sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Com João Donato na cabeça e no coração

 Por Ronaldo Faria

 


Mariângela, filha de pais apaixonados por Ângela Maria, está na Pedra do Arpoador a ver mais um fim de dia que brilha no Morro Dois Irmãos. Logo o sol estará batendo forte no Japão. E lá, quem sabe, outra Mariângela de olhos puxados estará sentada em alguma pedra a ver a luminosidade chegar por detrás do Monte Fuji.
-- Posso sentar do seu lado?
O pedido, vindo de Afonso (mas só um pouco depois ela saberia o nome do rapaz), surgiu solene, quase de joelhos, não fosse correr o risco de sangrar no corte que uma ponta de gnaisse quartzo feldspático de granulação fina pudesse fazer.
-- Claro que pode. O lugar é público e o por do sol é de todos.
 
Bethânia, moça que os pais, baianos, colocaram o nome em homenagem à própria irmã de Caetano, está sentada no Ponto dos Mentirosos, a assistir o mesmo sol que morre a se perder num pedaço que o Rio Caraíva dá em majestade para a natureza plena. Igualmente, uma mulher da Austrália espera a sua chegada solar.
-- Posso sentar do seu lado?
A voz de Sérgio (mas só outro tanto depois também descobriria ele assim se chamar) soou firme e convicta ao colocar uma garrafa de cerveja na mesa e dizer que a vida era bela demais, desde que fosse vivida na sua plenitude e amplitude.
-- Claro que pode. Desde que pague a conta do que consumir depois.
 
No Arpoador, um chope depois, uma caminhada do Leme até o Leblon e conversas mil para deixar a noite chegar ao antever da madrugada que teimou numa chuva fina e o som de motores de carros e luzes de neon.
 
Em Caraíva, algumas cervejas mais, pastéis de arraias, o barulho do mar logo perto, as pequenas marolas que o rio traz. Daí, seguir para o Forró do Pelé e descobrir que não há tempo entre o tênue luar e o amanhecer.
 
Mas, maledicente, o sol resolve voltar. Mariângela e Afonso, tontos de drinques e efemérides mil, beijos tresloucados e canções que uma cidade maravilhosa traz, se despedem e pedem que a Pedra do Arpoador seja eterna e terna.
 
Na mesma forma sacana da claridade real, Bethânia e Sérgio se despem e se atiram ao mar. A água começa a misturar o sal em seu verde ao doce do rio marrom. Em volta não há nada que queira acordar. O efêmero já se tornou dono do lugar.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

A ouvir Henrique Simonetti 1955 (ou fora do bumbo 4)

 Por Ronaldo Faria


Uma orquestra traz delírios e lírios de dois anos de Zuenir (que na bem-aventurança não é o Ventura) nascer. E o CD, efêmero hoje como o rádio não o era à época, traz um som rodeado de notas que denotam o tempo fugaz. Já se vão quase 70 anos.  Há poucos lampiões a gás, mas esses povoam apenas os rincões cheios de senões e canções que envolverão o menino que daqui a pouco chegará entre choros e consolos do “creia, irá vingar”. Na rua as lotações dividem o lugar com os trilhos do trem e carros barulhentos e lentos. Homens de fraque e chapéu, mulheres de vestidos longos e coloridos, dividem o espaço com o som de Estrela D’Alva. Que lindas pastoras cantarolaram a canção que não sai da lembrança? Na festança que urge fazer as cores da vida desabrocharem, romântico e galante rapaz manda flores para aquela que crê desposará. O leiteiro larga os frascos ainda frescos à porta onde a mãe buscará para o café da manhã com cara de manteiga (margarina ainda espera brilhar integralmente às mesas de um lar). Na venda, a caderneta descansa para o lápis do português anotar o que será cobrado depois. E assim, no fulgor de diásporas e reencontros com a saudade desmedida, travestida de canções e inertes soluções, a vida segue seu rumo. Logo um rebento, arrebentado sabe-se lá de que forma, talvez à revelia da mulher que obedecia os desejos do esposo, brotará no lar, um sobrado assobradado no coração do bairro da zona à norte qualquer, chegará. Daí, e só a partir daí, um novo bumbo fora de compasso tocará até a morte.
-- Minha música, traga a túnica para o meu gim com tônica tomar...
Zuenir cambaleia, mas não titubeia. Muita coisa, acredita, ainda está por vir.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

