terça-feira, 10 de setembro de 2024

Trânsito a transitar

 Por Ronaldo Faria

 

-- Tá pensando que o vento é fresco, malandragem? O vento é foda!
Clemêncio, demente e clemente da realidade, transitava entre os tantos e tântricos carros no trânsito da cidade que fervilhava e afunilava no túnel que juntava zonas e lugares a chegar. Ser só, solidário na sua dor, apropriado para estudos psiquiátricos, ia na fuga de camisas de força e flores mortas graças a fungicidas. Era um ser a mais, desses que a gente esbarra na orla ou nas comunidades do dia. Nem melhor ou pior. Apenas um a mais na mais premente sangria.
Clemêncio, inclemente profeta do mundo, proxeneta de sua solidão, há muito morava numa ou noutra marquise, dessas que ao menos escondem os corpos da chuva que teima chegar. Mas tinha suas vantagens: nada de imposto de inexistente renda, celular a consumir horas de vida, obrigações que surgem com um CPF qualquer. Ele era apenas ele. Sem pena de ninguém sequer precisava entrar em igrejas para orar em alto amém. Deus dele nem sabia crer.
Clemêncio, desses seres que cruzamos encruados no universo onde poesia e verso não têm vez, era somente número social. “O próximo prefeito deles irá lembrar”, dizia Carolina, carola e filha de Maria. Assim, no escuro obscuro que meia dúzia de postes traz, ele desaparecia. Sua azia diária e bêbada sequer tinha sal de fruta. Na estrada de quem se atrasa do mundo, ele somente acreditava, em mente, que seu futuro soturno um dia seria sem luto.
 
(Ainda ao novo frescor da MPB)

domingo, 8 de setembro de 2024

Ella e Louis

 Por Edmilson Siqueira



"Ella e Louis. Sobrenomes não são necessários e nenhuma explicação é necessária para saber que esse era um encontro musical feito no paraíso do jazz."   
Assim começa um pequeno texto de apresentação do disco "Ella And Louis Again". E pelo "again" do título, já se deduz que esse não foi o primeiro encontro dos dois geniais intérpretes. Esse foi gravado em 1957, um ano depois do primeiro e já então clássico "Ella & Louis" e, diz o texto, "é uma triunfante reunião - o nível de arte altíssimo, uma portentosa mágica". Como se tudo isso não bastasse, eles são acompanhados por nada menos que o trio de Oscar Peterson. 
São três discos (o segundo é duplo) essenciais para quem aprecia jazz tanto vocal quanto instrumental, afinal os dois artistas marcaram o século passado como os melhores em suas artes, deixando um legado insuperável de emoção e beleza.  
Ambos os CDs, da Verve, a maior gravadora de jazz dos Estados Unidos, são totalmente fiéis aos discos de vinil originais, com encartes substituindo os longos textos das contracapas dos LPs, onde havia espaço de sobra.  
Um dos textos, de Norman Granz, já começa dizendo que "não há muito que alguém possa dizer sobre um álbum cujo título é 'Ella and Louis Again'. (...) Eu duvido que haja alguém hoje que ame música, e que não conheça Ella Fitzgerald e Louis Armstrong". Sobre o que pode assinalado, eu suponho, é que nós temos novamente alguns dos melhores produtos dos melhores compositores da nossa época." 
Outro trecho do famoso crítico musical: "Eu não quero recomendar nenhuma das faixas para você, porque cada música, do seu jeito, é tão boa quanto as outras; mas há uma que eu gosto de comentar." E ele explica que na faixa sete do disco  2, "Stompin' at the Savoy", Ella e Louis deixam, a partir de um determinado momento, a letra oficial de lado e passam a improvisar, deixando transparecer que estavam realmente se divertindo ao inventar versos sobre o famoso tema.  Sobre essa música, a Wikipedia informa que, embora ela seja creditada a Benny Goodman, Edgard Sampson, Chic Web e And Razaf (como está no CD, aliás), ela foi escrita e arranjada por Sampson e a letra foi colocada depois por Razaf. 
O primeiro disco de Ella e Louis se tornou antológico em pouco tempo. Além do conteúdo musical, está nele uma foto, hoje icônica, dos dois artistas sentados em cadeiras, talvez descansando entre uma sessão e outra ou esperando o estúdio abrir, que revela a simplicidades dos gêniios. É uma das fotos que acompanha esse post.  
Todas as músicas já eram mais ou menos conhecidas quando foram gravadas por Ella e Louis. Depois da gravação, então, alcançaram a marca definitiva.   
A trilha sonora se abre com os dois cantando "Can't We Be Friends?" (Kay Swift e Paul James), primeiro Ella e depois Louis. A qualidade da faixa, acompanhada por um piano mais que seguro, um baixo bem ritmado e uma bateria discreta, tem ainda o trompete de Louis enfeitando o arranjo. 
O show continua com "Isn't This a Lovely Day? (Irving Berlin), uma lenta canção que exige de Louis uma interpretação pensada, ele que está acostumado a canções mais movimentadas. Já Ella dá à música qualidade que poucos sabiam que ali havia.  



