terça-feira, 3 de junho de 2025

O essencial talento de Rosa Passos *

Por Edmilson Siqueira


Minha admiração por Rosa Passos está marcada pelos dez CDs que tenho da moça, além de inúmeras outras gravações nos arquivos digitais. Já há um bom tempo não compro nada dela, mas o que tenho sempre é bom de se ouvir novamente, cada vez com mais surpresas, todas agradáveis.
Aliás, já escrevi quatro artigos aqui sobre discos dela, além de um do Yo-Yo Ma ("Obrigado, Brazil") no qual ela faz importante participação.  
O CD da vez é "Eu e Meu Coração", lançado no Brasil em 2003 pela gravadora Velas. É, simplesmente, uma obra-prima da cantora, compositora e violonista baiana. 
O "lançado no Brasil" da frase acima é porque o disco foi concebido originalmente para o mercado norte-americano sob o título "Me and My Heart" em 2002. Ele é resultado de um show solo realizado por Rosa em Nova Orleans em 2001. Na plateia estava Jim Cuomo, presidente da Gravadora e Distribuidora Ryko, de Nova York, que se encantou com a performance e propôs a gravação do álbum. Com a participação do baixista Paulo Paulelli, o trabalho foi gravado em apenas cinco dias, resultando em um registro intimista e sofisticado que mescla bossa nova, samba e jazz. 
O álbum é composto por  14 faixas que transitam entre clássicos da música brasileira e composições da própria Rosa com parceiros.  
Rosa Passos é reconhecida por sua voz suave, afinação impecável e domínio do violão. Sua interpretação é marcada por uma abordagem minimalista e sofisticada, que valoriza a melodia e a harmonia das canções. Fã assumida de João Gilberto, Rosa herdou do conterrâneo a precisão vocal, a batida no violão e a espontaneidade, sem deixar de imprimir sua personalidade musical, oferecendo releituras que fogem do convencional e revelam novas nuances nas composições escolhidas. Sua capacidade de improvisação e sensibilidade rítmica são frequentemente comparadas às de Ella Fitzgerald (outra grande influência). 
O baixista Paulo Paulelli, parceiro de longa data de Rosa, contribui significativamente para o álbum com seu baixo acústico e percussão vocal. Sua atuação complementa o violão de Rosa, criando uma sonoridade rica e envolvente que reforça o caráter intimista do trabalho. A parceria entre os dois músicos é evidente na coesão e na fluidez das interpretações. 


"Eu e Meu Coração" ajudou a consolidar ainda mais a carreira internacional de Rosa Passos, que já havia se destacado no cenário musical com participações em projetos como o álbum "Obrigado Brazil", vencedor do Grammy. O disco também foi lançado no Japão e na Espanha, ampliando o alcance de sua música e conquistando admiradores em diversos países. 
"Eu e Meu Coração", além de nos apresentar as excelentes interpretações de Rosa, é uma obra que sintetiza a elegância e a profundidade da música brasileira. O álbum todo oferece uma experiência auditiva que supera  fronteiras e estilos, reafirmando o talento singular de Rosa como intérprete e instrumentista.
As faixas, todas muito boas, são as seguintes:
"Só Danço Samba" (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
"Água Doce" (Ivan Lins e Vitor Martins)
"Aos Pés da Cruz" (Martino Pinto e Zé da Zilda) 
"Juras" (Rosa Passos e Fernando de Oliviera) 
"Eu e Meu Coração" (Naldo Vilarinho e Antonio Botelino), 
"O Que É Que a Baiana Tem?" (Dorival Caymmi), 
"Desencontro" (Chico Buarque), 
"Se o Tempo Entendesse" (Marino Pinto e Mario Rossi), 
"Dunas" (Rosa Pasos e Fernando de Oliveira), 
"Dois de Fevereiro" (Dorival Caymmi), 
"Surpresa" (João Donato e Caetano Veloso), 
"Minuano"(Rosa Passos e Vitor Martins), 
"Mentiras" (João Donato e Lysias Ênio) 
"Águas de Março" (Tom Jobim). 
O disco está à venda nos bons sites do ramos e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=swt1PaY0X0U&list=PL1nql9qUW9J2fLNf0IkhyNBpMFCKHs5fL

 .
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Pariu-se. E daí?

 Por Ronaldo Faria

                                         

Abestado, Januário, parido na dor da mãe Zifinha, depois de horas de placenta jogada em água amniótica na terra seca do sertão, hoje se pergunta por que nasceu. “A trepada do pai cheio de vontade de gozar valeu o intento do dia encruado e sem vento?” Na dúvida endoidada que a vida sempre dá, ele não detinha a resposta. Fosse ela posta em postas jogadas no breu da feira circunscrita aos pesadelos e desmazelos de antemão. Januário era somente um anuário no calendário de milhares de anos. Talvez um cachorro desses que se encosta e se prostra debaixo da banca de carnes pra ver se um pedaço de sebo cai. No meio de barracas e barcas atoladas na secura de até tristeza alumiar, ele brinca de poder ser feliz. E bebe, derrama goles e ouve foles de sanfona. Quem sabe nalgum canto um canto de louvor há de recebê-lo sem querer cobrar. Se assim, porém, acontecer será milagre desses que nem mesmo Jesus Cristo consegue assinar embaixo e prescrever.
Encruada na mesmice encalacrada que a vida destina e dá, Januária segue com seus terços e novenas a pisar em trilhas poeirentas e de pedras pequenas. Véu na cabeça que um dia já foi branco e vistoso, hoje escurecido pelo pó que sobe do chão, ela vai na busca dos santos que descansam no altar cagado pelos morcegos que descobriram no local o descanso dominical. Cheia de rugas que à face mostram que o tempo eterniza as veredas e sutilezas do mundo, ela busca apenas um tempo extemporâneo que nem o passado sabe ter existido. Na chuva que não bate em Sergipe e nem nas Alagoas, as lagoas jogam líquido insípido aos retirantes que passam na busca de outra vida sobreviver. Na sofrência do ultimato que dentro da gente dá que nem mato, Januária segue feito os bois que carregam o carro a ranger na servidão. Afinal, na taciturna falácia de ser feliz, vale de tudo: a mentira bendita, a certeza inaudita, a crença renhida de saber que nunca chegará.
 
