terça-feira, 29 de julho de 2025

Mel Tormé & Tony Bennett: os estilistas da canção *

Por Edmilson Siqueira



Juntar dois cantores geniais num mesmo disco não é tarefa fácil, embora muitos disco com duplas notáveis já tenham sido produzidos. O normal é que ambo cantem as faixas (ou a maioria delas) juntos, em arranjos novos para sucessos de cada um ou até alguma música inédita.  
Mas há também um outro modo de apresentar dois grandes cantores num mesmo disco sem que estejam juntos nas faixas. Foi o que fez a Charly Records em sua coleção Classic Jazz: gravou dez faixas de cada um, separados e fez um CD com vinte faixas divididas entre Mel Tormé e Tony Bennet.  
E o disco "Mel Tormé & Tony Bennett: The Song Stylists" acabou reunindo duas das vozes mais distintas e reverenciadas da música vocal norte-americana do século XX. Com isso, a série da Charly acabou ganhando uma coletânea que ao juntar as 20 músicas, se tornou um documento sonoro notável que destaca a maestria de Mel Tormé e Tony Bennett como intérpretes ou, como o título sugere, "estilistas da canção". 
Essa expressão, “song stylist”, é mais do que uma simples etiqueta de marketing: define cantores cuja assinatura está não apenas na beleza da voz, mas principalmente na forma como interpretam e transformam uma música. Tanto Tormé quanto Bennett se encaixam perfeitamente nessa definição, cada um à sua maneira, com personalidade marcante, sensibilidade e uma profunda conexão com o repertório do jazz e da canção popular americana. 
Mel Tormé, conhecido como "The Velvet Fog", (apelido que ele detestava) construiu sua reputação com uma voz aveludada e um fraseado absolutamente refinado. Músico completo — cantor, compositor, baterista e arranjador —, Tormé era uma figura admirada não apenas por sua voz sedosa, mas por sua compreensão profunda da música. E foi um bom escritor também. 
Nas faixas que compõem sua parte no álbum, Tormé brilha com sua costumeira elegância. Ele não apenas canta: ele molda cada canção como um escultor molda sua obra, exibindo um domínio técnico impressionante, utilizando-se de variações melódicas e dinâmicas vocais sutis que dão nova vida a standards conhecidos. 
Já Tony Bennett representa uma outra vertente do "song stylist": mais visceral, mais direto, mais emocionalmente carregado. Dono de uma voz calorosa, com timbre robusto, Bennett é um mestre da interpretação apaixonada, sempre cantando com o coração na garganta. 
Mesmo nas canções mais simples, Bennett consegue extrair nuances de emoção que transformam a experiência auditiva. Ao contrário de Tormé, que frequentemente usa a sutileza como sua principal ferramenta, Bennett prefere a exposição emocional — ele se entrega por inteiro, com uma intensidade que beira o teatral, mas nunca ultrapassa os limites do bom gosto. 



O grande mérito de "The Song Stylists" está na capacidade de oferecer um retrato comparativo de duas escolas distintas de interpretação vocal, sem que se possa dizer que uma é melhor que a outra. Se Tormé representa o refinamento técnico e um cuidado jazzístico com as notas e com o tempo, Bennett é o expoente da emoção direta, da entrega apaixonada e da comunicação com o público. 
Por fim, é interessante notar que os dois artistas também tinham grande apreço um pelo outro. Em entrevistas, Tony Bennett expressou diversas vezes sua admiração por Mel Tormé, considerando-o um dos maiores cantores que já ouviu. Tormé, por sua vez, reconhecia em Bennett um intérprete autêntico, cuja paixão pela música era evidente em cada apresentação. 

As primeiras dez músicas são interpretadas por Mel Tormé:
1 - I'm Getting Sentimental Over Your (Bassman e Washington)
2 - I Can't Believe That You're In Love With Me (McHugh e Gaskill)
3 - Prelude To A Kiss (Ellington e Mills)
4 - You've Got The World In A String (Arlen e Koehler)
5 - (You've Got Me Between) The Devil And The Deep Blue Sea (Koehler e Arlen)
6 - I Surrender Dear (Cliford e Barris)
7 - I Let A Song Go Out Of My Heart (Ellington, Mills e Nema)
8 - Don't Worry About Me (Koehler e Bloom)
9 - One Morning In May (Carmichael e Parish)
10 - I Can't Give You Anything But Love (Fields e McHugh)
As 10 seguintes, cantadas por Tony Bennet:
11 - I've Grown Accustomed To Her Face (Lowe e Gaylemmer)
12 - Jeepers Creepers (Warren e Mercer)
13 - Growing Pains (Stone)
14 - Poor Little Rich Girl (Coward e Ascherberg)
15 - Are You Having Any Fun? (Yellen)
16 - I Guess I'll Have To  Change My Plans (Dietz e Schwartz)
17 - Chicago (Von Heusen e Cohn)
18 - With Plenty Of Money And You (Dubin e Warren)
19 - Anything Goes (Porter)
20 - Life Is A Song (Ahlet e Young)
O CD pode ser comprado nos bons sites do ramo. Atenção aos preços que são bem diferentes. Não consegui nenhum site que desmobilizasse o CD para ouvir. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