A mais que clássica "Moonlight In Vermont" (Kart Suessdorf e John Blackburn) é a faixa seguinte e a qualidade de interpretação se repete. À época, os críticos não encontravam palavras suficientes para elogiar o resultado da união dos dois geniais artistas. E fica difícil mesmo. Não há faixa "mais ou menos". 
Por isso, vou apenas nominá-las aqui, já que todo e qualquer elogio é mais que merecido e temo ficar repetitivo a cada faixa. 
O disco segue com "They Can't Take That Way From Me" (George e Ira Gershwin); "Under a Banket of Blue" (Jerry Livingston, Al J. Neiburg e Marty Symes); Tenderly (Walter Gross e Jack Lawrence); "A Foggy Day" (George e Ira Gershwin); "Star Fell on Alabama" (Frank Perkins e Mitchel Parish); "Cheek to Cheek" (Irving Berlin); "The Nearness of You" (Hoagy Carmichael e Ned Washington) e "April in Paris" (Vermon Duke e E. Y. Harburg).  
O segundo disco foi duplo, aquele "Ella And Louis Agains" do início do artigo, sem necessidade do sobrenome para reconhecer de quem se trata. A única diferença é que agora o quarteto do de Oscar Peterson, além de Herb Ellis no violão e Ray Brown no baixo, tinha Louie Bellson na bateria. No primeiro disco, o baterista foi Buddy Rich. E, claro, Louis Armstrong em quase todas as faixas com seu divino trompete. 
E para não cair no lugar-comum dos elogios de sempre, vou logo listando as músicas para que, quem não ouviu ainda e conhece um pouco de jazz, imagine o que temos de maravilhas musicais e corra log a um site de vendas de CDs e compre os dois - o simples e o duplo - de uma vez só.  
As faixas do primeiro CD do segundo disco: 
- Don't Be That Way (Benny Goodman, Edgar Sampson e Mitchel Parish) 
- Makin' Whoopie (Walter Donaldson e Gus Khan) 
- They All Laughed (George e Ira Gershwin) 
- Comes Love (Sam Stept, Lew Brown e Charles Tobias) 
- Autumn in New York (Veron Duke) 
- Let's Do It [Let's Fall in Love] (Cole Poter) 
- Stompin' at the Savoy (Benny Goodman, Edgar Sampson, Chic Webb e Andy Razaf) 
- I Won't Dance (Jerome Kern, Dorothy Fields, Oscar Hammerstein II - Otto Harbach e Jimmy McHugh) 
- Geme, Baby, Ain't I Good to You? (Don Redman e Andy Razaf) 



 Segundo CD: 
- Let's Call the Whole Thing Off (George e Ira Gershwin) 
- These Foolish Things [Remind Me of You] (Harry Link, Jack Strachey e Hilt Narvell) 
- I've Got My Love to Keep Me Warm (Irving Berlin) 
- Willow Weep for Me (Ann Ronell) 
- I'm Putting All My Eggs in One Basket ((Irving Berlin) 
- A Fine Romance (Jerome Kern e Dorothy Fields) 
- Ill Wind (Harold Arlen e Ted Koehler) 
- Love Is Here to Stay (George e Ira Gershwin) 
- I Get a Kick Out of You (Cole Porter) 
- Learnin' the Blues (Dolores Silvers) 
Os dois discos, o simples e o duplo, estão à venda nos bons sites do ramo.
O primeiro disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=Vh7oIP-QSHs&list=PLL-NbN8uTOijqTJxQ9BMFcDe7UiWDMVwc
O YouTube também disponibiliza o segundo: https://www.youtube.com/watch?v=dtLerPwneMw&list=PLC-4c-dTv6N2o_QYwb9yVPWh2qHxNdsYm

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A mosca moscando

 Por Ronaldo Faria


A mosca se enche de vitamina D, mesmo que não precise precisar. Decerto, ela não liga se irá torrar. Se o sol pode queimar, certamente também poderá refrescar a cada batida de asa. Na fome de afugentar a fome que deve estar a lhe cobrar, díptero braquícero doméstico que ela é não liga em ser foco da lente. “Já sou foco de coisa bem pior, otário”, deverá ter pensado daquele que a eterniza.
Na mesa ao lado, Florisvaldo, amigo de Datolfo Cataldo, florista a que tantos amores quase perdidos deu um jeito, espera Anastácia, a falácia amorosa de sua ignóbil vida. “Está cedo ainda. Ela chegará” – pensava sem ressalvas. A ver a mosca moscando a moscar, fácil de se matar, ele apenas ouvia o som redundante que vinha das caixas de som que a vida é bela e que nós e que estragávamos ela.
Num mantra próprio e exótico, quase erótico, a mosca passeia sobre a cor de abóbora. Quantos restos de comida e tantos odores não existirão lá? Ali era o seu lugar. Ao lado, quase no lodo, Florisvaldo sentia certa inveja do inseto que curtia em volta todo o ar. E Anastácia, essa história romântica quase dramática, mistura de amor e física quântica, que fim levou? O tédio impiedoso veio chegar.
Ele, senhor de derrotar milhares de moinhos em seus ventos mil, sem nenhum ancho amigo que se chamasse Pancho, só sabia que teria de esperar. A vida, enquanto corre nas veias, não há como parar. Se atirar ao mar e nas ondas se afogar para depois virar manchete de jornal popular? Nunca. Seu amor iria desaparecer e nas páginas de uma história sua, escrita na memória do tempo não poderia falar.
De repente, assustada por algum vento irregular ou saciada em sua maneira de se alimentar, a mosca decide ir para outro lagar. Tempero novo pode nova saciez deleitar. E Florisvaldo ficou só. Solitário e contemplativo, motivo de riso. Anastácia, asmática, decerto teve uma crise e por isso se ausentou. Melhor que assim tenha sido e seja. No mar que arrebenta ali, a areia briga com as ondas como Muhammad Ali.
 
(Novamente tendo aos ouvidos e mentes os novos da MPB. Deus lhes dê vida eterna)