A bossa nova começando a ganhar o mundo

 Por Edmilson Siqueira


Para quem ainda tem alguma dúvida da importância da bossa nova no mundo, aqui vai um exemplo: em 1963 um jazzista norte-americano foi tocar no Newport Jazz Festival. Era Herbie Mann, saxofonista, clarinetista e flautista. Juntou um grupo e músicos de alta qualidade, e no seu show de cinco músicas, que durou pouco mais de 40 minutos, nada menos que três músicas foram brasileiras, duas de Jobim (uma em parceria com Newton Mendonça e outra com Vinicius de Moraes) e a outra de Luiz Bonfá. 
O Festival de Newport é um festival de jazz, que começou em 1954 em Newport, Rhode Island (EUA). Em 1972, o festival aconteceu em Nova York, alternando com Newport a partir de 1982. Desde 1986 o festival passou a ser designado por JVC Jazz Festival.
A apresentação de Herbie Mann e seu grupo foi gravada na íntegra e acabou virando um LP e, depois, em 2001, um CD, que é o que eu tenho. 
Herbie Mann nasceu em 1930 e no início da carreira tocou saxofone tenor e clarineta. Sua canção mais popular foi "Hijack", que esteve durante três semanas, em 1975, como o hit dançante número um da Billboard.
Foi o mais popular flautista de jazz da década de 1960. Pesquisou a bossa nova, e até mesmo gravou no Brasil, em 1962. Incorporou música de diversas culturas em seu repertório. Ele morreu em 2003, após extensa batalha contra um câncer de próstata.
Como se vê, nesses dados colhidos na Wikipédia, Herbie já estava bem familiarizado com a bossa nova quando se apresentou no festival de jazz. Ou seja, desde a famosa apresentação no Carnegie Hall, em Nova York, a bossa nova se tornou uma música definitiva para os norte-americanos. Depois ganhou o mundo e até hoje é tocada, gravada e cantada por aí, principalmente nas rádios de jazz que, depois das facilidades da internet, se espalharam pelo mundo e podem ser ouvidas em qualquer país.
 


A primeira música do show foi "Soft Winds" (Fred Royal e Benny Goodman), alegre e com marcante percussão, se aproxima dos sons latinos a que estamos mais acostumados, ficando ali entre um bolero bem-marcado e um mambo. Destaque para o show de marimba de Davi Pike.
Já a segunda faixa se transformou numa interpretação clássica do clássico de Tom Jobim e Newton Mendonça - "Desafinado". Durante muito tempo ouvi na rádio TSF Jazz, de Paris, o início dessa música numa propaganda da própria rádio que dizia haver ali o melhor do jazz. Tocada num ritmo muito mais apressado que todas as outras gravações dessa música, a interpretação de "Desafinado" do grupo e, principalmente da flauta de Herbie impressiona pelo inusitado sem perder a beleza melódica e harmônica.
Na terceira faixa, Herbie permanece na música brasileira. Outro clássico, desta vez de Luiz Bonfá, "Samba de Orfeu". E, apesar do grupo não ter nenhum brasileiro, a bateria e a percussão, a cargo de Bob Thomas, Wilie Bobo e o cubano Caco 'Patapo' Valdez, não fica nada a dever a um bom batuque brasileiro.
Na quarta faixa, o jazz mais tradicional se faz presente, com "Don't You Know", embora a percussão aqui também puxe um pouco para a música latina. É a faixa mais longa do disco com seus 10 minutos e 49 segundos. 
Por fim, a interpretação de Herbie Mann de "Garota de Ipanema", creditada no CD apenas a Jobim, talvez por ser só instrumental, mas isso não é comum. Talvez fosse em 1963.
Nessa última faixa, que também é longa (8m05seg), Herbie respeitou mais um pouco o andamento do clássico da bossa nova. Uma interpretação mais contida, com destaque para o violão joãogilbertiano de Atilla Zoller. Além dos músicos já citados, estão acompanhando Herbie, Don Friedman no piano e Ben Tucker no contrabaixo. 
O meu CD é importado. Não encontrei no Mercado Livre, só na Amazon, mas a preços abusivos (mais de 600 reais). No YouTube há algumas faixas dispersas. Ou seja, não dá para ouvir na íntegra, mas se você encontrar por aí, a um preço razoável, pode comprar que é coisa fina.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