(No som de Seu Luiz Gonzaga)

sábado, 31 de maio de 2025

Dúvidas e dívidas

 Por Ronaldo Faria

 


-- Você viu que o Seu Tranca Ruas estava na seca?
-- Vi. Mas achei que isso talvez fosse bom, para ele ver o quanto dói a gente pedir e querer algo e ficar a ver navios que nunca chegarão num porto sequer.
-- Mas não é assim que o santo funciona.
-- Como assim? É tudo toma lá e dá cá? Aí não é crença. É extorsão.
-- E o que nessa vida não é assim?
-- Quer dizer que rezar e implorar de nada vale?
-- Acho, por experiência própria na imprópria existência de impropérios, que não.
-- Por isso eu acho que ser ateu é o mínimo a se fazer.
-- Pode ser. Quem saberá...
A noite escura como cama de tatame, como exemplificou o poeta, a professa metástase da tristeza que consome o corpo devagar e a vagar, se torna dona do lugar. Certamente, quase tão certo como a álgebra que a bactéria semeia na semente da mente tristonha, pessoas passeiam nas esquinas que se escondem entre as luzes de postes apagados. E acreditam no crer, creditam ao próximo dia a alforria do seu lumiar, percebem que a saudade não traz de volta a reviravolta da vida.
-- Todas as suas decisões foram acertadas?
-- Não. Mas todos os meus erros me cobram até hoje cada passo na estrada.
-- E como fazer um novo caminho?
-- Se for como um novelo, nem em desalinho há linha ou linho.
A cada novo gole que se entranha nas entranhas do corpo e vem do copo, corre um córrego vazio de águas e repleto de mágoas que margeiam a solidão que invade o asfalto em sobressalto com os pneus dos carros que fogem do seu derrear. Na ladeira que desce defronte, a fronte do casal se entrega em beijos e orgasmos mil ao mais senil desejo de se alojar num canto do peito que vive a pulsar.
-- E valeu viver?
-- Acho que sim. Não o fosse, não teríamos esse papo entre escrachos e cachos de uvas mal paridas e mortas nos galhos.
A mão esbarra no copo e o gole ainda posto se torna um escorrer no esgoto. O santo, o mesmo que ficou na secura da fissura de beber, deve ter exigido algo a mais além do copo cheio de aguardente. O dia, agora não quente, se esvai. Na irrisória lamúria da fatalidade, a realidade vive seu amor até o fim.
 
(Com Mauro Senise a tocar Gilberto Gil)

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Entre afetos e desafetos

 Por Ronaldo Faria

 

Gestos prestos e afetos que aos desafetos, nascidos também fetos, parecem somente restos. Canções que se embrenham e se fazem prenhas de uma imaginação sem ação. Que se deixa levar a entoar sílabas, palavras, versos, sesmarias. Na estrada do amor, dezenas de Marias. A José bastasse o nome como sina, todas sairiam formatadas e moldadas de uma mesma oficina. Feitas nos primórdios da revolução industrial, seriam morenas, olhos negros, corpo esguio, bocas ávidas de beijos, corpos largados, entregues e tragados na mesa de um bar. Mas, filhas da pós-revolução de costumes, nunca se deram a curtumes. Cada uma foi feita sob a forja de um destino incomum a todas. Lobas, devoraram à imensidão suas presas e se esgueiraram em esquinas e estradas para seu mundo traçar. Ainda bem. De vagão igual basta trem.
-- E aí, o frio chegou?
-- Sei lá, mas um conhaque já está bom de tomar.
Milton, aquele que todos chamavam de rouxinol pelos mil tons que sabia soprar, viajava nas suas entranhas e artimanhas. Nas manhãs, de ressaca, buscava a receita mágica para voltar à realidade. Na verdade, nunca a viu ou a teve. Sua nuca e cabeça doíam de forma involuntária. Nas tardes, tardiamente tentava lembrar daquilo que havia feito antes. Em vão. À noite, se envolvia em si mesmo e, ensimesmado, ouvia samba e fado, fodia parcas e frágeis lembranças, dormia acordado na fé. Na madrugada, tragada e ultrajada de coisas feitas, refeitas, temerosas do dia a raiar, viajava para o universo próprio cheio de versos a remar rumo ao porto esquecido de Trafalgar. No todo, um tanto de loucura, outro de crer e outro de brilhar.
-- Agora esquentou geral...
-- Te falei. Conhaque a dezenas de graus é animal...
Milton, menestrel que transforma fel em mel (ou vice-versa no verso), segue seu rumo até o fim. E redescobre a simetria entre a loucura e a sanidade, a diferença entre a chegada à vida e a verdadeira idade. Surge e emerge na voracidade de tragar rios e mares, vulgares e sagazes. Tanto faz. Tanto fazia. No fim é tudo orgia vernácula e verborrágica. Coisa atávica ou trágica. Cheia de gozos ou flechas cravadas no coração. Antes de viver na porta aberta pelos decibéis e débeis graus, não há como se saber. Nesse momento, no tormento que se desfaz e se refaz em lamento e amor, que venham todos. Como já disse Milton à amada, ele, eu, você, todos nós estamos facinhos que nem focinho de cachorro no passeio do lazer.
 