A pensar em pitibiriba longe de Pirituba

  Por Ronaldo Faria


-- Necas de pitibiribas!
Com o sol a nascer, uns poucos raios encruados a percorrerem os galhos das árvores onde pássaros despertam seus cantos e trinados, como fossem treinados e doutrinados para a vida, José caminha na praça de descida e subida. E segue seus pensamentos e lamentos, saudades e trôpegos ausentes sonhos. Com passos firmes a pisarem o asfalto opaco, no cansaço de uma noite em que se divertiu nos pesadelos efêmeros e frágeis, descortina um céu azul limpo onde as nuvens esqueceram de passar.
-- Isso: vou escrever sobre pitibiribas. Sempre achei essa palavra sonora e límpida, extravagante e simples. E soa como zunido de abelha, dessas que vai de flor em flor a voar e flanar no ar.
Na contramão da ladeira e na rota que se aproxima do sol que brilha amarelo e lilás, um casal de idosos caminha de mãos dadas. Diante deles, duzentos anos se espelham e se empoeiram vertiginais. Do tempo dos castiçais a iluminarem as noites madrigais, ambos passam por José sem lhes responder o bom dia. Talvez o aparelho de surdez tenha ficado sem pilha. Pouco importa. Na casa branca da esquina a porta se abre. É hora de sair para trabalhar e suar pelo pão nosso de cada dia. Um périplo de mendigos também se esvai das calçadas em marcha das migalhas que esperam cair das mãos de algum pecador. Afinal, só este sabe o que é dor.
-- Como é bom ficar lúcido e beber o frio que sai dos dias juninos. Mas, pensando bem, o que melhora? A vida permanece a mesma, só que sem a graça da loucura que as notas e os goles dão. Quer saber: foda-se, hoje eu vou beber!
Aos poucos a luz toma conta de tudo. Os postes, automáticos no seu desligar assim que já são desnecessários, se deixam escuros e soturnos. Até o entardecer servirão apenas para um ou outro pássaro descansar suas penas calejadas e cagar só pra pintar de verde e marrom o alumínio que Plínio, funcionário terceirizado da empresa de luz, irá ter que um dia limpar.
-- Acordar nas cinco da matina até que é bom para a retina...
Apressada, uma doméstica atrasada para o trabalho não entende tal alegria de José, mas lhe dá bom dia. Deve ter pensado que doido a gente não deve contrariar. O mundo devagar já começa a rodar igual e fetal, fatal para alguns, nascedouro de emoções e unções para tantos mais. Já não há luz de cores diferentes que possam brotar a rodar nas pupilas ou púlpitos. É tudo somente claridão. Imensa, gigante, cheia de luzidias razões para caminhar, sonhar, continuar, renascer e logo depois cair na cama quente e ressonar.
 
(Sorvam o som de Chicas)

sábado, 26 de julho de 2025

Outrinha felizinha, com Caetano e filhos

Por Ronaldo Faria



Bustamante, amante colérico eclético, estava casado com Clotilde, besuntada de mel e lua. Diria até que era algo que não há palavra apalavrada para cultuar ou explicar. Era! Apenas era, feito hera que nasce de repente num rompante. Isso bastava.
Eram casal acasalado no maior primor, mesmo tivesse ele voz anasalada. Meio gordinho e fanho, ex-favelado largado, alargado pelos aros de luz que chegam logo depois da escuridão nos buracos do teto de zinco, Bustamante sentia-se órfão infindo nos braços de Clotilde.
Ela, donzela de um cavaleiro só, dessas que zela seus orifícios apenas para o amado, vivia a sambar no lar. Mesmo com sua vida fora das paredes, como benzedeira da paz, Clotilde vivia a vida a brincar de vestido que rodopia na barra que a saia faz subir até o joelho no luar.
Loquazes, algozes de si mesmos, feito amor a esmo, brincavam todas as noites como animais que convergem num açoite à volúpia que a coruja, atenta, tenta decifrar. Viram uma meiose que o poeta, na sua ignorância bíblica e real, sabe lá o que pode ser ou será. “Meinha pode ser?” – pergunta o depravado que Carlos Zéfiro fez feliz em gerações de um século atrás.
Viventes e crentes, emergentes de lembranças infindas nas findas esferas que as mais bestas feras entrelaçam nos pesadelos noturnos, eram um só. Sem dor e nem dó. Caçadores de urgências frígidas, frágeis seres, volúpias efêmeras, sabiam traduzir a vida. Crianças cruas naquilo que o mundo traz e dá, eram e são anciões nas loucuras que as agruras de cada dia deixam como semente para brotar.
Logo, se amaram e se jogaram nos precipícios que nem os prepúcios ainda virgens sabem onde vão adentrar. Entre lábios que se misturam de bocas e línguas e aqueles que ficam escondidos nas pernas da mulher, foram em desterros a se entregar. Onde? Em qualquer lugar. Afinal, quando você tiver vontade de se largar, faça-o. Face na face. O resto, proscrito céu com gosto de mel, saberá criar nuvens fugidias à loucura do amor. Senão, valeu a intenção no tesão que nesse momento, feito minueto, é apenas sentimento de Orfeu.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Na vibe de Vander Lee

Por Ronaldo Faria



Cego em seus egos vesgos nos périplos, Gumercindo vociferava a lavra de quem caminhava entre nuvens ou preamar. Na canseira de se achar, proliferava matizes no que hoje se chama expertise. Experiente nas estradas famélicas que nem as velas sabem iluminar, brinca de brincar na irreal crença de ser ou estar. Nos goles de cachaça rechaça a tristeza que teima em chegar para se aconchegar.
De olhos vívidos e brilhantes, borbulhantes, Catarina tinha nas retinas a mansidão. Entre a vastidão do mundo e a devassidão da vida, ia no seguir de ir e vir. Na prece de quem não tem pressa, passeia incólume na luminosidade da cidade que vive, gira e roda. Dá mil cambalhotas. Deixa versos jogados no chão em reviravoltas. Se entrega. Ou será entrega-se? Para ela, pouco importa se tiver de cruzar mais outra porta.
Agiota de voltas e reviravoltas, Gumercindo é talvez mero pretérito imperfeito, seja lá o que isso for. Na dor do analfabetismo do destino, sabedor de sua ignorância plástica e lacônica, platônica quiçá, segue agora no torpor da hora.
Menina que surge feito crisântemo que flora e aflora lá fora, onde achamos enxergar, Catarina cata sílabas e gestos, tece frases e versos, caminha no alvorecer. Na sua estrada calcinada em que o silêncio é nada, apenas surge em todo esplendor.
No fim, enfim, na efeméride que se escreve sem saber, se juntam e se untam de paixão. E fica apenas o poeta, apostata de qualquer fé, a viajar nas suas trevas que se entrevam e se entregam no muito que parece ainda pouco em toda imensidão.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Predestinação na procrastinação