No mundo fora do bumbo 3

 Por Ronaldo Faria


A gentil Bixby desliga o celular depois de perguntar docemente se era isso que Pafúncio queria. Era? Talvez sim, talvez não. Mas ele disse que sim. E o aparelho silenciou. Por fim, silêncio sepulcral. Pafúncio vivia num lugar tão longe e ermo que nem entregador de aplicativo passava ali. Vez ou outra um pássaro perdido do bando resolvia pousar numa árvore despetalada de lá. Mas era raro. Quase bizarro. Contudo, Pafúncio não ligava para isso. O importante nesse instante era pensar em Maria, amada que na sua fidalguia não dava espaço para em seu mundo vassalo entrar.
Como Pafúncio amava Maria, a primeira na primazia e tardia na paixão... Na devassidão que a vida dá, entre a calmaria e a orgia, lembrava de dias passados e travessias em rios, mares e pinguelas. Se deliciava de noites entre lençóis e falsos sóis que despertavam o casal para na madrugada se amar. E vinha a ele o sabor da saliva da amada, um penetrar desbragado e louco, acariciar pleno de doidivanas tramas e ensandecidas chamas. Tudo como Nostradamus, vidente que previa tudo de forma tão maluca e insana que a tudo cabia sempre, teria dito: “Num continente qualquer, em qualquer época do mundo um homem e uma mulher se amarão de tal forma e jeito que nem o mais perfeito amor poderá traduzir”.
Um pedaço de unha que teima em nascer no canto do dedo separado do todo lhe irrita sobremaneira. Com cortador à mão, Pafúncio cata o pedaço ínfimo e infame e o corta. Apóstata de si, volta às lembranças, andanças em dias de Carnaval, fugas em ruas pequenas onde se esconde abaixado no carro para que Izak, judeu de quipá, quiçá não o visse. Para ele, na imensidão que a solidão dá, o importante era viver o silêncio, a discrepância atlântica entre dois continentes que a vida separa. Moldar amarras, criar reentrâncias que possa caminhar e traçar. Pafúncio, no furdunço da felicidade errática, pratica o lembrar que não o faz esquecer de que a vida é também navegar contra a tormenta. Pensa em religar o celular, mas desiste. Riste, em chiste, no ar existe apenas a pena de bater fora do bumbo que sua escola esqueceu na avenida no descalabro de desfilar para um desfile sem par.
 
(Com o som de Aécio Flávio e Orquestra de Cordas num tributo ao Chico Buarque)

sábado, 18 de janeiro de 2025

No mundo fora do bumbo 2

 Por Ronaldo Faria

 

A noite se embrenha nas luzes dos carros que dobram as esquinas, se esquivam dos meios em fios e redobram o cuidado para os semáforos que piscam um tal de verde e outro de vermelho ou amarelo que viram farelo aos olhos marejados. No escuro impuro e nos sortilégios da vida, Valmir proseia a esmo. Sua passageira felicidade, tardia, lhe traz um galo em sonho que avança ensandecido sobre cães e espaços. Mas que aceita seus carinhos.
-- Vai dar galo na Federal. Tenho certeza.
Ao seu lado, a caminhar na calçada de pedras portuguesas, Jeremias ouve o amigo.
-- Você não acha que é sonho pra dar na cabeça da Federal?
-- Acho.
-- Não tive dúvida: comprei dois bilhetes fechados, pra quarta e sábado.
-- Fez bem. A gente nunca sabe o que o sonho quer dizer.
-- Não sabe mesmo. Um dia, um prefeito que já morreu veio em sonho me dar a milhar. Só que eu não consegui gravar o número. E ao invés de jogar nos dois que imaginava, joguei só num. Deu o outro, seco, na cabeça.
-- Aí é ruim.
-- Ruim? Péssimo. Nunca mais o tal prefeito veio falar comigo no sonho. Deve até ter me exonerado no céu. Mas, tudo bem. Ele tem a sua razão.
-- Sou obrigado a concordar com ele.
-- Garçom, tem mesa livre?
Tinha. Sentaram e pediram a primeira leva, essa que canela de pedreiro parece ser.
-- Mas, e se não der? Morri em quase dois galos...
-- Ou quase uma perna.
-- É. É foda essa meleca de sonho.
-- Mas, fazer o quê? Você ia ver o resultado depois e descobrir que se fodeu?
-- Tem razão. Melhor arriscar e se foder do que se foder por não arriscar.
-- Bem pensado.
-- Garçom, meu parceiro, desce mais uma.
E assim ficaram os dois, a tentarem descobrir se vale a pena acreditar no sonhar. O fim da história? Nem eu sei. Isso só os bilhetes dirão...
 