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Manhã de Marisa

 Por Ronaldo Faria


Marisa acorda na manhã que descortina na cortina púrpura que esconde os raios de sol no seu quarto e sala. Manhã de artimanhas mil e manhas que certamente verterão do chão. Algumas serão vorazes ilusões e outras tantas coisas simples ilusão. Talvez uma lágrima aqui, um sorriso ali, ao fim de tudo o murmúrio que desagua na resenha. Mas se o tema é nostalgia, haverá uma rã a virar jia. A solaridade ressurgirá em orgia.
Marisa levanta e lava o rosto, tira o bafo da boca em espumas e a escova de dentes, banha seu corpo nu e cheio de maravilhas, prepara o rolê pra se acabar na academia que diz ser fitness. O sol, esse ser indecente que chega pra queimar meio mundo e destruir mil lenços de papel em suores mil, já deturpa a temperatura que a pessoa atura enquanto durar. Na estação do etéreo rádio, gente nova mostra que a música sobrevive.
Marisa bate a porta e fecha com a chave a penetrar a fechadura virgem de antídotos o seu lar. O elevador se eleva e depois desce para o asfalto sete andares abaixo. No portão, a senhora de andador dá bom dia e suplica que nas próximas horas não sinta dor. Até a academia serão 738 passos, contados e recontados. Três paradas nas esquinas. Talvez um transeunte mais afoito dirá que ela é gostosa demais para tanto fluído.
Marisa malha e se pesa, sua e retoca a maquiagem no banheiro. Sai do prédio onde várias dezenas de corpos incorporam o desejo do desejo chegar e vai de volta ao apartamento. Lá, sem lamento, põe o biquíni, a canga e se atira para a praia. Serão 1.047 passos. Na escultura que é à cultura da beleza plena, vê que olhos libidinosos a comem sem pedir permissão. Com os pés na areia que torra plantas, é a mais nova sereia.
Marisa se deita de costas. O sol pede algumas nuvens para detê-lo de queimar além do bronzeado formal o corpo estonteante que se faz poesia e melodia informal. Mais iguais houvesse, versos e canções explodiriam nos ouvidos da bela para conquistá-la. Ao longe, na longitudinal esquina que esconde o bem ou o mal, a vida se declara feliz por fazer parte da cena. No carrinho de sorvete, o Chicabon se derrete mortal.
 
(Aos tantos bons da MPB que surgem no dia a dia)


terça-feira, 3 de setembro de 2024

Seal

 Por Edmilson Siqueira

 

Aos 61 anos, o cantor e compositor Seal não precisa provar mais nada. Inglês, nigeriano e brasileiro (o quê?), ele já lançou 13 álbuns, ganhou vários Grammys, chegou ao topo de paradas da Inglaterra e dos EUA e ganhou muitos outros prêmios tanto como compositor como quanto cantor. Aliás, nesse último quesito, ele segue a linha dos grandes cantores ingleses e norte-americanos. 
Mas, se não precisa provar nada, não foi fácil chegar aonde chegou. Foi criado por um padrasto e uma madrasta até os quatro anos. Voltou para a mãe aos prantos, acabou indo para o pai (separado da mãe), que era violento. O pai é que provocou o "brasileiro" na biografia dele - Francis Samuel, de quem nada se sabe nos Googles da vida. 
Seal nasceu em Londres, acho que nunca conheceu o Brasil e sua música não tem nada a ver com a nossa, o que não impede de ser muito boa.
Ouvi várias interpretações dele na internet, todas muito convincentes e tenho o último CD que ele gravou, em 2018, que se chama Standards. Gravar clássicos do jazz e do pop não é pra qualquer um. É aquele tipo de disco em que o cantor, ciente do seu talento e sucesso, pega grandes hits norte-americanos e ingleses, principalmente do jazz, e faz um disco que, obviamente, vai ser comparado com os discos de "standards" de outros grandes cantores. E Seal não fica devendo nada a ninguém, pois é ótimo cantor. 
Seal conseguiu a atenção inicial do público com a canção Killer, de Adamski, em 1990. O single chegou ao número um das paradas no Reino Unido. Em seguida, Seal foi contratado pela gravadora ZTT Records e lançou seu álbum (Seal) de estreia, produzido por Trevor Horn, em 1991. Depois desse lançamento, todos os seus outros discos tiveram grandes produções e alcançaram expressiva venda. 
"Standards" tem onze faixas e não dá pra dizer que esta é melhor que aquela, pois ele interpreta bem todas elas e todas são sobejamente conhecidas. 



1 - Luck Be A Lady (Frank Loesser) abre o álbum e é uma boa mostra do que virá a seguir. Grande arranjo orquestral e Seal completamente à vontade, sem buscar novidades na interpretação, mas seguindo o ótimo ritmo da música.
2 - Autumn Leaves (Joseph Kosma, Johnny Mercer, Goeffrey, Parsons e Jacques Prévert) é mais que um clássico, pois alcançou sucesso mundial em várias línguas, inclusive português, sendo tocada por inúmeros e grandes jazzistas. Seal vai na linha romântica, com muitos violinos, dando a dimensão da grandiosidade sonora que a música proporciona.
3 - I Put A Spell On You (Joy Hawkins) era, para mim, uma música pop, gravada por um conjunto de rock nos anos 1960. Depois de ouvir muita gente cantando, descobri que se tratava de mais um clássico. Com agudos certos na hora certa e um trompete fazendo solos, Seal dá o tom pop exato à faixa, que conta também com background vocal de três cantoras.
4 - They Can't Take That Way From Me (George e Ira Gershwin) tem gravações soberbas na discografia norte-americana, como Frank Sinatra e Tonny Bennett entre muitos outros. Seal parece não se abalar com isso, dando à famosa canção sua interpretação e deixando-a agradável como sempre.
5 - Anyone Who Knows What Love Is (Arbuckle, Newman, Seely e Sheenan) é uma canção meio épica, também já bastante gravada que aqui conta também um background vocal muito bem colocado, dando uma base sólida para Seal mostrar suas qualidades. 
6 - Love For Sale (Cole Porter). Talvez nessa faixa resida um pouco do sangue brasileiro que corre nas veias de Seal, já que a música de Cole Porter pode ser interpretada quase como bossa nova, num compasso meio sambinha. 
7 - My Funny Valentine (Lorenz Hart e Richard Rodgers) é outra música que ultrapassa os conceitos de sucesso. Gravada por quase todo mundo do jazz, a música ganhou também interpretações e cantores e cantoras nas mais variadas línguas. Seal lhe presta a sobriedade de praxe dos grandes cantores.
8 - I've Got You Under My Skin (Cole Porter) - O que dizer desse outro clássico de Cole Porter? Seal lhe presta a devida reverência, cantando como a música foi concebida, alcançando ótima performance.
9 - Smile (Charles Chaplin, Geoffrey Parsons e John Turner) - O grande sucesso do criador de Carlitos, que até hoje ganha novas interpretações, é encarado por Seal com a sobriedade que merece. Um arranjo simples que destaca a voz do cantor caiu muito bem para a música.
10 - I"m Begginning To See The Light (Duke Ellington e Jonhy Hadges) traz o ritmo marcante do jazz com a preciosa colaboração no backing vocal do excelente grupo The Pupini Sisters.  
11- It Was A Very Good Year (Erwin Drake) fecha o disco e não é, como todas as outras, um standard dos mais conhecidos. Um arranjo lento e uma melodia um tanto quanto difícil de ser interpretada. Mas Seal dá conta do recado.
E mais uma boa notícia: no YouTube está disponibilizado o disco inteiro na versão "DeLuxe", o que significa mais três faixas que não constam do meu CD. Sorte sua. O endereço é https://www.youtube.com/watch?v=PyzKgBI535M&list=OLAK5uy_lX6sHaf6YaJDt-DwB8PTEm0bsf8gyGx2Q&index=2

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Bosco e Aldir

 Por Ronaldo Faria

 


Era para parar, mas com João Bosco e Aldir Blanc, como fazê-lo?