Por Ronaldo Faria


-- Angélica, onde está você? Cadê aquele amor que invadia a madrugada e viajava pelos mais loucos lugares e camas desforradas como rosas defloradas no vento para o nosso alento? Que fim levou nosso amor? De herança ficou apenas essa infinita dor?
Wanderley, parado diante do sinal que piscava vermelho para o carro da cena parar, viajava na maionese própria, antípoda da felicidade. Amante que já fora arfante entre lençóis do antes de sóis, seu caminho era hoje um descaminho franzino. Pequeno diante das mágoas do mundo e gigante na solidão sempre a renascer, quase menina.
Andarilho de estribilhos, equilibrista de trilhos, mergulhava nas próprias palavras para tentar se fazer entender. No cerzir de atalhos, caminhava na busca de ser. Ébrio contumaz, pouco ou nada loquaz, vivia nos seus oceanos a tentar algum porto de continente qualquer alcançar. De bússola, seu soluçar. Logo ali, na esquina onde se escondia a próxima sina, a luz solidária do olhar perdido. No anhangá em todos nós, nós que se desatam na madrugada escura.
-- Angélica, em que deriva de maré a tua jangada se desfez e adernou na dor? E me deixou aqui, grumete de nenhuma viagem a buscar alguma galé. Aonde navegar? Em que tormenta naufragar? Talvez no mar infinito em díspares rotas de insensata imensidão.
Sabendo-se eterno catador de conchas tronchas e quebradas, com os pés da amada ali do lado, dança agora um fado. Sem par. Para Wanderley, o mundo é globo sem lei. Mas, talvez, a da gravidade exista na grave verdade do mar que não despenca universo a fora. E assim ele vai. Grandiloquente sem a trema que dava sabor à trama de escrever. Na taberna quente onde faz a verve verdadeira transpirar, suplica por sirenas, sereias ou até a sirene de ambulância que traga Angélica, mesmo estropiada e escalafobética, para sua parca fonética. Mas, como todo canto ou conto barroco, virou somente mais um escritor escroto para quem é aquele que não sabe sequer ler.

(A ouvir Vander Lee)

domingo, 20 de julho de 2025

Ray Charles, a essência musical de um gênio *

Por Edmilson Siqueira



"The Classic Years", de Ray Charles, é mais do que uma simples coletânea de sucessos: trata-se de um mergulho profundo nas raízes da genialidade musical de um dos artistas mais influentes do século XX. Lançado como uma compilação retrospectiva, o disco reúne gravações fundamentais da fase mais prolífica e inovadora de Charles, principalmente entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1960 — período em que ele moldou o rhythm and blues e abriu as portas para a soul music como a conhecemos hoje. 
Ray Charles Robinson nasceu em 1930, em Albany, Geórgia, e perdeu a visão ainda na infância. Essa deficiência, no entanto, jamais limitou seu talento. Ao contrário, parece ter aguçado sua sensibilidade musical. Em The Classic Years, podemos ouvir como sua voz encorpada, muitas vezes rouca e visceral, expressa uma gama emocional raramente alcançada por outros cantores de sua época. Seu canto ia do lamento do blues ao êxtase do gospel, passando pela suavidade do jazz e pela força pulsante do R&B. 
Um dos maiores legados de Ray Charles é sua habilidade ímpar de fundir estilos musicais distintos. Tanto que começou com blues, passou pelo country (gravou um disco inteiro só com pérolas desse gênero), namorou o pop (gravou Beatles) e era um jazzista sensacional, tanto com seu piano, como na composição e no canto. 
E era um pianista sofisticado, fortemente influenciado por Nat King Cole e Art Tatum, o que fica evidente nos arranjos elaborados e nas passagens rítmicas precisas ao longo dessa coletânea. 
Carismático, mesmo nas gravações de estúdio, sua performance parece ao vivo, cheia de energia, risos e espontaneidade.  
Além disso, embora o disco não seja explicitamente político, é impossível ignorar a importância cultural de Charles como artista negro num período de segregação racial nos Estados Unidos. Sua ascensão ao estrelato, sem abrir mão de sua identidade e de suas raízes musicais, foi um marco de resistência e afirmação. 
Seus biógrafos assinalam que "The Classic Years" também funciona como uma janela para compreendermos o impacto duradouro de Ray Charles, destacando que ele pavimentou o caminho para artistas como Aretha Franklin, Stevie Wonder, Marvin Gaye e tantos outros. Sua coragem estética, sua capacidade de inovar sem perder a conexão com as tradições afro-americanas, e seu virtuosismo técnico tornaram-no um ícone. 