(Com Maysa ainda a deixar a noite cheia de cheiro de nostalgia, cigarro, drinques e doses)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

No mundo fora do bumbo

 Por Ronaldo Faria


-- Porra, hoje é aniversário do Joacyr! Puta cara legal, mano. O cara é fera! Mandei uma baita de uma postagem no Facebook pra ele. Fiz um texto top!
-- Sério, que bacana.
-- Desejei vida longa, saúde, conquistas e tudo o mais. Arrasei.
-- Que massa...
-- Porque com o Joacyr seria sacanagem apenas dar os parabéns.
-- Com certeza.
-- Mano, lembra daquela vez nós num bar e ele pediu cérebro de boi empanado?
-- Lembro.
-- Porra, foi muito demais. Comi aquela coisa e fiquei uns três dias lembrando do boi. Só faltava mugir, com o cérebro subindo e descendo na garganta.
-- É, cara, aquela noite foi foda...
-- E aquela vez que fomos beber no boteco do portuga e roubaram o carro dele. Eu tinha acabado de ganhar um pacau de maconha e deixado debaixo do banco do carona. Os caras levaram o carro e ainda curtiram um barato!
-- Pior que foi mesmo.
-- Cara, o Joacyr tem que ser sempre homenageado. Por isso que eu postei o melhor que pude. Aliás, queria que ele tivesse marcado algo pra hoje. Eu não ia faltar. Mas ele deve estar enroscado com um rabo de saia ou enrolado no trampo.
-- É.
-- E a vez que ele inaugurou a geladeira logo depois da separação. Juntou gente pra caralho no apartamento dele. Foi uma baita festa. Todo mundo sentado no chão porque não tinha nem sofá e nem cadeira. Mas tinha a geladeira e birita.
-- Foi.
-- Teve gente que bateu recorde de cerveja e pinga. Foi da hora...
-- Com toda a certeza.
-- Mano, esse cara é lenda. Ainda bem que eu conheço ele e sigo ele.
-- Não tenho a mínima dúvida.
-- Já foi muita coisa junto e vai vir bem mais...
-- Acredito.
-- E você? Postou o que pra ele?
-- Nada.
-- Como nada, caralho? É o Joacyr, o cara, a lenda, nosso parça.
-- Eu sei.
-- Você sabe e não postou nada?
-- Não.
-- Que merda de amigo que é você. Estou decepcionado.
-- Tudo bem.
-- Mas como tudo bem? Tu é muito bosta!
-- Talvez...
-- Talvez? Com certeza.
-- Tudo bem. Tô indo.
-- Não aguenta a verdade? Como está indo? Vai pra onde?
-- Pra missa de seis anos da morte do Joacyr.
-- Como assim?
-- O Joacyr, o seu, meu, nosso amigo pica, morreu há seis anos. Valeu...
Desorientado, o homem fica parado na esquina. “Caralho, então é por isso que ele não publica nada há tanto tempo? Porra, o Joacyr podia ter avisado...”
 
(A ouvir a deusa de olhos verdes Maysa, outra para quem alguém deve estar preocupado com a ausência de notícias recentes)


terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Quase lá e cá

 Por Ronaldo Faria

Meu São Pedro me ajude. Se aprume na brumada e traga fartura. Se não puder, deixe tudo como está. Afinal, já disse um palhaço que pior do que está não dá para ficar. Ou dá?

É noite, perto da madrugada tragada de tragos de goles e fumaça. No som, Cazuza na confusa dramaturgia que é nosso dia a dia. Na nossa próxima plateia há desde o crente a ateia. Em tudo, a limítrofe estrofe que a parcimônia da felicidade se fez e desfez. Na leitura do futuro há gentílicos, nunca um inglês. Na Indonésia, centenas. Quem será o mecenas? Às dezenas, o dízimo de quem doa o amor e os beijos. O cheiro da essência do incenso incendia o negror de luzes que sobrevivem acesas em quadrados cúmplices de não ser. No piscar que aos píncaros da luz traduz o fim de algo, a certeza de que algo há de ficar. Nem que seja só para sufocar a dor que a lâmina traduz no seu frio chegar.
 
Meu São Jorge, com sua espada cheia de sangue de um exangue dragão, me deixe continuar a escrever. Senão, culpa minha de amar. Mas que se algo vier, o façam réu até maior léu.
 
É noite, incongruente e demente. Gemente de si mesma. A acreditar que a insólita verdade seja a devoluta efeméride a se viver. E para o passado sorveram anos no ralo de um tempo qualquer. Na ilusão da felicidade, na falsa idade, na demérita incerteza de alguma rua de Copacabana, profana, que fez sonhos escorrerem em corretas sentenças de que a vida tem um final que nem o maior escritor soube traduzir. Fosse aquilo que quiséssemos, não haveria poesia, parágrafos, dor. Sequer haveria um bar, blasfêmias efêmeras, traduções traumáticas, louvor. Nem Arpoador, o melhor do bom, benesses e horror. Apenas as penas a que fomos impingidos, ungidos de crenças que não se sustentam.
 
