstante em seu limiar, a noite percorre os corpos que acordados ou adormecidos fizeram o dia trilhar. Lívia e Paulo, acomodados no seu sonhar, são apenas sombra que a sinfonia noturna que se beija na madrugada singular faz e refaz para mais um redescobrir que a vida é um constante nunca chegar.


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Piano ao fim do álcool

 Por Ronaldo Faria


 

O copo está quase vazio. Do balcão o garçom diz que já vai fechar. No piano, o músico pede, aos prantos, o fim do expediente no bar. “Tem barbitúrico?” A resposta é que não há. E agora, onde as mágoas do amor despejar? Over The Rainbow. Como que por algo mecânico, o pianista vira apenas artista de boulevard.
Os poucos casais que ainda se postam nas mesas que ninguém mais quer limpar, descobrem que o gelo que virou água não irá se repor. Se ele conquistou ou não a amada, só a fada da foda noturna/madrigal/marginal irá dizer ou argumentar. Se ela conquistou o seu desejo só o bruxo do ensejo/sobejo/casual falará.
Na avenida que prenuncia um tanto de orgias e outros poucos ou muitos tantos de remédios para dores de ressaca, cabeça e tristeza, carros se volatilizam na poesia. Flanelinhas correm atrás dos trocados tresloucados que bêbados lhes darão. No orfeão da vida, premida e prenha, perdida, os faróis piscam como clamídias.
O último freguês abre a última garrafa. Seu ser solitário ultima o alvorecer encardido e vazio na cama que nem box é. Paga a conta e conta quantos passos dará até o seu lar. Alardeia, em devaneios, os meios que amanhã terá. Talvez uma vez irá esbarrar com o amor na rua, ou quem sabe um carro louco o atropelará.
À saída do resistente, o dono do bar cerra as portas. O pianista, vulgo artista, agradece. “Sobrou algo na cozinha?” – pergunta em voz rouca de quem cantou de Sinatra a La cumparsita. O cozinheiro diz que sim. Tem batata, arroz e algo chinfrim. No mundo que se esvai, o tempo agora apenas se distrai.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Ao piano de todos nós

 Por Ronaldo Faria


Um piano geme nos dedos daquele que mal consegue beber o seu uísque entre uma música e outra. Que mal fez quem tentou fazer da música o seu labutar? Poucos o ouvem. O som das mesas é apenas gracejar ou conquistar o final e letal. Meio que esquecido num canto de bar, adormecido e quase carcomido em teclas pretas e brancas, o piano gorjeia notas musicais feito sinais que apenas o amor deixa fluir. Como beijos em solfejos, peles nuas e suadas a se embrenharem nos lençóis que branqueiam o negror que vem de fora. Como mãos de dois amantes, passeiam sem limites a um lugar para chegar. Tocam seios róseos e brancos, olham olhos fechados ao acalanto de um gozo seminal, sem embrenham em pelos engrenhados de barba e cabelos genitais. No ar, As Time Goes By.

E o piano continua à espera da mulher nua. Brinca de acordes (sem acordar quem já dorme), notas que denotam o arfar de ambos, partituras dessas que se partem e desapartam brigam de pernas e braços tentando o outro engolir e conquistar. Lá fora, o mar arrebenta a santa água benta de sal e acreditar. Na janela cheia de maresia e poesia, insanas paixões serão somente senões. Mas ficarão o calor dos dois, a doidivanas centelha que o amor faz brotar em cada chegar. Quem sabe, na próxima tarde, o entardecer não se faça somente saudade. Na aurora boreal, que nunca avançou um sinal sequer, a mulher lambe o corpo do amado. Embrenhados em si, ensimesmados de um tudo torpe e louco, apenas descobrem aquilo que o tempo soube em teclas de marfim metamorfosear.


sábado, 25 de novembro de 2023

Na forrozada inchada de ciúmes paternais

Por Ronaldo Faria


A viola rasga o espaço que está partido de risos branqueados das donzelas namoradeiras e rapazes enlouquecidos pelos batons cor de carmim que bronzeiam os lábios a se conquistar. Coitados, terão muito que esperar. Quem sabe a vida inteira. As meninas, embranquecidas pelo pouco de sol imposto pelos pais donos de cintos às mãos e ciúmes atrozes, apesar de suas artroses, sabem que dançar um forró colado é coisa que há de se privar. “Painho, é só um chegar junto sem encoxar. É uma dancinha só.” Com olhos vermelhos de aguardente e ódio pelo pequeno garanhão que quer chegar, o velho, a mascar fumo de rolo e bater a espora no chão, só diz um simples e definitivo não. “Esse bosta que vá carpir um terreirão!”