Em 2004, poucos meses após sua morte, o filme "Ray" reacendeu o interesse por sua vida e obra, apresentando-o a novas gerações. Mas é em coletâneas como esse "The Classic Years" que seu verdadeiro legado pode ser sentido: não como lenda distante, mas como artista vibrante, cheio de vida, paixão e criatividade. 
Muitos críticos consideram que Ray Charles, mas foi ele quem os uniu de maneira singular e revolucionária o rhythm and blues, o gospel, o jazz e o soul. "The Classic Years" não é apenas uma compilação — é um testemunho histórico e emocional de um artista no auge de sua criação. Cada faixa ecoa com a força de quem cantava com o coração, tocava com a alma e vivia com intensidade. É um disco essencial para qualquer amante da música, e uma prova viva de que a genialidade de Ray Charles permanece tão impactante hoje quanto foi em seus anos clássicos. 
O disco é composto por 14 faixas, 9 das quais de autoria de Ray Charles.  
- Baby Let Mew Hold Ypur Hand (R. Charles) 
- Kiss Me Baby (R. Charles) 
- C. C. Rider (Traditional) 
- I Wonder Who's Kissing Her Now (Howard e Adams) 
- I'm Going Down To The River (R. Charles) 
- All To Myself (R. Charles) 
- Sitting On The Top Of The World (Carter e Jacobs) 
- Alone In The City (R. Charles) 
- Ray Charles Blues (R. Charles) 
- Rockin' Chair Blues (York) 
- Can Anyone Ask For More (York) 
- Baby Tell Me What You've Been Done (R. Charles) 
- Hey Now (R. Charles) 
- They're Crazy About Me (R. Charles) 
Há outros discos de Ray Charles na praça com o mesmo título ("The Classic Years"), com músicas que fizeram mais sucesso nos anos 70 e 80 do século passado. Há inclusive uma caixa com 3 CDs que deve abranger a obra de Ray Charles de forma mais completa. O CD comentado aqui, como já disse, trata mais de suas origens, quando ele se firmou como um artista completo na arte que se propunha: compor, tocar e cantar.  E, claro, no Youtube há inúmeros discos completos ou singles para se ouvir do genial Ray Charles. 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

No cantarolar

Por Ronaldo Faria


 
A cidade, na sua idade antropológica e própria decadência, se esfacela e se esfarela feito quirela de pão. Quisera sabe dizer que tudo terminará em procela. Mas qual... Num quarto e sala, João se apropria do passado e corre feito louco das lembranças de infância. Nessa instância, o psiquiatra junto com o geriatra diriam: “Interna, é caso perdido”.
Mas João não liga para a essência de ser hermafrodita. Na desdita, se entrega ao desdém da vida. Vinho português na taça, traça a comer seus alfarrábios, viaja nas letras e versos. Faz-se reverso na crença de que estará ao amanhecer, como disse o poeta, pra lá de Marrakesh. “Amanhã a gente vê a merda que vai dar”.
Incenso de arruda aceso, dois novos santos africanos no santuário (uma com a navalha que corta o mal e o outro que faz novo ciclo chegar no tempo), na certeza de pesadelos logo mais, João se embrulha solitário feito sabugo na palha do milho. “Vim só caminhar nesse mundo e só irei embora.” Lá fora, o aforismo de falácias e dramáticas histriônicas histórias. Atônitas, células dançam um tango/bolero qualquer.
Na cidade, cheia de iniquidade e dramaticidade que enche o roteiro de amantes e poetas, homens e mulheres se juntam, se separam, reparam que estar junto pode ser coisa boa ou mazela. Na esquina, quimera de prosopopeia, um personagem que por obrigação da rima se chama Zélia.
 
II
 
A rabeca faz a prece fluir feito chama ao luar. E sublima a miragem selvagem que se entorna no copo profilático e alcoólico. No andor lunático que o andar dos graus dá, viajar de flores despetaladas que dormem suas cores no chão. De antemão, o cuidado nas travessias do amanhã. Estrábico e analfabeto em matemática e física, nas distâncias entre as entranhas e os carros que correm no asfalto, que venham os anjos dos sonhadores. E sejam prestos em gestos e destinos. E logo e portanto, em tão pouco pranto, que o desatino diuturno e frugal mantenha no planeta mais um dia esse animal.
 
III
 
Blasfêmia à fêmea? Jamais. No meio de um jardim de antúrios e florais, Vespúcio sabia que o encontro do sol e da lua é mais do que uma simples conjunção de astros. Nos astrolábios da navegação que busca a felicidade, a bússola aponta para a saudade. Ínfima infâmia da artimanha que se entranha no cair da tarde lilás, luxúrias se transmutam feito perda de lucidez mordaz. Loquaz, a realidade brinca de ser sem sê-lo. No passado, o homem lambe o selo à espera que a amada responda logo em sequência hedionda, quiçá capaz.
 
IV
 
-- Sortuda a peituda. Soube escolher o louco certo!
Chico sem sobrenome deu sua sentença. O resto logo irá virar resto sem opção ou oração, senão.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Pra esquentar