Meu São José, porque não vivi uma puta no Barbarela às sete? Agora, numa ágora que não há, peço apenas que tenha pena do que restou das ruas vazias do incrédulo Baixo Leblon.
 
É noite, grandiloquente que nem merece trema e a trama insurgente que a gente acredita pode querer ser. Inócua, vitimizada e viralizada, guardada em poucos momentos e tormentos, quiçá excrementos que deixamos a cada lento viver, se faz viva. Por fim, no interregno precípuo que a falácia traduz como felicidade, um misto de lugar nenhum e cidade. Talvez o medo da descoberta que o choro primeiro e primário não valeu. Que a fuga desandou. Na bazófia do agora (seja lá o que isso for), a inclemente ausência que a premência de querer ter vivido ainda traz. Na loucura fortuita da vida, a certeza de que a anuência da ciência crível não há. Numa esquina um louco ainda está a cantar um eu te amo tanto.
 
Meu santo nenhum, satânico e satanizado em diásporas, me dê ao menos a resposta que tanto busco, posta em caminhadas sem volta e revoltas nunca correspondidas em olhares.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Um som moderno, de 1975

 Por Edmilson Siqueira


O disco foi gravado entre março e maio de 1975. Além dos artistas principais, ele conta com as participações especiais de Hélio Delmiro, Toninho Horta, Ivan Lins, Danilo Caymmi, João Bosco e Rildo Hora. 
Bom, com um time desse participando do disco, os artistas principais tinham de ser muito bons. E eram mesmo: Luiz Eça, Bebeto e Hélcio Milito formavam o Tamba Trio, um dos melhores trios que surgiram no Brasil na onda da bossa nova e que sobreviveu para além do apogeu do estilo no Brasil. Na verdade, com formações diferente, ele só terminou mesmo em 1992, com a morte do pianista, arranjador e bandleader Luiz Eça. 
O Tamba Trio foi formado no início dos anos 1960 e começou a tomar forma ainda acompanhando a cantora Maysa e depois a cantora Leny Andrade numa temporada na boate Manhattan, atuando ao lado de Luís Carlos Vinhas (piano) e Roberto Menescal (violão). Em seguida, 1967, virou um quarteto e depois Luiz Eça saiu e entrou o campineiro Laércio de Freitas, sobrevivendo até 1970. 
O disco em questão foi gravado no primeiro retorno do trio à sua formação original, em 1971. Essa fase durou até 1976. Quatro anos depois, juntaram-se novamente, com o baterista Rubens Ohana, que já participara do Tamba Trio, substituindo Hélcio Milito. O grupo continuou até 1992, quando faleceu Luiz Eça.
Depois dessa um tanto longa introdução, devo dizer que o disco é ótimo. É praticamente uma síntese da música brasileira, juntando o samba tradicional com o samba moderno, o jazz bossanovista com a música mineira e outras surpresas.
A primeira faixa é "3 Horas da Manhã", de Ivan Lins e Waldemar Costa, um samba muito bom da primeira fase de Ivan. Tão jovem que nem canta ainda, só participa tocando violão. Mas a voz e a cozinha do Tamba Trio, acho até desnecessário dizer, são impecáveis.
Em seguida, na segunda faixa, "Visgo de Jaca", música de temática nordestina, própria dos festivais da época. Seus autores são o gaitista Hildo Hora e o jornalista Sérgio Cabral. Além do coro do Tamba, o destaque fica com o improviso da gaita, sempre boa, de Rildo e uma guitarra a quem não deram créditos.
A terceira faixa é "Bola ou Búlica", dos também iniciantes à época João Bosco e Aldir Blanc. Já dava pra perceber que a dupla ia longe. Além da qualidade da música e da letra que marcariam toda a obra da dupla, o Tamba se esmera no acompanhamento, com um sintetizador, novidade à época, tocado por Luiz Eça.