(Ainda com Bituca)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Procrastinação

Por Ronaldo Faria



Perácio procrastina o prefácio da festa inexistente que ainda resta. Sabe que o casamento, em lamento, há muito foi para o saco e só espera o lixeiro passar para buscar. Mal sabe onde catar papelões e engradados para colocar os fardos que o acompanham há décadas. Nas peripécias e inércias que a vida dá, faz e apraz, não adianta ser loquaz. Se muito, irá correr os metros finais que a idade traz.
Juventina, eterna menina que não faz a mínima menção de querer viver a vida do outro e vive a pisar em nuvens que são apenas reflexos do medo de saber que o fim chegará por fim, pede a si para ter razão. No coreto, um minueto varre o som silencioso do lugar. Cioso, o maestro rege a banda infanta na busca de alegrar o sumir do sol que antecipa um luar cheio de luz e prata ao seu ficar.
Ambos, Perácio e Juventina, Perá e Tina, nas suas surdas rotinas há muito não têm a sudorese que emana dos corpos a se entranharem num roçar e se estranharem tão juntos no efêmero postergar. Para eles, o toque na pele, o respirar que exala do vilipêndio pleno que nenhum compêndio traz, parece fugidio e ineficaz. Tudo na rotina de uma tina que, furada, nunca mais se enche de água, a vida liquefaz.
A sonhar envolto na brisa que sai de cigarros verdes e sedas, incongruentes catarros e escarros, o homem sentado diante do morro que vê as ondas baterem num repetir assimétrico e assintomático contra as rochas, ri da cena. Ele sabe que o bode e a larica que virão depois são blasfêmias que as fêmeas da sua imaginação irão parir como sentenças em si. De pouco adiantará brilhar ou estar. O jeito é rezar...
Na avenida, na premeditada ermida que a ilusão teima em manter viva, casais e famílias, filhos e filhas, afilhadas e até as mais solteironas frígidas, afilhados e kamikazes de seus trágicos poemas findos, todos se juntarão na canção para levitar. Irão além dos corpos, como tortos e voláteis, voluptuosos e anchos achados, para local qualquer. No reencontro consigo mesmos, nos ermos vazios do silêncio e da ausência, far-se-ão tesão solitário. Do alto do prédio de onde se antevê a tevê ligada no programa que busca a fama, um casal irreal despoja suas vestes para vestir de madrugada a noite virginal. Nos créditos que sobem na tela, a bucólica e angelical promessa...
 
(Sob a inspiração e o som de Silvério Pontes)

terça-feira, 27 de maio de 2025

Na dor, minha dor primeiro e só

Por Ronaldo Faria


O recado é dado e o silêncio é real, definitivo, longe do afetivo gestual, não abstrato. Substrato do sentimento chamado amor, talvez esteja perplexo em si mesmo, mortificado por um mal maior até o fim. Na dó daqueles que esperam reciprocidade, a cidade caminha entre passos dos casais involuntários e o piscar de faróis incandescentes. Às mentes, milimétricas danças egocêntricas e tântricas, jusantes findas em um mar que disseca a seca da paixão, Celidônio está idôneo no frigir de ovos. No caixão fechado, feito achado final e senão, o corpo de Gerusa descansa a saber que não haverá nova dança. Na rua, a contradança se entrega nos salões que ainda brilham em luzes acesas, copos bêbados e cigarros a queimar.
-- Não deu certo por quê?
A pergunta do alter ego de Celidônio fica sem resposta.
-- Sei lá... Acho que não era para ser. Foi o que deu. Depois, cada um no seu mundo e destino.
Aos poucos o velório se enche de pessoas com suas almas penadas cheias de pena de estarem lá. Um ou outro comenta que preferia estar velando a própria solidão numa mesa de bar. Mas eram Celidônio e Gerusa. Algo como peritônio queimado por uma medusa. Não tinha como deixar de dar um abraço no amigo, ver sua musa desnuda do brilho do olhar, quem sabe a vagar noutro mundo etéreo, prestes a se recolher à eternidade do cemitério. No seu canto, a relembrar os momentos de ir e chegar, juntar os corpos e beijar, saudar o fim do dia, comemorar o sol na janela, juntar sentimentos, receitas e panelas, Celidônio, atônito, espera apenas o ataúde fechar.
-- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Quando o padre acaba a oração e benze de água benta o choro que não mais arrebenta ou arrebata dos olhos de Gerusa, o féretro segue pelas alamedas do cemitério até a sepultura, lugar onde a saudade e a ternura se juntam como o único destino. Ao fechar da pedra de mármore com cimento fácil de romper ao próximo corpo que chegar, Celidônio por fim vê que é hora de recriar caminhos, desalinhos de cabelo quando as mãos da amada os tocam, pérfidas cenas de afagos quando um fado emerge da vitrola que pede para se aposentar.
-- Quer carona, Celidônio?
-- Não, obrigado. Vou andar...
Pela praia, cercado de morenas a mostrarem seus corpos e um ou outro vendedor de chá mate e biscoito de polvilho, como um novilho longe da boiada, ele pisa na areia fofa e branca. Lembra das ancas de Gerusa, ri de si, se pergunta para que existe a vida: “Que besteira vir aqui para não se achar e ser perder.” Olha o casal que se beija em línguas e acaricia o corpo que está à toa, ouve a toada primaveril de pássaros que fazem a revoada do amor. Na sua dor tão normal e vulgar, se embrenha no mar contra as ondas que devagar o cobrem de espumas. É encontrado semanas depois, em decomposição, marés e correntes marítimas muito longe do local em que se enveredou. No pasquim das raras bancas de jornal e que escorre sangue nas letras negras, a manchete é “Cadáver bate na areia por não saber nadar”. No quarto e sala de Celidônio, medalhas de competições aquáticas esperam para serem jogadas no lixo.
 
(Ao som do grande Johnny Alf)