Por Ronaldo Faria


 
-- Pelo amor de Deus, canela de pedreiro não!
O pedido de Gusmão fora tão sofrido e verdadeiro que Cícero, garçom do lugar, atendeu o desejo.
-- Tudo bem. Peguei uma que tinha acabado de colocar no freezer. Tá quase na temperatura ambiente.
-- Obrigado, meu irmão! De coração!
Gusmão, parceiro de copo de Felismino, que tinha faltado na retreta por estar gripado, pega a garrafa, enche o copo e derruba tudo de uma talagada só. Feliz por tudo na vida ter feito por amor, quer agora apenas um momento de torpor sem dor. Pede um podrão onde tudo é pouco pra tanta fome, come em dentadas plenas e se propõe: “Amanhã vou caminhar, com ou sem calor.”
-- Cícero, meu velho, fecha a conta aqui!
-- É pra já, patrão!
Gusmão se levanta, aperta a mão do comparsa de bebedeira, mesmo cada um do seu lado do balcão, e sai a sorrir na madrugada escalafobética. No alfabeto que lhe repassa no cérebro que ainda está e há, brinca de chutar uma lata perdida no asfalto. Do alto do prédio, um ser enfronhado no seu próprio tédio diz que não é hora de cantar. Ele não liga. Na verdade, religa o celular e chama o número de Felismino só pra dizer que a gripe é uma merda e os goles perdidos nunca mais voltarão. Lembrou ao amigo que seria bom tomar um Voltaren. “Ao menos a dor tem que parar”. Espera o sinal abrir para os raros pedestres e, pé antes e depois do primeiro pé, caminha até sua casa, aonde com a solidão irá se agasalhar e acasalar. Mas, ao menos, trêmulo de quase hipotermia, sabe que conseguirá dormir. No frigir dos ovos, haverá mansidão. Na devassidão que a solidão dá, sabe que meio metro de concreto vale mais do que quilômetros de um dia que não mexe sequer o catavento.
 
(No final com o Chico Buarque)

terça-feira, 15 de julho de 2025

Charlie Byrd e a música brasileira *

Por Edmilson Siqueira


 
Que a bossa nova encantou os músicos de jazz dos Estados Unidos todo mundo sabe. Eles não só gostaram muito do que ouviram, como perceberam ali uma vertente jazzística digna desse nome. E, claro, entraram com tudo naquele "jazz" malemolente com lindas melodias. 
Charlie Byrd foi um desses músicos que se apaixonaram pela bossa nova. Mas ele foi além: Em 1961 veio ao Brasil, comprou, ou ganhou um monte de discos, participou de várias sessões com músicos brasileiros e voltou ao Estados Unidos carregados de boas lembranças daqui e disposto a transformá-las em disco. 
O disco acabou saindo em 1965 e se chama "Brazilian Byrd", com arranjos de Tom Newson, um saxofonista que também passeou pelo Brasil em 1962, com a orquestra de Benny Goodman e adorando a música brasileira que conheceu.
A gravação, só com músicas de Jobim e vários parceiros, acabou representando um dos momentos mais marcantes da união entre o jazz dos Estados Unidos e a bossa nova brasileira. Com arranjos refinados, técnica impecável e uma sensibilidade rara para os ritmos e harmonias do Brasil, Byrd mostra nesse álbum sua profunda admiração pela música brasileira, em especial pela obra de Jobim e seus parceiros que formaram a espinha dorsal da bossa nova.
Charlie Byrd não foi o primeiro músico norte-americano a se encantar com a música brasileira, mas foi um dos mais importantes na sua difusão no cenário jazzístico. Foi ele, inclusive, o responsável por apresentar a João Gilberto e Tom Jobim ao saxofonista Stan Getz, o que culminaria no antológico Jazz Samba (1962), um dos discos mais vendidos da história do jazz. "Brazilian Bird" é, em muitos aspectos, uma continuação desse projeto: fazer a ponte entre dois universos musicais distintos, mas complementares. 
Charlie Byrd era um guitarrista clássico de formação, com influência direta da escola espanhola e do violão erudito. Isso conferia a ele uma abordagem única dentro do jazz, que normalmente era dominado por guitarristas com palheta e linguagem mais próxima do blues ou do bebop. Ao tocar com os dedos, Byrd conseguia um som mais quente e articulado, ideal para as sutilezas da bossa nova.
 

Em Brazilian Byrd, ele evita o virtuosismo exibicionista. Seu foco é na melodia e na dinâmica. Cada nota soa clara, pontual, com atenção ao fraseado — como se a guitarra respirasse junto à música.
O álbum surge num momento de grande fascínio da cena de jazz norte-americana pela música brasileira. Nomes como Cannonball Adderley, Dizzy Gillespie, Herbie Mann e Paul Winter também estavam experimentando fusões com a bossa nova e o samba. Mas, entre todos, Charlie Byrd foi o mais consistente e talvez o mais respeitoso nas suas releituras. 
Diz a crítica especializada que "ao longo dos anos, o disco ganhou status de cult e permanece como um dos melhores exemplos do que hoje se chamaria de world jazz. A abordagem de Byrd influenciaria não apenas outros músicos de jazz interessados na música brasileira, mas também guitarristas brasileiros que perceberam, com ele, novas possibilidades para o violão dentro do jazz."
Assim, "Brazilian Byrd" é um álbum essencial para quem deseja entender como o Brasil entrou para o mapa afetivo do jazz internacional. Mais do que um disco instrumental, é um gesto de amor e reverência, em que um músico americano, com talento e sensibilidade, consegue captar a alma brasileira em sua forma mais musical.
São essas as 13 faixas (uma delas é uma gravação alternativa):
Só Danço Samba (Tom e Vinicius de Moraes)
Corcovado (Tom Jobim)
Este Seu Olhar (Tom Jobim)
Garota de Ipanema (Tom e Vinicius de Moraes)
Samba do Avião (Tom Jobim)
Engano (Tom Jobim e Luiz Bonfá)
O Amor em Paz (Tom e Vinicius de Moraes)
Dindi (Tom e Aloysio de Oliveira)
Canção do Amor Demais (Tom e Vinicius de Moraes)
As Praias Desertas (Tom Jobim)
Samba Torto (Tom e Aloysio de Oliveira)
Se Todos Fossem Iguais a Você (Tom e Vinicius de Moraes)
Engano (Tom e Luiz Bonfá - gravação alternativa)
O CD pode ser encontrado por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido no Spotify (https://open.spotify.com/intl-pt/album/1gPDlIt0HuXWNN9GDDItPu) e no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=s9SxWBm_WM8). No Spotify está completo. 
 