A primeira música só instrumental é "Beira-Mar", um belo tema de Ivan Lins, onde o grupo pode demonstrar como eram suas antigas apresentações só com piano, bateria e contrabaixo.
"Olha Maria", a música de Tom Jobim que se chamava "Amparo" e só ganhou o novo nome depois que Vinicius de Moraes e Chico Buarque colocaram letra, é a quinta faixa. Apenas instrumental (tanto que os nomes dos letristas não constam dos créditos), traz o contrabaixista Bebeto solando a música com uma flauta e o baterista Hélio Milito tocando sinos. 
O ritmo brasileiro mais marcante volta à faixa seis, com o "Chorinho Número 1", de Durval Ferreira. Solado ao piano, o chorinho ganha ares mais nobres, sem perder a essência desse gênero tipicamente brasileiro e carioca. 
Na faixa sete é a vez de Danilo Caymmi mostrar o samba de sua autoria, em parceria com Sidney Miller, "Jogo da Vida". Danilo faz o violão na faixa. Um samba carioca por excelência. 
A música mineira de Toninho Horta e Fernando Brant chega na oitava faixa: "Sanguessuga". Apesar da presença do letrista no crédito, a faixa é só instrumental com belo coro do Tamba.
Ivan Lins, com seu parceiro dos primeiros anos, Ronaldo Monteiro, volta na faixa nove, com "Janelas". Mais um instrumental com belo solo de Eça. O violão fica com Ivan Lins novamente.
A faixa dez é mais um samba de Danilo Caymmi, desta vez em parceria com Ana Maria Borba, "Contra o Vento". O Tamba se encarrega de tudo - voz e instrumental - e Danilo ajuda com o violão.
O sucesso de Toninho Horta, que se imortalizaria cinco anos depois na voz de Milton Nascimento, "Beijo Partido" surge na faixa onze, numa interpretação que se não se compara à de Milton gravada em 1980, não fica devendo muita coisa. Toninho Horta faz o violão na faixa.
Por fim, a décima-segunda música é de outros dois iniciantes à época: Paulo Cesar Pinheiro e Hélio de Souza. Trata-se de "Chamada". É outra música só instrumental, onde se destaca a flauta de Bebeto, apresentada com a qualidade de sempre do Tamba.
A conclusão de quem ouve esse disco agora, quase meio século depoois de gravado, é que a música brasileira não ganhou a notoriedade mundial  por sorte. Ela tem muita qualidade. Vários novos compositores são praticamente lançados nesse disco e não ficam atrás dos outros grandes que já projetavam a bossa nova mundo afora. Um disco que poderia ter sido gravado hoje, mas tem 49 anos.
 Há alguns exemplares à venda no Mercado Livre e dá pra ouvir na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=f4-960NrFwk&list=PL1lKP2m45w-LETCMdFqyTeidBPWwnOATO

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Não tem jeito

 Por Ronaldo Faria


-- Amanhã é dia de ressaca?
-- Bem provável. Quase certo.
-- E isso não te deixa preocupado?
-- Claro que não. É o reverso do verso. Ainda bem que tem. Senão não teria poesia ou escrita a se fazer...
Na verdade, a verve do diálogo é sobremaneira certeira no âmago do pseudo poeta. Estafeta de quinta categoria quando o escrever se inscreve na multidão, Gabriel vira anjo de si mesmo. A esmo, ensimesmado, cravado de suas próprias flechas, povoa as províncias que o sismo da vida deixou em escombros sobreviver. Em esverdeados campos, descampados da alma, emaranhados destravados de tanajuras fincadas pelo rabo e juras, o juramento juramentado em cartório que o inglório subjugado não viu no céu anil. Há apenas as estradas cheias de terra e poeira, a semeadura dura de uma terra que só dá lágrimas no rosto.
-- Será esse meu último escrito e dito? Desdito e proscrito? Finito e crível?
-- Por quê?
-- Sei lá. A loucura é como semente em campo bom. Procria, cria raízes, se faz, traduz lamúrias antigas, fracassadas escrituras. De pai para filho...
-- Virou tradutor do seu futuro?
-- Quem sabe...
Do lado, um xote arrasta no fole da sanfona que geme sem parar. Nalgum lugar, vestido de escuridão e mansidão, a imensidão se despede de sê-la. Na sela o homem corre o agreste que não sabe o que é cipreste que preste ou cela. Rompe estradas, vastas vastidões, solidões, saudades imperfeitas, promessas benfazejas, lembranças anchas em ser, certezas de que o amor rompe escuridões e sertões. Mesmo quando não havia luz elétrica, enfáticas ou fétidas razões. Para o menino e homem, velho e sertanejo, cria do nordestino ser, o derradeiro crer se faz promíscuo naquilo que o desejo de acreditar se refaz em somente dedilhar. Em letras brancas num teclado negro, o destino que em desatino se propôs.
 