O violeiro, que nada tem com a cena, chama o sanfoneiro pra ajudar. Aí a festa vira um festão. E as coitadas das meninas, de pernas finas de tanto ficarem sentadas sem aceitar uma dancinha, vão vendo o tempo passar até as dez da noite chegar. “Está na hora de moça direita parar.” E lá se iam todas, com seus progenitores a ver uma esperança feminina sucumbir. No salão ficavam os moçoilos prestes a buscar a casa que queimava lampião com celofane vermelho ou o que desse para esquecer mais esse sombrio viver. No palco, sem microfone ou infames, os músicos faziam aquilo que podiam para deixar o dono do forró sorrir. No balcão, Zé Formiga gritava que a pinga estava em promoção final. Era só achegar e tomar.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Xangai e Elomar

 Por Ronaldo Faria


Incelências se iluminam nos olhos das beatas que rezam com seus terços e véus. As velas a queimarem na capela cobrem de amarelo o tanto que parece e se enaltece negro nas roupas das mulheres com suas peles velhas e enrugadas. Andrajos, homens aboiam o pouco gado que sobrou e a seca ainda não levou. Vão devagar a divagar o despropósito que há entre o irreal e o ilógico. “Nascer pra quê?” - questionava Longuinho. Mas, no sertão da caatinga sem começo ou fim, senão, não há o que se perguntar.

Na estrada de terra e pedra, um ou outro mandacaru, o importante é chegar em casa e ver o corpo de Maria nu. Deitar na esteira, ao cheiro que sobe na fumaça escura do lampião, e criar outra cria que o tempo um dia irá matar. Não há muito no que pensar. A roda do carro de boi a consertar, a burrega com o pouco de comida alimentar, o sonho dela virar grande e leite poder dar. Seu cavalo, quase tão seco quanto o derredor, vai em quatro patas traçar a troça de quem do alto dá vida para fazer o seu bdestino sangrar.
Mas as rezas enraizadas como a última esperança de quem nem sabe o que é dança, saídas de bocas sem dentes e dentaduras, tomam conta do lugar. Próximo, um último poço d’água marrom encharca a cacimba. Gargantas carcomidas de nada esperam nadar entre barro e líquido qualquer. No curral, a égua prenha prossegue seu parto em dor. Ao longe, uma queimada traz de volta e mata a terra que um dia o santo prometeu. Tudo como uma viagem travestida de solidão e redundante solitário lumiar.
Em meio a tanto entremeio, mágica ilusão sonha em brotar do chão. Quem dera e quisera fosse como estrela que vem, brota, aparece e desaparece num céu sem fulgor. No lamento sangrento do porco que é cortado de facão na barriga, a fadiga do boiadeiro que espera que o dono da terra batize outro petiz. No fogão de lenha, o cheiro é de comida que não foi carcomida pela realidade que existe em chiste. No quadro final que nenhum pintor criará, o pouco que, como diria o louco, faz de tudo um lugar.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Malandragem grampeada

 Por Ronaldo Faria


Geovenildo (mistura de Genoveva de mãe e Hermenegildo de pai) cruzou o trilho do trem devagar. Na quentura do Méier, era só uma rampa para outra. Coisa que até o Zé da Muleta Meia Boca conseguiria como fizesse salto à altura em Olimpíada. Tinha acabado de arrancar dois dentes no dentista paraguaio que atende num sobrado encarquilhado onde la garantía soy yo. Sob efeito da anestesia e duas cafungadas, o caminho reto parecia chegada de barco em marina cheia de maresia. “Calma que você logo chega lá”, dizia a si mesmo, nos tantos mesmos de si àquela hora e altura. Vendedores de biscoito Globo e Chá Mate, longe da praia, muambeiros com capa de celular e raquete de muriçoca, trabalhadores cansados de ralar se cruzavam atabalhoados. Para Geovenildo, Gegê ou Nildo aos íntimos, aquilo era um mercado persa. Ou será um persa em mercado suburbano? Com esforço sobre-humano, chega ao ponto desejado. Por sorte, não esbarra num despacho. “Porra, entrega pro santo agora não tem mais cachaça?” Disperso desse mundo, não viu o malandro que corria com a garrafa debaixo do braço. Pensou em pegar o frango, mas ele estava cheio de penas e bem mal passado. Desistiu. “Esse deve dar dor de barriga e pouca sorte”, à conclusão chegou.