domingo, 25 de maio de 2025

Teatro, jazz e obras primas: West Side Story *

Por Edmilson Siqueira


 
O disco que tenho é uma cópia num CD que um amigo copiou e me deu de presente há vários anos. Caprichoso, ele reproduziu a capa do LP original para o tamanho de um CD, frente e verso. E no verso há um longo artigo, em português e sem assinatura que, por tomar toda a contracapa do LP, na versão CD diminuiu tanto o tamanho das letras que se torna necessário o uso de uma lupa para lê-lo. 
As obras-primas compostas pelo genial Leonard Bernstein são todas tocadas no disco pelo também genial Oscar Peterson Trio. O resultado dessa união de gênios da música não poderia dar em outra coisa: o disco é uma obra-prima que traduz, com rara sensibilidade e técnica, a essência de um dos maiores musicais da Broadway para a linguagem do jazz instrumental. 
Lançado em 1962, West Side Story do Oscar Peterson Trio, com a trilha da peça homônima de 1957 (e imortalizado no cinema em 1961), o álbum é mais do que uma simples adaptação: é uma reinvenção que homenageia e transcende o original.
 O disco foi gravado por aquela que é considerada a formação clássica do Oscar Peterson Trio: Peterson no piano, Ray Brown no contrabaixo e Ed Thigpen na bateria. Esta formação, ativa entre 1959 e 1965, ficou marcada pelo equilíbrio técnico e pela musicalidade fluída entre os músicos, com cada integrante contribuindo de maneira essencial para a sonoridade do grupo. Brown, com seu contrabaixo ágil e profundo, oferece uma base sólida e melódica, enquanto Thigpen traz uma abordagem sutil, de refinamento quase orquestral, com o uso magistral das escovas e dos pratos. No centro, Peterson atua como maestro e solista, exibindo sua impressionante combinação de virtuosismo, swing e lirismo.
Leonard Bernstein compôs a trilha de West Side Story com forte influência do jazz, da música erudita e dos ritmos latinos. A história moderna de Romeu e Julieta (é disso que se trata West Side Story) ambientada em Nova York oferecia um pano de fundo perfeito para experimentações sonoras. Peterson e seu trio, ao reinterpretar esse repertório, não apenas respeitam o material original como também o transformam com uma liberdade criativa característica do jazz.
 

A primeira faixa é “Something’s Coming”, marcada por mudanças de tempo, acentos rítmicos e uma sensação de expectativa que Peterson traduz com frases rápidas e mudanças súbitas de dinâmica. 
“Somewhere”, a segunda e talvez a faixa mais conhecida do musical, ganha um arranjo vibrante e rítmico, com o trio explorando sua estrutura polirrítmica em compassos alternados. Peterson faz uso do piano percussivo para evocar o espírito enérgico da peça, enquanto Thigpen introduz elementos rítmicos que remetem à música latina, mas sempre dentro do contexto do swing.
Em “Jet Song”, a terceira faixa a irreverência dos Jets ganha uma leitura cheia de groove e síncope, com destaque para o diálogo entre baixo e piano.
Faixas como “Tonight” (quarta) e "Maria" (quinta) revelam o lado mais lírico do trio. Em “Tonight”, a interpretação é marcada por uma beleza contida, com nuances que capturam a urgência romântica da canção original. Já em “Maria”, Peterson explora a melodia com delicadeza, evitando exageros e deixando espaço para a emoção aflorar nas pausas e nos toques sutis. O piano canta, por assim dizer, substituindo a voz com pleno domínio expressivo. 
A sexta faixa é "I Feel Pretty", um exercício bem-humorado do trio que esbanja entrosamento, marcado pelo ótimo improviso de Peterson e pela base forte de bateria e baixo. 
A última (são só 7 faixas, infelizmente), "Reprise" retoma o lirismo em que o trio se encaixa tão bem. Tomando ares de valsa-jazz em alguns momentos, a melodia escapa para nuances perfeitas, muito bem concatenadas, revelando que o disco West Side Story é mais do que um exercício de transposição de gêneros. Ele representa um verdadeiro diálogo entre dois mundos musicais: o teatro musical e o jazz de câmara. 
Oscar Peterson tinha vasta experiência em transformar standards da Broadway em peças jazzísticas, mas este álbum se destaca pelo desafio específico que representa: adaptar um musical inteiro, com suas mudanças de clima, ritmo e emoção, sem o uso da palavra cantada.
Aliás, por falar em palavra cantada, todas as músicas têm letras, que aqui não é oc aso, de Stephen Sondheim, considerado um dos reinventores do musical norte-americano.
Em suma, West Side Story com o Oscar Peterson Trio é um disco que, mais de seis décadas após seu lançamento, continua relevante e encantador. É uma ponte entre mundos, estilos e épocas, e um tributo à força da melodia, da improvisação e do encontro entre grandes mentes musicais.
O disco todo pode ser ouvido no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=LGb2wuT1p9o e pode ser encontrado em CD ou LP no Mercado Livre.
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Carne e osso com Xangai

Por Ronaldo Faria


Louco e trôpego, no tropel do gado que caminha em quatro patas para logo ser dependurado e rasgado de cima a baixo, Mariano tosse engasgado com a poeira que sobe do chão em grãos invisíveis ao olhar. “Logo tudo isso irá acabar”, pensava. A partir daí será Mariana, sua amada. Aos dois, na cama do colchão de espuma de capim, o introito roto e saudoso mesmo longe do mar desagua na sanfona primeira ou derradeira. À turbulência da ausência, a premência urgente que a gente nem sabe dizer e se faz paulatina na latina crença de que a felicidade será prenha para um dia nascer. Ser no próprio ser, o enternecer libertário da razão de crer. Na latrina, desce a crina do cavalo que trota casco depois de casco no cascalho. Tosco e absorto em si, transverso e no amplexo reto e ereto no sublimar de desejos e ensejos, Mariano faz da sua voz a derradeira trama do fim do drama que é viver num mundo fecundo de abortos de ser...

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Nos desenhos da vida com Alceu Valença