(No som de Dominguinhos e saudades eternas)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Lembrança na festança de Dominguinhos

 Por Ronaldo Faria


-- Será que alguém vai lembrar da gente lá na frente, Jesualdo?
-- Se ainda estiver vivo alguém que nos conheceu, talvez... Senão, com certeza não.
A resposta caiu como uma bomba em Sebastião. “Sabe que é verdade. Depois de um tempo surge, por fim, o fim. Se não tem quem tenha saudade, não tem mais a pessoa. Essa é a verdade que ressoa desde em sempre. Quem irá cavoucar o nome e a vida de quem sequer teve um segundo em sua vida?”
-- Mas será que algo de nós vai ficar, Jesualdo? Que nem semente, sementinha...
-- Olha, Bastião, acho que não. Mas se sobrar uns ossos, na hora de colocar outro na sepultura, ao menos os coveiros que tiverem de enterrar a gente vão ficar putos e lembrar das nossas mães.
-- É, você deve ter razão...
-- Então fica assim. Nos vemos amanhã para tocar a boiada do coronel até a invernada.
-- Com certeza, Mas vou ficar mais um pouco. Segue tua trilha.
Sebastião pede outra para o dono da venda e repensa a resenha. “Sabe que o Jesualdo não está errado de tudo. A gente vive até quando houver quem nos amou ou odiou, que chore ou ria o nosso fim. Depois, num mundão que já enterrou gente que nem dá pra contar, não tem como pedir bis.”
-- Posso sentar na mesa?
A voz, feminina, bem mais do que poderia se chamar de linda, bateu como um bumbo no seu ouvido.
-- Claro. A mesa está livre, além de mim.
O nome dela era Berenice. Seu cheiro tinha o mesmo que a dama da noite, essa florzinha pequenina e branca que exala um perfume da moléstia de bom. Seus olhos, verdes e marrons, cobriam a lua cheia com uma claridade que nem se o sol ainda estivesse acordado teria. Seus cabelos, cor de milho bom de colher e girassol, escorriam sobre o decote que mostrava os seios que nem os maiores devaneios fariam brotar. Seu rosto nem um tal de Michelangelo poderia esculpir. Na verdade, Sebastião preferiu não olhar além do umbigo. Afinal, Berenice era o amanhecer de luz na caatinga, o nascer de um bezerro a mais na cria, a flor mais bonita que o mandacaru pode dar. Vestida no vestido vermelho e branco, acima do joelho, ela fazia o coração bater além do peito. “Segura na boca, coração”, implorava o boiadeiro que antes queria saber se valia a pena viver.
-- De que fazenda você é?
-- Da Nova Esperança. Toco o gado lá.
-- Já ouvi falar dela. Corre o Rio Real defronte?
-- Sim. Na verdade ele é divisa. Coisa maluca, não é. Um rio que seca na seca ser a divisão de dois estados.
-- Concordo. Mas o que não é loucura nesse mundo?
A conversa continuou mesmo com o pio da coruja que queria colocar as corujinhas recém-saídas dos ovos para dormir.
-- Você gosta de pamonha e milho?
-- Gosto, claro.
-- Então está convocado pra debulhar um monte comigo na semana que vem.
-- É sério, Berenice? Além de aboiar o gado e cuidar das burregas tenho que debulhar os sabugos?
-- É. Isso se quiser saber aquilo que eu posso te dar além de prosear...
-- Se é assim, que os dedos sangrem no milharal.
Não deu meio tempo e o clarear chegou. Os dois estavam agora na praça da igreja, sentados no banco, a lembrar avós e o tanto que o lampejo do lampião que cheirava gostoso vive até hoje na imensidão. Talvez, quem sabe, Jesualdo estivesse errado. Que a vida pode se eternizar num descampado, fole de sanfona, lembrança atávica, lamber de pele e línguas, lábios sedentos de amor. Senão, que seja apenas a flor que dura um dia, uma semana, um mês para a abelha tentar se achegar. Agora, na verdade, pouco importava. Sentado no seu tordilho, no dia seguinte e pedinte, Bastião se bastava. A dormir em cetins, Berenice bebia outra conquista. Ela, com certeza, será lembrada e relembrada nas vidas presentes, passadas e, fortuitamente, futuramente. A nós, nos nossos nós inconsequentes, sem trema e com tramas mil, só nos resta sonhar.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Charles Mingus, um gênio para poucos