Dois pra lá, dois pra cá. Era assim que Bia e Ariovaldo vagavam no salão. Tudo bem que, às vezes, eram alguns pra cá e tantos mil pra lá. Mas quem há de cobrar? Quem, em insana inconsciência, não virou malabarista ou dançarino num circo da vida? Nesses dias que a gente crê ser dono da própria vida e contar consigo para seguir até o fim. Enfim, quem nunca não acreditou que tudo não morre aqui? Do outro lado da rua o rabecão pega o corpo de um homem crespo que acreditava que atravessar a rua sem olhar era normal a se fazer e criar.
Quatro pra cá e dez por lá. A bater noutros casais e ao menos ter a compostura de pedir desculpas, Bia e Ariovaldo dançavam em garranchos de reviravoltas e voltas tresloucadas que nem a banda de tantos anos de bailes conseguia seguir. “Onde será que esses malucos aprenderam a dançar?” – se pergunta o maestro sem saber como acompanhar a dupla que beijava-se na boca.
Dez pra lá, saber-se-ia contar ou descontar quantos pra cá (onde é o tal cá?). O dia já está brincando e brigando com o tempo pra tentar se achegar e chegar. No freezer, outra lata tenta ficar gelada o bastante às loucuras inglórias que surgem no dedilhar. “Por isso você não para! Não basta o que já se fez parar?” Sem respostas, o aprendiz de poeta defeca letras, sílabas, parágrafos, pseudo estrofes e versos. Um italiano dirá que é vero. A brincar de palácios fálicos que surgirão nos seus pesadelos e os desmazelos de acordar várias vezes na noite brejeira, Ariovaldo chama Bia para brincar de quem pensa um dia ser papai e mamãe. Na estação do rádio, diria o poeta, o locutor viu um cisco no olho entrar logo no momento que o único craque do jogo faria um gol de placa. No pasto perto, uma vaca comia, tranquila, sua alfafa.

sábado, 31 de agosto de 2024

Com o Rappa e seus holofotes, Chico Science

 Por Ronaldo Faria


Hostes haverão de descer pelos paralelepípedos e subir as ladeiras de Olinda. Nos arrecifes da vida que brinda com sons, odores e flores a manhã que virá, o tempo que a si mesmo arrefecerá. A turba invadirá a imaginação geral e chegará para se largar. Dançará enlouquecida com a maresia que se joga na dança tresloucada e irá descobrir que a rima não depende do versejar. Que sai das entranhas por mais estranhas que elas possam ser. E surge, urge, se atira menina e voa mulher para a entrega que floreia a mais pura ou impura cercania que a emoção do outro faz. O olhar diferente é que descobre o quadro disperso em fotogramas que invadem o sorriso e o drama. No meio de tudo, a trama. E terá sido real, ungida de paixões remidas ou pecadora do apenas querer? Das hostes que descerão de um alto tão baixo que poderíamos antever se fôssemos senhores de nossas vidas, uma estrada escancarada para viver...
 
Jozelieltom, morador daquilo que era palafita, lama ou caos, caminhava nas ruas da capital e entreolhava as pessoas que o olhavam com medo de ver a realidade do mundo estremecido.
-- De onde terá surgido tal ser? – perguntava-se a mulher com brincos, pulseira e colar coloridos de ouro a brilhar no sol escaldante.
Vindo do mangue, Jozelieltom seguia sua barriga vazia, onde nem azia sabia parar e chegar, para ver se eles conseguiam um aratu qualquer. A mulher cheia de joias, seus olhos sequer viram. A fome pesa mais do que meia dúzia de milhares de dólares. E o que é um dólar? Significado da dor de um lar ou algo que se diz que existe para cobrar cada sonho esquecido em chiste?
A andar meio liquefeito e rarefeito, ser lunar, Jozelieltom  subia e descia ladeiras. Suava a bicas e cântaros. Entoava canções que celestiais anjos decaídos criariam músicas em sol sustenido para as mais desnudas mulheres do lugar reverenciar. Afinal, acima da beleza feminina há algo mais para saudar? Certamente, em mente, não há. Ao redor, a cidade brilha em letreiros picantes e piscantes, terreiros largados em orações e unções de quem busca a eternidade, voláteis e táteis féretros que surgem a cada instante. Para ver Jozelieltom, pouco há. Talvez um guarda que quer descontar suas angústias bestiais num ser qualquer, um infausto ser que teme a própria sombra, um poeta enlouquecido de fumaça da boa ou cachaça. Ao fim de tudo, mudo, ele se atira ao seu mundo e pensa porque, ao invés de Jozelieltom não se chamou apenas Raimundo.


quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Lembranças... ao som do passado.

 Por Ronaldo Faria


Lembranças anchas feitas em mil ancas, trovoadas em trovas desvirginadas nas nuvens tantas. De tempos atrás, onde se discutia se a carta ia atrasar ou chegar. Se a ficha cairia antes da chamada completar. Se o ônibus, que dormia cedo, só iria passar quando a madrugada reluzisse de fato. Perdeu o último, o banco da praça era o lugar.
Lembranças tantas em tetas que invadem até hoje uma boca com gosto de gim e pinga. Mulheres alhures que dobram seus cabos em boas e raras esperanças, no corpo do poeta que sente dores e revê em odores lajeiros que afloram em rochas. Nas músicas e madrugadas, poesia revivida e afinidades que remetem a mil e um tantos lugares.
Lembranças de bares noturnos onde notívagos taciturnos se largavam para a vida levar entre copos de cerveja, doses e, quiçá, uma cópula com o amor a se viver. Trejeitos refeitos de toques emblemáticos, vozes vorazes a digladiar a tênue divisão entre a vida e a morte. Mas, nalgum lugar obuses mataram a fragrância que a madrugada louca exalava.
Lembranças de um acordar no escuro e clarear entre dentes e línguas a mais dormente e profunda paixão que a rotunda de um teatro nunca fez drama ou comédia, na mais comedida e desmedida incerteza da felicidade. E viajar em reentrâncias, distâncias, nuances e sons que ficaram, cenas que se eternizaram, volúpias à mostra do que foi e eternizará.
 