 Por Ronaldo Faria



-- Lembro até hoje daquele beijo. Foi tipo goiabada e queijo. Causou beleza, casou feito pedaço de laranja, línguas fundidas que pareciam uma foda só. Ao menos essa lembrança ficou.
Retumbante, feito hino de nação, Cauby entoava seu pensar. “Gastar um gole de cerveja pra adentrar um comprimido? Que coisa mais sem graça...” Logo perto, no perpétuo lunar, o vaqueiro trazia seu gado no aboiar.
Maria do Socorro, no púlpito de sua vida tardia, urdia clemência aos pecados e ardia de febre nas doenças que existem desde os tempos glaciais. Ex-amada de Cauby, dissonante no arfante arfar delirante pela saúde que se esvaía pelos poros de suor e promessas dispersas, ela ainda sentia o passado claudicante que teimava em voltar.
-- Relembro do pedido negado para ser feliz. Ou felicidade é romper a orfandade e depois acordar cercada de cifras e cifrões que brotam em contas e contágios mil?
Cauby e Maria, um casal a mais no amazônico e atônito milenar espaço que separa a mão do braço, moravam no sertão da Paraíba. Sob um sol inclemente que impedia qualquer semente de brotar, ambos eram resistentes renitentes e tementes a Deus. Afinal, em tal lugar, em quem mais crer ou temer?
Na praça diante da igrejinha pequena e efêmera, dessas que o Criador sequer sabe que existe, o padre pedia o perdão por ter pensado de forma pecaminosa sobre o coroinha. “Prometo, Senhor, ao invés de vinho colocar suco de uva na taça.” Defronte da capela, iluminados por velas, Fabrício e Anita se achegam e se colam numa coisa só. Açodados de saber que o corpo traz tatuagens e feridas que nem a maior da querência os livrará do destino, os dois se beijam e se retorcem de lamentos e lamúrias, injúrias nunca ditas e desejos imortais.
Na estrada de barro batido e uma ou outra planta resistentes à seca, o carro de boi segue sua sina na ruma de animais com nomes de servis seres imorais, amorais quiçá. “Queria lembrar deles, sendo levados rota acima e ferroados com a vara que trazia à ponta de ferro o sangrar cada um”, relembra a eterna criança a soprar lembranças que ao forno das cinzas irá se levar e relevar cada segundo perdido no acreditar.
A milhares de quilômetros dali, na eterna crença estradeira, outro casal trepa na rede e se esmera em brincar que a felicidade é verdadeira. Mera besteira. No regaço do regato que há muito secou, afônico cantador faz promessa, infundada, de que o santo da poesia e da blasfêmia deixará a fêmea livre dos erros cardeais que a balada sempre traz. Cauby e Maria, feito acauã na dor da secura, creem que a cura da separação se dará em terços de beatas e trouxas de roupas lavadas no rio que, mesmo seco, escorre em frouxas ondas de chegar. Sem tradução àqueles que não enxergam a loucura como salvadora, existirá sempre a próxima aurora.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Zé da Velha e Silvério Pontes celebram a MPB *

Por Edmilson Siqueira

 
Antes de mais nada é preciso dizer que esse disco virou referência da música instrumental brasileira. Como os instrumentistas do Brasil são reverenciados no mundo todo, não é qualquer um que se torna referência por aqui. 
Pois em 1999, o trombonista Zé da Velha e o trompetista Silvério Pontes lançaram o álbum "Tudo Dança", composto por 13 faixas que são um passeio por choros, maxixes e sambas, interpretados com maestria por dois dos maiores nomes dos sopros no país.  
Zé da Velha é veterano do trombone e Silvério Pontes um mestre do trompete. Formaram sua parceria no início da década de 1980. Tocaram muito por aí e, em 1995, lançaram o primeiro disco que se chamou Só Gafieira. E logo de cara foi indicado ao Prêmio Sharp. Quatro anos depois, consolidaram sua colaboração com este "Tudo Dança", lançado pela gravadora Rob Digital.  
"Tudo Dança" é também uma homenagem aos grandes compositores brasileiros com obras de Jacob do Bandolim, Pixinguinha e Ary Barroso, entre outros. A faixa-título, composta por Bonfiglio de Oliveira, é um destaque que exemplifica a proposta do álbum: celebrar a diversidade rítmica e sonora da música brasileira.  
Os arranjos, todos sensacionais, foram elaborados pelos próprios e mais Rogério Souza, que também contribuiu com o violão. O disco conta com a participação de músicos renomados, como Jorginho do Pandeiro e Paulo Moura, o que se mostra uma verdadeira covardia em matéria de qualidade.  
Segundo o Dicionário Cravo Albin de Música Brasileira, "'Tudo Dança' foi bem recebido pela crítica, permanecendo por cinco semanas na lista de recomendados do jornal O Globo e sendo indicado como um dos melhores lançamentos do ano (1999). O álbum solidificou a reputação da dupla como guardiões da música instrumental brasileira, influenciando gerações de músicos e apreciadores do gênero."  
Em resumo, "Tudo Dança" é mais do que um álbum: é um testemunho da riqueza e da vitalidade da música brasileira. Através de grandes interpretações e arranjos sofisticados, Zé da Velha e Silvério Pontes oferecem uma experiência sonora que celebra a tradição sem deixar de inovar, convidando o ouvinte a se deixar levar pela dança dos sons que definem a alma musical do Brasil.  


No encarte que acompanha o CD, Hermínio Bello de Carvalho escreve que "Afirmar que os dois fazem parte do primeiro time da melhor música instrumental do mundo é chover no molhado. Sugerir que deveriam ensinar nossos sambas e choros em todos os colégios da rede pública é óbvio demais: lugar de mestres é na escola. E deduzir que este disco vai ser escutado a todo vapor em todos os quintais brasileiros, isso é coisa fácil. Difícil - e como vai ser difícil! - é os programadores de rádio arranjarem desculpas, se não o colocarem em suas programações. 
Porque, mais do que tocar maravilhosamente, Zé da Velha e Silvério Pontes ajudam a entender como o Brasil poderia ser melhor se outros moleques peraltas e travessos iguais a eles tivessem a oportunidade de aprender a escutar e - quem sabe? - até tocar as músicas que acabo de ouvir, transbordando a mais desbragada e sincera emoção". 
Acho que não precisa dizer mais nada, né? 
A fina seleção de músicas é a seguinte: 
Bole-bole (Jacob d Bandolim) 
O Bom Filho à Casa Torna (Bonfiglio de Oliveira) 
Vê se gostas (Waldir Azevedo e Otaviano Pitanga) 
Despedida da Mangueira (Benedito Lacerda e Aldo Cabral) 
Paciente (Pixinguinha) 
Revendo o Passado (José Freire Jr.) 
Doce Melodia (Abel Ferreira) 
Tudo Dança (Bonfiglio de Oliviera) 
Sonhando (K-Ximbinho e Del Louro) 
Pra Machucar Meu Coração (Ari Barroso) 
Se Você Jurar (Francisco Alvez, Ismael Silva e Newton Bastos) 
Vou Deitar e Rolar (Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro) 
Rosa (Pixinguinha)
O CD pode ser comprado nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=qPoZGL8BRQ0 . 