Geovenildo, Gê ou Ni para os mais íntimos ainda, pegou o primeiro trem que parou. Conseguiu ao menos subir, meio empurrado pela massa e outro tanto pela sorte que Deus dá aos desvalidos e combalidos, quiçá fodidos do mundo. De pé, seguro pelas outras tantas centenas de passageiros nada fagueiros, foi de estação em estação. Engenho de Dentro, Piedade, Quintino, Cascadura, Madureira, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro. Marechal Hermes e Deodoro. No fim, não tem jeito. “Ô, meu irmão, acorda! Tem que vazar!” Geovenildo desembarca da barca e segue pela passarela para chegar na rua. No centro espírita perto o incenso corre solto. O atabaque ressoa e a Pombajira (diria o Houaiss) gira sem parar. O cambono segura o refrão e Zé Pilintra dá risada. “Entro ou não?” Batizado e confirmado no ambiente, decide ao menos bater a cabeça para o santo. “O que não é mal feito, mal não tem.” Senta no banco de madeira, faz sua oração e pede socorro. “Meu Oxalá, cuida de mim, que te peço tão pouco”. Sai de lá meio torto e trôpego e serpenteia pelas ruas e ruelas, becos e biroscas, pontos de venda de produtos importados de La Paz ou Bogotá. No céu, uma lua redonda se faz rotunda para seu drama sem segunda sessão marcada e a cortina voltar a fechar.

 (Ao samba de breque do Rio)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Deoclécio no césio da vida

 Por Ronaldo Faria


Deoclécio acordou todo feliz. Esqueceu do ensinamento do mestre Moreira da Silva e pensou ter acertado no milhar. “Agora deu. Não tinha como não dar. Chega de pobreza! Zelinda, pode ir na 25 de Março encher a sacola! Ganhei dez vezes mais do que apostei! Se dei bem!”
Eufórico, crente de tudo, meio demente pelo porre recente, tinha a certeza plena de que sua hora enfim tinha chegado. “Zelinda, hoje eu quero picanha e cerveja de litrão! Nada de asa de galinha e Samba. Vamos ao bar do Camundongo Molhado e fechar a pendura. Agora é só na fatura.”
No seu mundo pouco afeito aos números e afazeres do anotador que molha a mão de quem manda e cobra de quem joga, saiu para a rua todo feliz e cuidadoso com o papel carimbado da PT e da Coruja, da milhar e da centena, pegou o ônibus com passe de idoso, do seu avô Cardoso, e desceu no ponto central. Deu tchauzinho para a moça de boa idade que rodava bolsa na esquina, saudou o homem que dormia sob a marquise e sorriu ao malandro que andava armado, com o berro escondido.
De peito cheio de orgulho, além de oxigênio com gás carbônico que vinha do lado de fora do esgoto que corria a céu descoberto, aberto e sem afeto, parou na frente do Mão sem Braço, chefe do pedaço, e disse resoluto de antes do luto: “Vim dar preju pra você”. Orgulhoso, tirou o papel do bolso e mostrou. “Pode ser em nota alta. Chega de merreca no bagulho”. Perto, um pombo em arrulho voa.
-- Tu tá doido, Zé Ruela? Papo reto, isso aqui foi de anteontem. Hoje deu foi jacaré na cabeça. O burro já passou de ilusão.
Se Deoclécio ainda tivesse coração sobrando no momento, teria morrido na hora. Olhou direito o papel, correu para o poste mais perto e lembrou que sexta-feira já tinha ido. Usou de novo o cartão do avô, seguiu cabisbaixo pro barraco, nem via a paisagem de trilho de trem e casa sem reboco. Ao chegar, ouviu um barulho nos fundos, do lado do córrego seco, e lá estava Zelinda, com um churrasco completo e repleto na mesa, barril de chope às pampas e os vizinhos a gritarem que Deoclécio era o Jesus do presépio. Feliz, o português do Camundongo Molhado segurava um camalhaço de dívidas mil.
 