Lembranças, tantas
Catanças e dramas
Palavras, poesias atadas
Larvas besuntadas
Futuras dores tragadas
Nelas mesmas, nada
Talvez a chama que arde
Uma amarga saudade...

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Nos tempos detrás

 Por Ronaldo Faria


No fundo do salão de uma corte qualquer, a salpicar de salamaleques e solidões, sob uma luz tênue das velas que embriagam de cheiro o lugar, Candelária e Baltazar se beijam sem parar. Uma orquestra madrigal pífia e lunar toca notas dissonantes ao amor de ambos que vicejam passos a rodear à espera de se deitar.
Como as línguas quentes que se uniam seculares em línguas de décadas várias atrás se tocavam? Eram as que adentram a garganta a lamber todo o céu da boca alheia que se floreia aberta ou ficarão apenas na chegada dos primeiros dentes? Como Candelária e Baltazar viviam seu amor em descompasso e torpor?
Na estapafúrdia lamúria de quem por sinal se deixa achar na invejosa balbúrdia que a cabeça dá, a imperiosa crença de que taças de vinho trarão o sinal final da corpórea comunhão. No salão, olhos se entreolham, desejos incorporam e o universo conspira nos corpos que transpiram sob vestes que não param de suar.
Como serão os momentos voláteis e fátuos que, de fato, se farão? Roupas serão rasgadas, perucas serão jogadas ao chão, pedidos de “por favor tenha calma” antecederão o estupor? A penetrar corpo tão desejado, o amante gozará antes da dama ou irá, respeitosamente, ouvir seu grito de tão desejo chegado e refeito?
Candelária e Baltazar agora se negam a pensar ou relutar àquilo que os consome a ultimar. Deitados na grama que serve de cama, dão à primazia da vida seu amor que da carne fez-se real. Logo mais, num tempo em que o relógio inexistia, o sol voltará. Entregues, sem vestes, os raios primeiros virão os corpos lhes abençoar.
Para onde, após o coito afoito, partirão? O salão ainda tem um ou outro casal a dançar na melodia tardia do menestrel que não sabe mais diferenciar acorde de fel? Dirão aos seus pares de verdade que foram abduzidos por goles de vinho a mais? Ou serão, alhures, só personagens de taças numa noite efêmera que se faz?
 
(Ao som barroco de sua música)

domingo, 25 de agosto de 2024

Música pra viagem

 Por Edmilson Siqueira

 
Tem música pra tudo. Há uns dez anos, ou mais, ganhamos de presente um CD de uma amiga da Zezé que morava em Santa Barbara (assim mesmo, sem acento, porque fica na Califórnia). Ela veio visitar a família por aqui e deu uma passada em casa, para rever a amiga e entregar a "lembrancinha".
O CD é uma coletânea pop om algumas pretensões de rock: "Song for the Open Road". "Música pra viagem" numa tradução livre. Claro que a capa sugere um carrão conversível com uma loirinha de cabelos esvoaçantes e ainda há fotos internas de uma velha bomba de gasolina meio enferrujada, um pedaço do mapa do centro dos EUA e, na contracapa, a foto de um asfalto que se perde no infinito, tudo sugerindo the long way from home.
O CD é de 2004 e acho que não foi lançado por aqui, pois só encontrei o importado na internet. Mas é barato.
O detalhe mis importante disso tudo é que a seleção é muito boa. Claro que são músicas que já fizeram sucesso em tempos mais ou menos recentes e, a gosto de programador, podem servir de fundo musical, um bom fundo musical, claro, para encarar uma estrada sem fim, tipo Rota 66, lá nos States, ou uma BR 101 por aqui, que vai de Recife a Porto Alegre.
Evidentemente só o CD não dá nem pro começo da viagem. Mas o tipo de música nele inserido ajuda a sugerir outras mais ou menos parecidas para o tempo passar de modo agradável enquanto os pneus comem o asfalto infinito.
A seleção abre com "Brown Eyed Girl", do grande Von Morrison. É rock, sem dúvida, que fala da saudade de uma garota de olhos castanhos, of course, e que ajuda a enfrentar os primeiros quilômetros.  
A segunda faixa é de uma banda chamada Stealers Wheel. O Google me informa que foi uma banda escocesa de folk rock/rock formada em 1972 em Paisley, Escócia, pelos ex-colegas de escola Joe Egan e Gerry Rafferty. Seu hit mais conhecido é "Stuck in the Middle with You". Pois é exatamente essa música que foi escolhida para a viagem. Um roquinho gostoso de ouvir.
A terceira faixa é para quem já estava querendo um hit para melhorar a paisagem. Eis que entra Elton John com seu piano travestido de "Rocket Man". O refrão, que começa com "And I think it's gonna be a long, long, time..." ajuda a lembrar quanto asfalto ainda resta e, quem sabe, animar ao cantar a gostosa melodia que Elton sempre soube tirar de suas inspirações mais variadas. 
Depois de escoceses e um inglês, um rock que louva Alabama serve para voltar ao chão da Route 66. Trata-se de Lynyurd Skynyrd cantando "Sweet Home Alabama". Eu posso não conhecer a banda, mas são bons, a música é boa e eles já venderam mais de 50 milhões de discos. Um desastre de avião desfez a banda em 1977, mas outros músicos se juntaram aos que sobraram e, em 1987, voltaram com tudo. Tanto que estão até no Hall da Fama do Rock And Roll. 