*A pesquisa para este artigo foi feita com auxilio da IA do ChatGPT.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Friorento e acalantado

Por Ronaldo Faria


Faz frio. O corpo tem arrepio e não se ouve da coruja sequer um pio. Ela está entocada numa toca qualquer, a tentar agasalhar seu pé. Na rua, casais se agarram e se juntam mais do que o normal, como fosse junho o início de mais um Carnaval. Quem sabe a roçar pernas e braços, com tantos alentos e enlaces, aconchegos e abraços, não se consiga fazer a noite perpetrar o resto de sol e fazer o mundo esquentar? Mas qual, na Terra não há mais lugar para anjos. Os demônios que passeiam nas esquinas e camas fazem da lua seu réquiem e ruminam a estapafúrdia certeza de que não vale a pena viver.

As janelas fechadas para as fachadas cinzas e cheias de concreto armado parecem armas prontas para dispararem no disparate que vem a cada gole de vinho tinto. A tintilar nalgum lugar perto, moedas caem do bolso do avarento que deixou de pagar a conta de luz. Sem aquecedor, vive a bater seus dentes e ranger ossos na plena dor. O odor em volta é de restos de comida carcomida por vermes que aprovaram o fim do frio no congelador. Deitado no sofá, soturno e alquebrado pelo tempo, Gumercindo é um gourmet da tristeza, quase um comensal. Lá fora, afogada em formas e versos, vive Beatriz.

Desejada por todos aqueles que a conseguem ver ou enxergar, está a ler um livro de poesias, desses que se lê junto com café quente num boulevard. Quase desnuda, sob as cobertas que chamam de edredom, sente sua pele tocar o cetim que serve de lençol. Seus raros pelos brincam de levantar numa estática e elétrica estética a quem gostaria de estar ali, a servir de calor à falta de pudor. Beatriz, que Michelangelo teria esculpido em tamanho real e desejo irreal, sabia que vive nos sonhos e pesadelos de homens e mulheres mil. Mas, agora, na fria noite que se atira gelada, é apenas um pedaço de sina.

“Cretina, por que me deixou?” O grito de Evangelista sai de uma lista de impropérios etéreos que surgem da sua garganta seca e perdida na derradeira mesa de um bar. Ébrio desde menino, famélico e magrelo, se fosse visto de lado ninguém o enxergaria. Aliás, mesmo de frente, bem defronte que seja, ninguém o vê. Mas ele não liga mais para isso. Submisso às lembranças de infância, refém do amor de Maria, é outro Zé na fila do bonde que há muito deixou os trilhos enferrujados. Penitente renitente de uma oração, dessas que se recita nas procissões, apenas espera o garçom expulsá-lo do lugar.

Mas na boate que funciona no meretrício em tênue luz vermelha plena de devassidão, Joana gargalha ao último freguês. “Esse albanês é uma besta de pinto pequeno!” Bento, segurança do local, ri também. O turista, de nome Vasil (não vaselina), sequer entendia o que os gentios falavam. Feliz pela noite tragada e entumecida, pagou em dólares e partiu. Seu navio iria sair logo no amanhecer. Para Joana, a trama tinha findado. Era hora de tomar mais um trago, por conta da casa, seguir para o subúrbio e dormir. A névoa gelada ao derredor não sabe ver ou ler a sua dor. Daqui a pouco, novo retomar do mundo louco.

Um dia Gumercindo encontrou Joana a trabalhar e logo descobriu que era nela e nas suas pernas que seria feliz. Catou cada vintém que tinha escondido debaixo dos tacos de madeira e entregou um a um à sua nova amada. Ela, estupefata com tal querer, adotou o homem e prometeu morar com ele, desde que esse pagasse a conta atrasada da Light. No dia seguinte, na fila do Serasa ele estava lá. Já Evangelista viu Beatriz numa livraria tosca na busca de nova leitura atávica. De lado, para que ela não o enxergasse e se assustasse, não acreditou na cena e demasiada beleza. De repente, ela lhe tocou o ombro: “Sabe onde eu encontro Baudelaire?” Foi amor à primeira pergunta e o esquecer eterno de Maria.

Hoje os quatro vivem os dias frios a trocar cobertores, chaves de aquece/esquenta no chuveiro e brincadeiras que surgem depois de garrafas de vinho, conhaque ou bourbon. No interior da metrópole que aos poucos vira acrópole, vão tocando seus dias entremeados de madrugadas onde cada respirar faz fumaça das gargantas brotar. E o tempo e os minutos passam no relógio, perpassam novos aniversários e a certeza de que a esteira da história não para de rodar. Lá de cima, bem acima do celeste luar, alguém ri de seus personagens e daquele que, quando o sol chegar, estará a descobrir como nova ressaca suprimir. 

(Ao som de muitos músicos e canções)

sábado, 12 de julho de 2025

Edu que foi e eu logo me acho lá

Por Ronaldo Faria

Juninas festas febris, sânscritos escritos do nunca fim, desvairados horizontes etílicos e tresloucados, fadados a submergir nas ondas que a Zona Sul traz a iluminar contábeis contas e vidas proscritas e desditas. No corre da vida, fatídicas e idílicas saudades. Maldades e catarses, insolúveis ideias. Panaceias da doutrina efêmera de seguir àquilo que será. Paráfrase daquilo que for na fuga da louca que queremos ver se salvar. Antes de nós seja ela o melhor amor a viver no amor maior. Cravo e canela naquilo que pode ser o próximo luar, na loucura desse mundo tresloucado que pede a saideira. Aliás, quem não pediu ou bebeu uma saideira (ou foi presenteado com ela) não terá vivido nesse mundinho. No gratinado de qualquer carne, no seu cheiro cheirado, esmero brejeiro, a solução do efêmero centeio. Em rimas trazidas sabe-se lá de onde, a certeza de que os instrumentos brincam de versejar.
-- A todos nós, loucos no tempo que a terra deu pra estar, a certeza de que cada ressaca valeu o tempo que se fez em si, sem invólucros, estar.