(Ao Bezerra da Silva)


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Se aos depois dos 80 chegarmos, cheguemos assim

 Por Ronaldo Faria


Encarquilhado, defenestrado, com alguém que nem a gente (em mente) a dizer na fila do ônibus, “por favor, pode subir”. Carros pararem nas ruas e os motoristas com um gesto de afeto a mexerem as mãos num “pode passar”. Gumercindo estava assim: entre o começo do fim definitivo e o fim efetivo do começar a dormir a sete palmos. “Nem fodendo, quero ser cremado. “Do pó viestes, ao pó voltarás!” Do alto, se alto ou algo existir, Deus briga por sua alma com Satanás. Na rua, um samba de pagode eclode.

Numa tela dessas que fica ligada nas vitrines de loja popular pulula um vídeo do Ney Matogrosso. “Quero chegar aos 82 que nem ele. Lógico que não terei a grana que ele tem, mas me basta o seu pique. Não estar babando na fronha.” O pensamento de Gumercindo se espraia pela noite que se embrenha numa futura madrugada tragada de mais um dia. E brota de notas que se denotam ao silêncio quieto que surge feito grotão escondido num pequeno senão. Como a grota em Angico que matou Lampião.

Sonoro, bêbado, embriagado, feliz por ter comprado dois reais e vinte centavos de bala de canela, Gumercindo se refastela nas vielas que separam seu dilema da trama grandiloquente que sobrevive sem trema. Na trama subsequente (e cadê a trema de novo?), está no barraco a ferver um ovo. Beberá um gole de pinga barata e logo dormirá naquilo que deitar de bruços vale um largar. Ney canta que vale romper tratados e trair os ritos. Na vida de caminhos tortos, que sobrevivam os poucos e derradeiros sangues latinos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ao som chacrineado

Por Ronaldo Faria

 

Na discoteca que se entrecorta no palco imaginário da imaginação cortada por devaneios e solidão, chacretes rebolam como se fossem um avião em turbulência. Sentado defronte da tevê a cores, não 4k, Climério, deletério do mundo real, viaja a cada rebolada sinuosa de Cléo Toda Pura, Esther Bem-Me-Quer, Índia Potira, Lucinha Apache ou Sandrinha Radical. Enlouquece com Mirian Cassino, Sandra Pérola Negra, Pimentinha, Loura Sinistra e Suely Pingo de Ouro. Não se contém ao ver Graça Portellão, Valéria Mon Amour, Fátima Boa Viagem, Beth Boné e Lia Hollywood. Por favor, não falem de Rita Cadillac... Assim é querer matar do coração e tesão Climério em pleno porvir.

Nas luzes que emanam da televisão, trevas inexistem. Se persistem, só será após o corpo dormir e a irrealidade da mente continuar a vibrar. “Vocês querem bacalhau?” Certamente Climério gostaria de estar no auditório para pegar um bacalhau inteiro. Valeria o peso na testa, se ali pegasse, e o cheiro no ônibus. Se o cobrador viesse a reclamar, que vá buscar os seus direitos imperfeitos. “O Velho Guerreiro que mandou pra mim, otário!” Feliz, seguiria seu rumo sem prumo a tentar aprumar a direção que vai em direção contrária ao mar. Num trilho de trem abortará seu infeliz sonhar. Cairá na realidade promíscua que só as coxas e peitos das chacretes ainda enaltecem. Dormirá feliz. Do sofá para a cama, num quarto e sala, o caminho é rápido como um triz. Na vida real, Chacrinha, a buzinar o pseudo céu, se céu de fato existirá, apenas rirá. Ao fundo, no mais profundo limiar, alguém grita chamando T(h)erezinha.

domingo, 12 de novembro de 2023

A frevear

 Por Ronaldo Faria

 

Esperar para antes não vai dar em nada, assim como a lua só beija de esgueiro a madrugada. Reunidos, os foliões e foliãs folheiam na lente da máquina que espoca um flash a quebrar o desfile que logo chegará. Na rua, um frevo desce a ladeira para logo depois pedir para subir. Mas, no brandir de um papel, tudo virou fel...


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O violão da mulher em corpo de...