A faixa seguinte viaja para o Canadá para trazer a Bachman-Turner Overdrive, com um de seus hits, "Take Care of Business". Mas a banda tem muitos sucessos e chegou até a primeiros lugares nas paradas dos EUA e do Canadá. A música é um dos seus hits e, garanto, é boa de seu ouvir.
The Bellamy Brothers, uma dupla country da Flórida, surge na sexta faixa com uma canção mais suave, "Let Your Lov Flow". A dupla é de irmãos mesmo e o sobrenome deles é Bellamy. A música é um dos seus primeiros hits, de 1976 e ajuda bastante a enfrentar a estrada.
A partir da sétima faixa, o produtor acho que resolveu encher de ânimo os viajantes, programando grandes sucessos mundiais do rock e do pop. O primeiro deles, na sétima faixa, é nada menos que "American Pie", de Don McLean, aqui numa versão reduzida, já que o original tem mais de sete minutos. Mas assim mesmo é muito boa.
Depois, outro clássico do rock: "Wild World" de Cat Steven, música que não precisa de comentário algum. Quem nunca ouviu, que trate de ouvir. 
Outro clássico - com qualquer música - entra na nona faixa: Rod Stewart com sua "Maggie May". 
Aí terminam os clássicos e entre um grupo chamado 10CC canta "The Thing We Do For Love". Pra quem não sabe, o grupo é britânico e já gravou, desde 1976, dez discos de estúdio e oito ao vivo. A música é bem rock inglês dos anos 1970, agradável e que dá vontade de cantar junto. 
Dobie Gray se incube da faixa número 11, a famosa "Drift Way" que Mick Jagger gravou com David Bowie. Dobie não fica atrás das duas estrelas do rock, mas canta um pouco mais comedido (obviamente), o que não estraga o resultado.
"Show me the Way", caso você esteja meio perdido na estrada, é a décima-segunda faixa, com Peter Frampton que, com certeza, ajudará você a encontrar o caminho com esse que foi um de seus maiores sucessos.
A faixa 13 é de outra banda canadense que fez sucesso no hemisfério norte nos anos 70 e 80: Five Man Electrical Band. Eles cantam "Signs", um sucesso exatamente de 1971.
Por fim, Jim Croce, encerra os trabalhos com a agitada "Bad Bad Leroy Brown", um de seus poucos sucessos, pois, infelizmente, ele e sua banda sofreram um acidente aéreo fatal em 1973. Mas, apesar da nota triste, a música é pra cima e ajuda a melhorar o clima.


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Beijar é boca ou loucura demais?

 Por Ronaldo Faria


A despedida foi um beijo rápido, quase iconolátrico. Desses que a gente dava nas esquinas dos Anos 70 de um século atrás. Fosse na boca da amiga colorida ou do amigo da vida. Como certeza do fim, a presteza bucólica que nem a cólica mais forte traz. Na mesa de madeira, onde fórmica não há, o incrédulo crer que a noite irá amanhecer. Em volta, a voltear num ir e vir sem sentido, o claustro onde as virgens do amor se descobrem entre flores e pedidos de dor.
 
-- Truta, pra você é tudo puta?
-- Qual é mano? Ficou doido sem cheirar ou fumar? Nunca disse isso.
-- Esquece. Você não disse. Eu sei. Mas não tem pra você uma que sirva?
-- Claro que tem. Mas ficou bem pra trás. Se fosse de agora, talvez também fosse jamais.
-- Quer dizer que o que vira no agora é foda demais?
-- Pode ser. Afinal, a gente só conta à história que se faz, não aquela que não se fez.
-- Tá certo. Nessa resenha não tinha mesmo que me meter.
Maurício do Cavaco e Leonardo da Pulga estavam sentados tentando escrever o samba-enredo da escola querida.
-- Vale colocar na letra a Verônica que fez a chapa esquentar?
-- Nem pensar. Isso é samba de avenida, não é história de quem se tentou comer.
-- Tá certo. É preciso pensar no enredo. Mas “Baile florido na maestria da Iemanjá do mundo corrido” não cabe umas mulherada safada?
-- Não. Nosso corre tem de ser longe do asfalto profano. Temos que pensar nas fantasias, nos carros alegóricos. Você imagina um carro com a cara da Maria da Folia? Da Gracinha da Orgia? Das meninas da casa da Dona Leontina? Não! Tem que ser coisa da vida da comunidade. Que chegue pra qualquer idade ou jurado.
-- Cê tá certo. Pode crer.
-- Seu Manoel, manda mais umas pingas pra abrir o nosso pensar! Põe na conta da escola! Quer dizer, se a gente ganhar.
-- Você soube do Zé Meleca? Xingou pra caralho um cara que nada tinha a ver com a dor dele. Só porque chegou travado e pediu um café e o cara não tinha pra dar. E o tal carinha, coitado, tinha acordado a acreditar que a vida tinha algo pra dar. Foi um monte de merda que ele falou.
-- Esse Zé Meleca ainda vai encontrar um cabeça quente que vai pipocar geral. Quem sabe assim, num pé de página, ele não sai no jornal?
-- Mas ainda existe jornal?
-- Sei lá! Nunca comprei. No máximo peguei emprestado de um miserável que não sabia ler.
Ambos os dois, como se falaria na trama a se falar, escrevem no papel as rimas e as notas a se contar e cantar na passarela.
-- Esse tal de Niemayer era brasileiro pra fazer a passarela do samba?
-- Sei não. Deve ter sido um gringo que queria comer nossas passistas e colou feito parasita no governador que ganhou uns vários por cento na jogada.
-- É. Deve ter sido. Saravá e Oxalá rima. Vamos meter no samba.
-- É nós. Tá posto!
-- Ô Manuel, larga a caneta que dobra o pedido e traz umas geladas pra nós na manha.
No alto do morro, onde a lua chega depressa, a pressa da dupla em encerrar a canção que pode explodir na avenida, com povão e gente qualquer a cantar, vira necessidade primordial. O julgamento da agremiação será logo perto, decerto e presto.
-- E aí, Pulga, você acha que virou legal?
-- Sei lá, Cavaco. Agora é entregar pra Deus e os santos na Terra. Se não der certo, no ano que vem vamos tentar outra vez.
-- Aí você acha que cabe a Verônica?
-- Puta que pariu. Tu vidrou nessa preta!
-- É que você não sabe o cheiro que ela exala. É coisa de Exu, Pomba-Gira e o que tiver de ser.
-- Vamos crer que esse ano vai virar. Se não for, vamos descer a Sapucaí na mesma treta.
-- Com certeza. É botar fé em quem ganhar. O importante é a escola arrebentar!
--Manoelito, manda outras e algumas. Na ruma e na rima que brota de nós, alguma truta ainda vai fisgar nossos anzóis.
-- Caralho, puta frase. É nós! Põe no samba de 2025. Com esse a gente vai ganhar!
 