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Na meia luz (ao som de Roberto Menescal)

 Por Ronaldo Faria


 
Bar a meia luz, como já mostrou o profeta. Na garganta e nas bocas, goles de bebidas se enroscam na língua enrolada do fim de noite etílica. Casais embriagados de desejos e amor, que usarão as mesmas gargantas para tantas coisas mais, como beijos, arrotos, vômitos, juras de amor eterno e terno. Solitários também estão a se entregarem à volta para seus mundos solitários, assim como garçons a pedirem que Deus expulse do lugar todos os restantes. “Já coloquei todas as vassouras, rodos e escovões detrás das portas. O que mais faço pra fazer esses merdas partirem daqui?” – perguntava a garçonete novata desesperada para conseguir pegar o último ônibus de linha antes do amanhecer, algumas poucas horas logo, perto e depois. Sem apóstrofe para conseguir escrever ou descrever a métrica cena, o poeta risca no guardanapo todo o papo que depois relatará ao fim.
No delírio das borbulhas que sobem nos copos, soçobram delírios, lírios nunca plantados, átomos de células dispersas sem pressa de chegar. Sentado num banco de praça que descansa corpos saídos do bar e já viu até alguns dormirem a ressonar o sonhar daquilo que poderia ter sido, cadências surgem a povoar a imaginação. Vagamente, como deve ser toda a mente carente de semente a brotar do amor, os minutos vão rareando, pombas fazem seu barulho de arrulhos e mendigos, dignos de sua função, não interrompem a cena finda. “Graças aos céus o último pediu a conta. Acho que ainda dá tempo, se correr, de pegar o busão”, fala a moça que espera ver a filha acordar antes da escola de manhã. Na cozinha, Dona Graça, cozinheira e mãe de santo, agradece às entidades o fim do expediente.
No céu, a lua, se a poesia parnasiana ainda estivesse em voga, enterneceria até o coração mais rude. Ao léu, na utopia do sol que quer retornar pé no ante pé, penalizado com a conta de luz que os pobres mortais pagam no final do mês, as encostas e morros se cobrem de nuvens no arrabalde da fase romântica da vida literária. Na rua e nos olhos circulam a morena de Ipanema a viajar delirante na sua loucura nunca refeita, feito personagem prostrada na estrada cercada de mata virgem. Na loucura que a ternura posta feito meliante diante da prisão inevitável, o afável soluço do luto inenarrável. No meio de tudo, as letras que escurecem a tela branca de milhões de pontos ligados ao criar. O mar? Este, longe, sombreia de maré e maresia a orgia que não aconteceu. Tardia, a rebeldia de pensar fez antever e ver o prólogo que a cortina fechada do final não deixou o pano baixar.

sábado, 17 de maio de 2025

Piramboia da parafuseta

 Por Ronaldo Faria



Hora de poder tresloucar.
Será aqui o final do meu lugar?
Cheiro de unção na voz silenciosa e ciosa.
Belicosa gramatura de papel.
Sob o véu, há beijo ou fel?
Encoberta, a vértebra é mel.
Mas, ao fundo, dói pra dedéu.
Ao preço da cerveja antevejo virar pinéu.
Cobrir vício sem sevícia é só léu.
Justiça existe? Só se for chegar no rio em chiste.
Nalgum bolso os dedos se cobrem de cobres.
Neles está a magnânima fragrância.
Poucos, porém, a podem borrifar.
Vilipêndios nos compêndios.
A estátua de olhos cobertos chora sem dó.
Na faculdade o menino treme de medo.
“Será que vou dar jeito por aqui?”
Mal sabia que somos todos só ironia.
Entre tantos 171 viraria quase supremacia.
Lembrança ancha a segurar o copo que caía.
Na rede a embalar o bel prazer de Bel.
Pichações de ações e canções ultramarinas.
Nomes, sobrenomes e pronomes.
Votos, vestes e loucos revezes de vezes perdidas.
Na festa louca, até fezes no quarto escuro de fotos.
No não voltar, não há como retornar.
Mesmo que agora falte um tanto de ar.
Jaca mole, tanto se come até que se empanturra.
No reco-reco, batuca o tico sem o teco.
Como diria no passado, milorde é picardia. E que se foda!
Kriptonita no Super-Homem dos outros é refresco.
Versos no guardanapo da água furtada.
Na fruta comida, formicida do depois solitário.
Refratário, o poeta sofre com aquarela transversa.
No esquecer, o foder com o sofrer ao alvorecer.
Feito bicho da seda, falta seda para enrolar.
Na festa se atesta a testa colada no testículo.
No sertão o luar agrada até sapo que vai morrer no sal.
A ver o boi mugir, saudade do filho perdido.
Na verdade, só a vaca com as tetas de leite lembra dele.
E como é bom relembrar a lenha no fogão a crepitar.
A brincar de carro de bois em sabugos de milho.
Fugir das abelhas da África prontas para picar.
E saber e crer que em algum momento fui feliz.
No barulho da cachoeira a beijar a índia finda.
A descer a floresta e cobrir de corpo desnudo a amada.
Ser dono de si e também nada conseguir ser.
Mas, para quê serve essa vida sem amanhã?
No deletério etéreo de bolas a balangar, o criar.
No som, Caymmi diz que vai só, mas vai. Eu idem.
Afinal, no final só nós iremos saber-se-á pra aonde.
Nas sobras e sombras das luzes e dos minutos, seguiremos.
Aos amores antigos e lúdicos, meu eterno amor.
Até dedicação na lembrança do infortúnio do coração.
Lúcido ou embriagado, tragado e chinfrim, estarei aqui.
E se me sobrarem segundos sem dor, escreverei.
Escribas de nós mesmos, aprendemos a cada dia a sermos.
Nos cadernos de caligrafia sem rima, subverteremos.
Enganaremos a nós burros mesmos, a esmo.
Mas, tontice da vida, viveremos mesmo assim.
Com sangrias, entranhas múltiplas, estranhas luas.
Pororocas múltiplas nos faremos rio e enchentes.
Nas muitas gentes travestidas de nós, renasceremos em flor.
Brincaremos de ser e crer, malfadados e dados retardados.
Como dardos, seremos lançados no destino.