 Por Ronaldo Faria

 Que notas sairão do violão? Onde o pinho e o corpo nu da mulher se unirão para tocar os acordes que acordarão o mais insone dos homens? Em que dedos e solfejos transbordarão de prazer ou ilusão a maior das solidões?


O sorriso perdido de Isabel faz o mais rígido bedel esquecer que há ordens a dar. Disciplina? Quem de forma real e lógica a saberá agora criar? Na cabeça de Adamastor, velho e senhor, desses que os cabelos já deixaram a cabeça a queimar e os dentes esqueceram de ficar, era apenas ela, Isabel, que poderia ser a mais assassina abelha que tudo faz, menos mel.
-- Mas como você foi se apaixonar por ela, homem?
-- Não sei. Aconteceu. Nem eu queria, mas meu coração entrou em orgia. Tardia, a paixão desabrochou. E tudo queimou como gasolina.
-- Agora você está aqui, debruçado nessa mesa suja de bar, a babar. É, meu amigo, a coisa está feia. Ô Manoel, traz mais uma do barril e outra pra molhar!
-- Vos levarei, mas mesa suja tem a destratada da sua mãe!  - responde do balcão o português.
A verdade é que o sorriso de Isabel, sua pequena silhueta, tudo aquilo que ela mostra e esconde, fizeram Adamastor admoestar a si próprio. Impróprio no inglório trato de ser sóbrio, onde a sobriedade há muito rompeu com a idade, ele apenas, como transeunte de uma rua vazia, dessas que só as madrugadas mais frias fazem surgir, era um ébrio sem par ou lugar. No urgir de um sol que não chega, se aconchega nas lembranças que a destemperança traz. É só mais um a mais a chorar. Isabel lhe roubara a razão. Hoje, Adamastor nada mais queria ser do que apenas um silencioso violão...
-- Ô Manoel, desculpa por ter falado da sujeira. Traz mais outras. E, se puder, um pano de prato pra limpar o que eu disse sem querer falar!
Do bar, um palavrão lusitano destoa de tanto recordar. No alto, alteia um imenso luar lunar.


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

No chorinho embriagado de notas desbotadas e desbragadas

Por Ronaldo Faria


Bebamos. Bebamos ao átrio onde o espaço seja de copos mil, conversas delineadas entre a razão e a loucura, lancinantes pelejas onde haja vencedores e vencidos, em que cada um transcenda centilitros e mililitros de performances perdidas no tempo e ventres desnudos em que apenas se sonha. Bisonha, a noite profanará lampejos de um dedilhar de violão, um som de cavaquinho, um pandeiro perdido numa esquina qualquer, todos para profanarem o silêncio que dorme junto ao corpo da mulher. Talvez, logo além, uma voz. Um lábio delicado a bordar de beijos a promíscua escuridão, tão pueril como desejo mais insano de caminhar a noite como fosse ela mero pernoite numa praça de casais a se acariciarem no luar.

Esperemos. Esperemos que o inerte colapso da mão que afaga o cão na esquina seja a mesma sina da amante que, desvirginada, espera reparar seu erro com o toque de uma varinha de fada. A luz de lampião, que teima em fugir dos postes enferrujados pela chuva fina, se enternece ao viver em reflexo nas gotas de suor que caem do rosto do guarda que corre atrás do menino que roubou a maçã do feirante. Nas pedras de paralelepípedos quadriláteros e escuros, um brilhar que se consome no barulho dos Fordes que, igual aos seus donos, são tais  e têm bigodes. No botequim, onde garçons e garrafas mil se misturam e sobem e descem, corre e vazam, as decisões plenas ou prósperas esperam apenas a hora vagarosa passar.

Possamos. Possamos, pois, passear em notas e cifras, acordes a nos acordarem da letargia que chega logo depois do décimo copo de pinga. Feito Posseidon, dominemos nossos mares bravios que têm como porto o corpo da amante, vençamos terremotos que teimam em existir nas ladeiras, eiras e beiras de quando o sol ainda não nasceu, impeçamos as tempestades que desaguam entre copos a mais e bílis de menos, e domemos nossos cavalos que teimam em correr por pradarias de asfalto onde carros refletem o perigo do fim. Protetor das águas derramadas em garrafas vazias e auxiliar dos marinheiros de última ou primeira viagem, que o deus grego de cada um apenas descanse um dia no fotograma perdido entre imagens mil.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...