(Com Evandro Fióti)

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

A falta que algo faz

 Por Ronaldo Faria

 


“Que falta faz o óculos para escrever. Que falta fazem os ósculos e óvulos para se viver.”
Jerônimo, homônimo daquilo que se quiser crer, pensava: “Venha o que vier, tamo junto!” Ele era apenas mera e rara realidade. Cansou de crer em santos, Nostradamus e sânscritos escritos perdidos numa tumba qualquer. Seu acreditar agora era de um finito minuto. Mudava a cada hora de nova oração. Devoto do tempo ateu, onde a pessoa se dá bem ou se fodeu, passeava nas nuvens de pungência etérea que só a Terra dá. A noite agora por fim se enternece e chega reluzente e crente de que é eterna ou terna pungente ao poeta louco de se embriagar de canto ou verso lindo.
Jerônimo, heterônimo de si mesmo, bastardo tragado na nostalgia que a jia coaxa até ser comida pela jiboia, sabe que logo ali defronte está a tardia chegada que desce a ladeira como fosse uma ruma de filhos de Gandhi. Mas, nesse momento, de tormento e lamento, tanto faz como se fez. O feio ou bonito em algo se se tornará. Para ele, estar aqui ou em Bagdá, pouco o texto formatará. Nas bombas que explodem sempre pelos lados de lá, a dor sincroniza o ultimo sopro de vida que ecoa no luar. Enfim, os derradeiros raios de luz fazem solfejos de fim da dor. Daqui para frente, no enfrentamento de si, Jerônimo delimita a linha da lucidez e do torpor. Não haverá certeza ou louvor.
Na esquina, dessa onde a quina já machucou muitos bêbados em quedas por demais, alguns alguéns brincam de goles mil derramar. Certamente, no alto do mar, no ato do amor, o vasto envolver de pernas, ventres e braços. A envolvente incerteza que a certeza da incerta volúpia dá. Um tanto de tântrico querer, um esmero de cadafalso que o viver falso traz vozes e frases atrozes em artroses milenares. No poste que posta como luz a quirela de emoções e canções mil, milhares de insetos buscam a morte no iluminar longe do luar. Na festa que o infausto da soberba traz, vêm as vestes da seminua Camélia a quem Jerônimo quer entregar seu coração. Os seios fartos, parcos para quem não os beijou, as pernas que guardam no meio o anseio fugaz, o corpo translúcido a dançar na madrugada fria. No ensejo, o certo e o abstrato. Enfim, um ato. Substrato no trato de um câncer que foge de si para a morte do mesmo alguém.
A fugir das linhas certas e decrépitas da rima lunar, Jerônimo, que não é rei de nenhum sertão, caminha feito Pero Vaz de Caminha, a escrever asneiras de que em plantando tudo dará. Certamente, um dos poucos letrados de poucas caravelas no além do além-mar, pensava descrever o que via ou a loucura que viveu nas milhares de léguas que mil éguas não teriam feito por antes morrerem afogadas. Mas, se não houver sonhar, de que vale o próximo acordar? Jerônimo, longínquo ser que não veria a luz elétrica tudo esplandecer, ao menos vivia sua falácia de no porto mais perto chegar. Nele, holandesas, suecas, islandesas, francesas e quem mais mulher for, estavam a esperá-lo, saído do ralo dos mares navegados. Feliz, prostrado na mesa da taberna, com canecas de vinho derramadas, enfim encontrará a sua amada. “Pode, neste ser, ao menos dar uma mamada?” Essas, dizem, foram suas últimas palavras. No ancoradouro próximo, outras galés emergem e submergem para o novo mundo buscar.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Tony Bennett já era bom há 65 anos

 Por Edmilson Siqueira


Há cerca de um ano morria, em Nova York, Anthony Dominick Benedetto, mais conhecido como Tony Bennett, aliás, mundialmente conhecido como Tony Bennett, um dos maiores cantores que já passou por esse planeta, com uma carreira irretocável por mais de 70 anos. 
Seus grandes sucessos são bastante conhecidos pelo mundo afora. O que talvez poucos saibam hoje, é que ele sempre foi muito bom. Aos 25 anos, em 1951, teve seu primeiro disco alcançando o topo das paradas norte-americanas: "Because Of You" ficou dez semanas na parada e vendeu 1 milhão de cópias.
Seu estilo então é o mesmo que levou ela vida toda: canções pop e muito jazz. E não era fácil despontar como um grande cantor naquela época. Seu maior concorrente era ninguém menos que Frank Sinatra. Tony, porém, tinha estilo próprio e gravou vários tops hits como “Rags to Riches”, no início dos anos 1950. Em seguida, refinou ainda mais a sua técnica vocal para abranger jazz singing. Ele chegou a um apogeu artístico no final dos anos 1950 com álbuns como “The Beat of My Heart“ e “Basie/Bennett - Count Basie And His Orchestra Swings/Tony Bennett Sings". 
E, para não dizer que não falei do seu megassucesso, em 1962, Bennett gravou sua canção mais famosa, “I Left My Heart in San Francisco”, música de George Cory com letra de Douglass Cross, que até hoje é programada em todas as estações de jazz do mundo inteiro.  
Mas é o citado acima, que ele gravou com a Orquestra de Count Basie, que estou ouvindo agora e posso garantir que se fosse gravado hoje não seria muito diferente. Excelente gravação de um grande cantor com uma orquestra espetacular. Tão espetacular que Count Basie gravou dezenas de discos somente com sua orquestra e com ela viajou pelo mundo. 
Um disco gravado nos dias 3 a 5 de janeiro de 1959 nos estúdios da Capitol em Nova York mantém, 65 anos depois, toda a qualidade sonora mercê a qualidade dos envolvidos.   
Na sua autobiografia, "The Good Life", Tonny Bennett relembra essa gravação: "Embora eu tenha falado com ele por telefone, não conheci Count Basie até que nossos ensaios começaram. Foi uma experiência incrível, a realização de um sonho, e nunca vou esquecer. Nós nos demos bem imediatamente, como se sempre nos conhecêssemos e nos entendêssemos. Em um momento, Basie se virou para sua banda, apontou para mim e disse: ‘Tudo o que esse homem quer, ele consegue!’ Fiquei chocado."
E só poderia ter sido num clima muito bom que tudo aconteceu. Em 12 faixas, os dois demonstram que nasceram para a música e, com ela, não apenas viveram suas vidas, enriqueceram e, com certeza, foram felizes, mas também proporcionariam a milhões de ouvintes o prazer de ouvir sempre um ótimo trabalho.