(Ao som do Edu Lobo, ainda aqui)

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Arrigo com Lupicínio

  Por Ronaldo Faria


-- Só uma Maria foi de verdade. As outras foram Maricotas.
A frase de Apolinário, que nunca fora otário na vida (apesar de assim uns imbecis o acharem), apenas se escondeu no personagem atávico e quase trágico de uma música que Lupicínio Rodrigues assina. Sentado e quieto, ereto ainda, ele revê e vê os tempos áureos e plausíveis, sensíveis e críveis, ou como diria Lupicínio, quando os espelhos lhe dão conselhos.
Na cama, azáfama e vestal, o personagem imaginário e etário vive as juras largadas e versejadas do ultimato trágico e fugidio. Para ele, parafraseado em cada nota da canção, toda a nota belisca seu coração. Proscrito e escrito o tal dito no ditame infame do versículo maldito. No palco que aplaca a falta da falácia que deixa a barganha buscar a felicidade na tonalidade melhor para o bálsamo que se refaz a cada doce beijo doado e doído nos lábios que nunca mais se verá nos versos. Quiçá, novos amores se descobrirão. E cada vida se verá na transgressão da iluminada realização.
-- Escrever mais, por quê?
-- Sei lá! Talvez porque na geladeira ainda há algumas latas a beber.
-- Ou talvez dependa apenas daquilo que você queira falar e dizer.
-- Pode ser...
No palco nostálgico, que já está difícil descrever ou prever nas pernas da mulher que se alisa a cada estrada que poderá chegar, a sina. Tudo como uma metonímia, seja lá o que isso quiser ser. Ao resto, talvez um saravá. Mistura de letras, sílabas e palavras, frases desanuviadas, desvairadas, declamadas por um bêbado qualquer. Na fé, façamos a tragédia que a comédia emerge nas águas lavadas. Catatônicas, afônicas, tragicômicas, atônitas, as deixemos tornar desejo em louvor.
 
II
 
Singularidade na verdade ou na maldade? Onde estará a saudade que pede para descer? Sobe ou desce cadeiras, transversal e icônica letalidade sobrenatural. Por isso, nesse aqui e agora que ninguém lerá, as fratricidas paixões e caixas de ódio que nunca irão perdoar

terça-feira, 8 de julho de 2025

Uma croniqueta feliz, pra variar

  Por Ronaldo Faria


No brilho do mar que a todos nos damos e se dá sob a luz da claridade ou de uma rã, como diria o poeta das notas, Donato, vai o casal acasalado de há pouco e, como todo amor afoito, louco para se recriar no coito. Seus corpos, avermelhados do sol amarelo, brilhantes nos grãos que a areia permeia e dá sem cobrar um tostão, se espalham e se espelham entre os fortuitos olhares daqueles que queriam estar ali naquele lugar. E continuam voláteis a caminhar e flanar no asfalto de 50 graus à sombra. Logo irão se aninhar em dois num só, sem dó. Se amarão, se agarrarão, irão se dispor à felicidade de dar e receber, crer e encher de beijos os queijos que serão servidos e sorvidos a cada novo café da manhã. Farão promessas mil, catarão espigas de milhos perdidas em plantações de girassóis. No após? Não querem nem saber. Como diria o profeta: “Que o futuro vá se foder!” Com João Donato, neste ato curto e prático, a prática de querer (ao menos nos teclados) ser feliz...

(Ao João Donato)

domingo, 6 de julho de 2025

Uma hora de jazz com todo mundo *

Por Edmilson Siqueira



Já escrevi aqui alguns artigos sobre os discos da coleção "A Jazz Hour Special", da qual tenho a maioria. Infelizmente não consegui completá-la, mas os 24 títulos que tenho dela são um ótimo resumo de tudo de bom que o jazz produziu desde priscas eras até os anos 70 do século passado.  
E hoje me dedico a mais um da coleção, desta vez um disco que não se resume a cerca de uma hora de um artista e suas geniais criações. Esse é especial, aliás, traz um "Special" no título, pois abrange nada menos que 15 diferentes nomes - de trios a orquestras ou mesmo solos de cantores - que reviraram os estilos jazzísticos e provocaram - e ainda provocam - prazer ao ouvinte. 
 O encarte do CD explica: "Uma hora especial de jazz traz a você músicos de jazz excepcionais, altamente representativos de toda a série Jazz Hour. Embora cada um dos artistas seja completamente único e original, eles têm pelo menos duas coisas em comum: swing genuíno e alta qualidade. É mais provável que eles consigam satisfazer o ouvinte crítico, que anseia apenas pelo melhor que a música pode oferecer: criatividade, originalidade, imaginação e perfeição, mas também alcançarão o amante da música em geral, que busca entretenimento com apresentação agradável. 
 Certamente, os ouvintes já familiarizados com a série Jazz Hour ficarão confortavelmente surpresos, pois este CD reúne vários favoritos essenciais do jazz em um pacote encantador. Mas também os novos ouvintes terão uma introdução atraente: uma ampla gama de estilos de jazz e excelentes artistas são apresentados como um panorama perfeito da série Jazz Hour. Além disso, este disco especial contém um resumo sutil da história do jazz até os anos 70, que pode ser apreciado por qualquer fã de música." 
 Logo de início, chama atenção a diversidade estilística que permeia o disco. O ouvinte é conduzido por uma jornada que passa pelo swing, pelo bebop, pelo cool jazz e até pelos primeiros passos do hard bop. Cada faixa serve como uma pequena janela para um universo sonoro distinto, refletindo não apenas as transformações musicais do gênero, mas também os contextos culturais e sociais que influenciaram os músicos ao longo das décadas. 