Nos acertos e erros, talvez possamos aprender a sambar. Senão, valeu o passo da passista que é desejo de todos nós, o roncar da cuíca perdida na bateria a desfilar, o suor da baiana velha da ala do tempo, do mestre-sala a homenagear a porta-bandeira com seu bastão a girar, do compositor repositor de história, do batuqueiro maloqueiro que não desceu porque estava dormindo a sonhar. Tudo escondido na internet.
E assim, chegado o novo dia na chegança da vida, que sinhá e sinhô fodam-se sim! Lá fora, quem sabe, surgirá o cheiro brejeiro de jasmim.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Na citronela sem ser vela

 Por Ronaldo Faria



Quase noite ou quem sabe madrugada, citronela queima na procela da vida. “Quem sabe ela espanta o mal do meu sorriso?” Marcos, marco próprio do impropério etéreo ser, esperava que o incenso sem senso ou marca ao menos impedisse que o pernilongo barulhento dos ouvidos alheios o deixasse em paz. “Mas, agora, tanto faz... Meu amor, mordaz, já não me apraz.” Teclado nos dedos sem enredo, seguia seus santos vorazes e tantos exus sagazes. No exangue sangue que corria entre o coração e as veias, jatos de versos e canções jogavam poesia nas suas desilusões. A todas ou todos, as melhores e predestinadas unções.
No mar silencioso e cioso de amores que chegarão com a madrugada deitados em camas de algodão ou estofados de carros populares, o cheiro e a brisa de cigarros mil. Nas ervas que dizem ser das trevas, a liberdade da nostalgia que flui sem parar. Certamente, em algum lugar do mundo, Efigênia, Lucrécia ou Valentina estarão a sonhar sua própria ilusão. Já noutro, inverossímil e torto, Honório, Tarcísio e Otílio se embriagarão de desejos e sofreguidão. Cáusticos, todos eles e elas, nas procelas, povoarão seus vinténs e infaustos em único porém.

(Ao som de Ivan Lins)

terça-feira, 13 de maio de 2025

Nome composto pra abastecer no posto ou bater no poste

 Por Ronaldo Faria

 

Na dimensão entre a loucura e a razão, como camaleão que se equilibra para não despencar do galho fragilizado no chão, Diogo Baltazar, que creditava ao seu nome composto todo o azar, caminhava ao lado de Beatriz, sua nova fada. Linda, sensual, mulher dessas que depois do primeiro beijo tem que se levar sem pensar para o altar, ela completava e locupletava cada trama alternada do seu jeito bipolar. Diogo Baltazar sabia que agora, se chovesse canivete, ele pegaria cada um e usaria como gilete no barbear. Beatriz tinha gosto de anis, seus olhos brilhavam como luar cris, seu corpo não precisava nunca que se passasse um mero esmeril. Era perfeito. Cada curva, cada pedaço, cada minúsculo detalhe, todos eram aquilo que o escultor mandava sua estátua de mármore falar. Impossível melhorar.
“Meu nome que rima com azar, depois de Beatriz, nunca mais me incomodará. Posso me chamar Cagalhão Dramalhão, Lupércio do Trapézio Cortado, Joselito Piroca Murcha, tanto faz. Nada mais me faz deteriorar”, pensou no seu métrico pensar. Estar ao lado daquela deusa era tudo que poderia sonhar. Afinal, ele sabia que se Vinicius e Tom estivessem vivos a garota trocaria de Ipanema sem pagar aluguel ou mesmo seguir além-mar. Beatriz seria a musa difusa de todos poetas, profetas, pragmáticos estetas. Nela, nas suas curvas nunca turvas mesmo sob a escuridão de um eclipse lunar, a vida depositaria todo sonhar. E ele, logo ele, era quem tocava o violino principal na orquestra temporal das coxas que levavam ao lumiar.
E assim, de forma assimétrica e similar, Diogo Baltazar e Beatriz juntaram pernas e espermas, bocas e comédias, salivas e clamídias, sevícias perfumadas e dragadas nas drogas que a paixão dá. Serviram-se de afagos e fátuos clamores, cheiraram pós e flores, viveram paixões e amores. Dores? Tiveram dores. E tomaram remédios e chás alucinógenos para tratá-las. Táteis, se tocaram por inteiro, com esmero e tiro certeiro. Conheceram cada milimétrico e tétrico lugar que aos guias, compêndios, tratados e catálogos de anatomia passariam despercebidos. Foram, se furtaram e foram-se. Se foderam e fornicaram como mandam os dez ou doze mandamentos da felicidade. Fizeram pós-graduação na faculdade da carência finda e se doutoraram em escatologia. No todo, doutrinaram as mais carolas beatas da frigidez feminina e os mais estúpidos machos em seus púlpitos de garanhões. Foram mestres e aprendizes. Em restaurantes de estrelas até comeram perdizes.
Um dia, porém, Beatriz cansou de viver feito abelha, a voar e sugar flor murcha e carente de mel, em pleno fel. Decidiu que era hora de recomeçar, de brotar em terra seca, carcomida de comida e prazer fugaz. Queria somente rever o suor que escorria apenas por rever aquilo que logo poderia ser: o toque certeiro, o beijo feito centeio a embebedar a cerveja de álcool e loucura às bicas e bocas cheias de sede e sedentas de querer sorver. O tocar dos seios pelas mãos trêmulas do amante primeiro, o anseio do gozo vadio e derradeiro, no carro a romper estradas e quadras que se deixam para trás. O parar no gole de gim, da tônica que o novo amante bebe feito Coca-Cola. Pois Cuba ainda será livre!
Sem Beatriz, Diogo Baltazar voltou a ser o mero ser de azar. Nada mais lhe servia. A esquina ou a rua logo ali, ele não via. Nem sequer antevia a ressaca que batia mais forte do que a mesma das ondas no mar. Litros e litros, postes eletrificados e santificados a lhe segurar da queda certa, limites entre a loucura e a lucidez, nada se comparava a perder a tez de Beatriz diante de seu rosto. Torto, cambaleante, infante de si mesmo, pecador de um confessionário ordinário que era o banheiro do bar mais fétido de qualquer lugar, Diogo Baltazar seguia na tragicômica e icônica estrada que traçou para si. Picardia tardia de uma efeméride que fez realidade da vida, não pensava em mais nada. Melhor logo morrer. Até que numa madrugada, dessas tragada na desilusão de asfalto infausto onde se cai bêbado em bênção, ele viu Violeta, nome de flor, crente de cabelos longos e ensebados que saía da igreja “O Senhor é Primeiro”. Foi amor à primeira vista estrábica em cataratas fluídas esbranquiçadas, senão. Logo chegou na frente dela e disse, resoluto e vendilhão: “Quer casar comigo?” Ela, com sua Bíblia encardida e nunca lida, disse logo sim.
Hoje, Diogo Baltazar é funcionário público, evangélico e famélico de viver. Volta e meia, no meio da inócua volta, lembra de Beatriz, atriz principal de um musical sensacional na Broadway dos EUA. Ela se casou com um produtor norte-americano de talento. Teve um filho de rebento e ligou as trompas para não atrapalhar mais a carreira. É pop star internacional. Seu nome artístico é Beatrix do Mix. Mas Diogo Baltazar não tem tempo para ouvir ou ver isso. Seus oito filhos, vindos graças ao bom Deus e a fertilidade de Violeta, esperam que ele possa lhes prover de alimentos reais, substratos da falência total. Na volta da feira dominical, ele deixa na mesa da cozinha um tanto de verduras, legumes e lágrimas a sobrar. Do quarto, a sua nova e velha flor marital diz apenas “Dô, estou fértil! Deus disse crescei-vos e multiplicai-vos!” Ao ser fulminado de si só resta ao Criador obedecer. Dos seus solhos caem gotas de sangue. E milagre não há. Outro rebento logo irá arrebentar.