As doze faixas do disco são as seguintes:
1 - Life is a Song (Ahlert - Ypung)
2 - "With Plenty of Moneys and You" (Dubin - Warren)
3 - Jeepers Creepers  (Warren - Mercer)
4 - Are You Have any Fun (Fain - Yellen)
5 - Anything Goes (Cole Porter)
6 - Strike Up the Band (G & I Gershwin)
7 - Chicago (Fred Fisher)
8 - I"ve Grown Accustomed to her Face (Lerner - Loewe)
9 - Poor Little Rich Girl (Noel Coward)
10 - Growing Pains (Schwartz - Fields)
11 - I Guess I'll Have to Change my Plans (Dietz - Schwartz)
12 - After Supper (Neil Hefti)
O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=GsxHUyGOXi4 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Caetano e Gil

 Por Ronaldo Faria

 


Aborígenes de uma terra perdida, fodida, ardida, maldita, mal vista, quase fascista. Paralelepípedos de uma estrada inaudita onde ninguém passa ou sequer crê que haja saída. Forasteiros em fortuitos e quase poemas, quiçá mero fonema perdido, são a barbárie da solidão e da servidão. Senão, como diria o poeta, meros araçás e bananeiras. No universo que o verso traz, transverso epicentro do maculelê. Na fresta do sol que resta, a retidão da poesia se acomete de minúsculas letras para virar algo factível. Certamente, o primeiro hominídeo terá dito em rima seu amor à amada que não entendia, porém, nada além da noite tardia. Hoje, quase mesmo e assim igual, em assimétricas e estéticas práticas, um pedaço de Méier e outro do Leblon se juntam a humanizar a saudade tardia.
Veganos no mar de sangue que escoa pelos bueiros das ruas vilipendiadas e navegantes bastardos e afogados em turbilhões de emoções e unções, surgem os salvadores da pátria apátrida, partida em poucos pedaços de corpos triturados e calcinados, esperanças vivas e viúvas de mantras forjados ao acaso. Neste caso, os prazeres têm cheiro de bosta e jasmim, a depender dos narizes e do jeito carmim. No entremeio que o veio não traz ouro, o absorto aborto do bem-querer. Talvez uma lua tímida, a ferir as nuvens que não se fizeram de chuva úmida, a tez brejeira da mulher derradeira, a fome que o mundo nunca saciará de sorver. O sofrer é quimera e espera de esperança morrer. Nos passos derradeiros, o coito salvador que a realidade, maledicente, chama de soberba e estrupício.

sábado, 17 de agosto de 2024

Descobrindo Mariene de Castro

 Por Ronaldo Faria

 


Já dizia o poeta que aroeira que bate em Pedro bate em qualquer um, de presto. E se não disse, certamente gostaria de tê-lo feito, sobre Pedro, o bíblico santo, ou no resto. Na rua, nua de gente e ausente de qualquer amor, um pé de amora mora solitário defronte da esquina que leva ao mar e sua moradia, um oceano que junta e afasta continentes e traz brisa boa e maresia.
Nesse ínterim, itinerante do mundo, estava Deocleciano. Disseram que seu pai assim o quis para juntar o nome de seu avó – Deoclécio – ao oceano que nunca vira. Homem de poucas patentes na guerra da vida e nos exércitos que viajavam ofegantes pelo destino, ia tropicando entre os trópicos que as pernas bambas criavam a cada nova passada. Se norte ou sul, pouco importava.
Para Deocleciano, a perda de ser era diuturna lição desde o amanhecer. Dormia com os erros do dia, tinha pesadelos mil, com enredos loucos e hollywoodianos. De vez em quando, surgia uma linda dama com seu entregue ânus. Noutras, apenas uma fuga eterna dessa que se mostra em toda a terra. Mas se isso era viver, ele estava no enredo e no descalabro que, calados, eram caiados de sofreguidão.
Ser efêmero, de destino negado e naufragado há muito, fortuito caminhante nas trilhas de falácias e poucas acácias, era um querubim. Senão, demônio que alguns chamariam de Sinfrônio – o dono do som sinfônico que traz com o mar. Mas, para quê questionar? O melhor era esperar num parapeito qualquer a lua chegar. Senhor de si, sem saber o fim que virá, brincava de querer rimar.
-- Deocleciano, vai ficar aí, deitado embriagado, na porta do bar que já está fechado?
Ele sequer ouviu a frase de Machado, seu parceiro. Dormiu a sorrir como se fosse um preto na demanda do reino de qualquer gueto livre e guerreiro. Estaria no Brasil ou em Luanda? O som que lhe chega é dos atabaques ou de uma banda? Nesse canto há realejo? O que o pássaro preso lhe daria de destino? Na casa perto, Maria balança a cabeça de pena. Essa nunca descobrirá a sentença.

Anoitecer em Belchior

Por Ronaldo Faria   Entardecer em tardia realidade. Belchior rola no ar. Em algum lugar alguém está a amar. Certamente haverá lábios rasgado...