Entre os destaques está a presença de nomes como Louis Armstrong, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis, Billie Holiday, entre outros gigantes do jazz. Suas performances, ainda que muitas vezes captadas ao vivo ou em registros de estúdio com recursos limitados para os padrões atuais, mostram autenticidade e vigor. Parker e Gillespie, por exemplo, aparecem em uma típica sessão de bebop, cheia de energia, síncope e virtuosismo.  
 Na outra ponta do espectro, Billie Holiday traz a introspecção e a emoção crua de sua voz inconfundível. Suas interpretações revelam não apenas seu talento musical, mas também a dor e a resistência que marcaram sua trajetória. A Jazz Hour Special também é relevante por mostrar como o fraseado de Miles Davis evolui com o tempo e como a harmonia se torna mais ousada com Monk. O passeio pelo jazz no disco vai de uma gravação de 1939 até outra de 1973: 

1- Louis Armstrong - "Perdido Street Blues", de Armstrong e Hardin (New York, 1943) 
2- Fats Waller - "I'm Gonna Sit Right Down And Write Myself A Letter", de Young e Albert (New York, 1939) 
3 - Lionel Hampton - "Jivin' With Jarvis", de Hampton (Hollywood, 1940) 
4 - Count Basie Oechestra - "Coutin' The Blues", de Basie (1959) 
5 - Billie Holiday - "Time On My Hands", de Youmans (New York, 1940) 
6 - Benny Goodman Quartet - "All The Thing", de Kern e Hammerstein (Los Angeles, 1958) 
7 - Duke Ellington Orchestra - "A Portrait Of Bert Williams", de Elington (Chicago, 1940) 
8 - Ben Webster Quartet - "Londonderry Air", de Webster (Copenhagen, 1965) 
9 - Woody Herman Orchestra - "The Preacher", de Silver (1957) 
10 - Ramsey Lewis - "Wade In The Water", de Lewis (Chicago, 1966)  
11 - Barney Kessel Trio - "Old Devil Moon", de Harburg e Lane (Montreux, 1973) 
12 - Stan Kenton Orchestra - "Tenderly", de Garner (1961) 
13 - Thelonious Monk - " Round Midnight", de Monk (1962) 
14 - Art Blakey Quintet - "Transfiguration", de Blakey (Minneapolis, 1957) 
15 - Charles Mingus - "Body And Soul", de Heyman e Green (1962). 

O disco pode ser encontrado nos bons sites do ramo. Não encontrei a gravação na rede. 

*Parte da pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Indagações táteis e fúteis

 Por Ronaldo Faria

O que fazer ou refazer no extinto e retinto prazer? Que diásporas e fugas criar? Entre perdidos e achados, autoproclamados suburbanos derreados, como reaver a vida nas longínquas estradas de ser ou não ser? Nos provérbios que os verbos dão, desvão e raros versos.



Cassimiro, irmão de Belmiro e Estevão, primo de Lupercínio e Clemente (para muitos o mais débil demente da família), descobrira que algo existia como empecilho com seu amor por Emília. Não era possível tantos desastres e contratempos para perder o corpo entrelaçado ao outro corpo como lufada de vento. Quedas, cabedais, castiçais partidos, passos mal dados, contradanças, males mentais e elementais em contratempos distintos. Indistintos, díspares e diversos climatérios a se untarem de despautérios e impropérios que nem o mais imperial imperador saberia em papel assinar. Para Cassimiro, qualquer espirro parecia maremoto no Mar Morto – impávido em colosso, no osso.
No passado próximo, entre o ócio e o pior beócio como mentor, o homem, na verdade eterno menino que teima em não crescer e ver o mundo como ele é, viaja feito subalterno nos porões do lisérgico barco sem rumo ou lugar a chegar. A se largar, num lagar etéreo e heterogêneo, homônimo do mais heteronômico ser, se lambuza de si mesmo na luta de cinco contra um. É apenas alguém a sorver pernas e penugens púberes num perrengue lunar. Bêbado de poucos goles, parcimônia de si, hecatombe à espera de se contemplar e se completar, locupletar. Para o futuro, esse fortuito clamor da dor, pouco saberá. Cassimiro é mistério e etéreo ser.
Na efeméride que o proselitismo dá, viaja voraz e incendiário no diário quaternário que somente os loucos e trôpegos sabem trazer e ler, entreolhar, no tardar. É um a mais nos tantos bilhões que caminham em descaminhos nas trilhas que a jusante da maré dá. Ao Deus, algo se fará. A perder chinelos, foder em sonhos famélicos de amor, derrear em qualquer lugar, sorver banquetes inebriantes e roer ossos de pés de galinhas mortas e pútridas, Cassimiro voa feito andorinha de uma asa só. Refeito e contumaz prisioneiro de seu passado sem cor, pintado numa aquarela que não pega pincel ou hidrocória disseminação, ele apenas refaz nas suas nuas cenas as penas que não cobrem seu corpo torto e roto. Quando com penas coladas com cera chegar perto do Sol, cairá feito mitologia num imenso e inequívoco mar. Se afogará de felicidade ou maldade e, por fim feliz, viverá a marejar.

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...