domingo, 11 de maio de 2025

Aulas de jazz com Jessica Wiliams *

Por Edmilson Siqueira



O álbum "...And Then, There's This!" de Jessica Williams, lançado em 1990 pelo selo holandês Timeless Records, é uma obra marcante no cenário do jazz contemporâneo. Gravado em 1º de fevereiro de 1990 no Paradise Studios, em Sacramento, Califórnia, o disco apresenta Williams ao piano, acompanhada por John Wiitala no contrabaixo e Kenny Wollesen na bateria .  
Após seu álbum anterior, Nothin' but the Truth (1986), Williams lançou diversas gravações ao vivo e de estúdio por seu próprio selo, Quantum. Essas produções, muitas vezes distribuídas em fitas cassete, demonstram sua independência artística e dedicação à música. Em 1990, ela teve a oportunidade de gravar um álbum em trio para a Timeless Records, consolidando sua posição no jazz internacional.  
Jessica nasceu em Baltimore, Maryland, em março de 1948. Começou a tocar piano aos quatro anos, teve aulas de música com um professor particular aos cinco e, aos sete, matriculou-se no Peabody Preparatory. Estudou música clássica e treinamento auditivo com Richard Aitken e George Bellows no Conservatório de Música Peabody. 
Aos doze anos, já com o gosto apurado pelo jazz, ouvia Dave Brubeck, Miles Davis e Charles Mingus. Começou a tocar jazz na adolescência, com Richie Cole, Buck Hill e Mickey Fields. Em uma entrevista de rádio com Marian McPartland no programa Piano Jazz da NPR, em 1992, ela afirmou que suas principais influências não eram pianistas, mas Miles Davis e John Coltrane. 
Em junho de 1976, Jessica começou a se apresentar regularmente com a banda "Philly Joe Jones", em Nova Jersey e com Lex Humphries na Filadélfia e em Nova York, antes de se mudar para a Costa Oeste em outubro de 1976. 
Em 1977, Jessica mudou-se para São Francisco, onde tocou em bandas locais no Keystone Korner. Trabalhou com Eddie Harris, Tony Williams, Stan Getz, Bobby Hutcherson e Charlie Haden, liderando seu próprio trio de jazz.


 
Dois anos depois, fundou sua própria gravadora, a Red and Blue Recordings. Ela também fundou sua editora, a JJW Music/ASCAP, e um negócio de vendas por correspondência pela internet.
O álbum em questão "...And Them, There's This!"é composto por dez faixas, incluindo seis composições originais de Jessica e interpretações de obras de Thelonious Monk, George Gershwin e Irving Berlin. A seleção demonstra sua habilidade em equilibrar composições próprias com clássicos do jazz: 
"Bemsha Swing" (Thelonious Monk)
"...And Then, There's This!" (Jessica Williams)
"All Alone" (Irving Berlin)
"Nichol's Bag" (Jessica Williams)
"The Child Within" (Jessica Williams)
"Elaine" (Jessica Williams)
"The House That Rouse Built" (Jessica Williams)
"Newk's Fluke" (Jessica Williams)
"Swanee" (George Gershwin, Irving Caesar)
"I Mean You" (Thelonious Monk) 
As composições originais de Williams, como "Nichol's Bag" e "The House That Rouse Built", mostram sua criatividade e domínio da linguagem jazzística. Sua interpretação de "Bemsha Swing" e "I Mean You" presta homenagem a Monk, um de seus principais influenciadores. 
Conforme assinalaram os críticos, "a performance de Williams é caracterizada por um senso rítmico apurado e técnica impressionante. Sua capacidade de alternar entre passagens vigorosas e abordagens delicadas confere profundidade emocional às interpretações. A interação com Wiitala e Wollesen resulta em uma coesão sonora que destaca a sensibilidade do trio." 
Steve Loewy, crítico do AllMusic, atribuiu quatro estrelas ao disco, destacando-o como "um dos melhores exemplos de performance criativa ao piano da década de 1990". A obra também é bem avaliada por comunidades de jazz online, com uma nota média de 4,5 em 5. 
"...And Then, There's This!" solidificou a reputação de Jessica Williams como uma das principais pianistas de jazz de sua geração. O álbum exemplifica sua habilidade em fundir tradição e inovação, oferecendo uma experiência auditiva rica e envolvente. Mesmo décadas após seu lançamento, a obra continua a ser referência para apreciadores e estudiosos do jazz. 
Jessica Willians morreu em março de 1922, aos 73 anos.
 
O disco está à venda na Amazon. Não encontrei no Mercado Livre. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=hVbxtUM1bv4&list=PLP3iBlP8Vd2O2JlPpBs1Vhwl07NuHTQd5 .
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...