 Por Edmilson Siqueira


Charles Mingus não é para principiantes. Quem está acostumado com o jazz de piano, bateria e contrabaixo, com os grandes cantores, com as famosas orquestras, certamente vai torcer o nariz ao ouvir o complexo som que sai da cabeça e das mãos desse contrabaixista (às vezes pianista) que nasceu há 102 anos e morreu em 1979, aos 56 anos, na cidade de Cuernavaca no México, onde tentava um tratamento de uma esclerose lateral amiotrófica. Seu corpo foi cremado e suas cinzas espalhadas no Rio Ganges na Índia.
Curiosamente, nos anos 1980, eu que já apreciava jazz, mas não tinha nenhum disco ainda, comprei, como já contei aqui, por sugestão do amigo Tatá, na antiga Raposa Vermelha (nem Tatá nem a Raposa existem mais, infelizmente) justamente um LP de Mingus ("Three or Four Shades of Blue") que, por sorte é um dos mais palatáveis e melhores do artista.  
Embora jamais tenha sido um campeão de vendas, mesmo entre os jazzistas, Mingus sempre foi, depois dos primeiros discos, muito respeitado entre seus pares. Sua criatividade não tinha limites e ele tanto podia aparecer tocando num trio, como num grupo com metais e guitarra. E, muitas vezes, acrescentava vocais inesperados às suas músicas. 
O respeito não foi decorrência de sua simpatia. Pelo contrário: Mingus tinha muitas vezes um temível temperamento, o que lhe provocou o apelido de "The Angry Man of Jazz" (O Homem Zangado do Jazz). Este comportamento negativo acabava resultando em autênticas erupções de raiva em cima do palco, embora com o tempo ele tenha conseguido moderar o seu comportamento.
Contudo, essa característica acabou valorizando ainda mais sua música, e ele acabou ficando com a fama, merecida, aliás, de grande compositor. Curioso é que ninguém compara Mingus a outros, pois, no caso, suas melodias não são nada convencionais e é preciso ouvi-las algumas vezes para perceber a riqueza criativa que nelas se insere. 

 
Houvesse alguma dúvida sobre sua genialidade, ele não teria sido motivo de uma edição brasileira da Abril Coleções que aqui recebeu o nome de Mitos do Jazz. A coleção original foi produzida pela "Kind of Blue Records". Para se ter uma ideia, o texto de apresentação sobre Mingus diz, logo de cara, que ele foi um dos mais irrequietos e criativos músicos de jazz.  
Dos seis CDs que tenho dele, estou ouvindo "Mingus Moves", talvez um dos mais introspectivos na já introspectiva obra do jazzista. 
Foi gravado em 1973 e é um dos últimos trabalhos do baixista, compositor e líder de banda. Mingus contratou três novos músicos para a gravação: Don Pullen no piano; Ronald Hampton no trompete e George Adams no saxofone tenor. O baterista Dannie Richmond, um dos pilares das bandas de Mingus nas décadas de 1950 e 1960, voltou à banda no primeiro dia de gravação depois de não trabalhar com o baixista por vários anos. 
O álbum, embora não seja geralmente considerado um dos melhores de Mingus, apresenta três composições notáveis: "Canon", "Opus 3" e "Opus 4". "Canon" é um tema, como o título sugere, que pode ser sobreposto a si mesmo. A música tem um caráter espiritual, à la Coltrane, e é tocada com um som quente por Pullen e Adams. "Opus 3" é baseado na composição de Mingus de 1957 "Pithecanthropus Erectus", na qual certas seções são tocadas sem restrições de tom ou métrica. "Opus 4" é um swing direto que apresenta Don Pullen tocando um solo livre. 
As outras músicas incluem "Moves", uma composição escrita e cantada (junto com Honi Gordon) por Doug Hammond; "Wee", composta e arranjada por Sy Johnson; "Flowers", escrita por Adams e "Newcomer" por Pullen, dedicada à sua filha recém-nascida. 
O LP lançado em 1973 terminava aí, mas o CD, lançado em 1993 e que é o que eu tenho, contém as faixas bônus "Big Alice", de Don Pullen e "The Call" (autor desconhecido), que foram gravadas durante as mesmas sessões. 
O CD está à venda ainda por aí (encontrei no Mercado Livre) e pode ser ouvido no YouTube na integra: https://www.youtube.com/watch?v=fXwpZyZZroI&list=OLAK5uy_mTPj1wZqiGtD66PX3x3gRK2jv7JylapZ8&index=2

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Dia da Mulher com Tom Zé

 Por Ronaldo Faria


“No Dia da Mulher o homem não tem de colocar a colher.” A frase surgiu tão enfática e prática que José resolveu levantar da mesa e tocar seu rumo e tomar prumo. Na verdade, havia razão no que foi dito. Independente de gênero ou do politicamente correto, cabe às mulheres saber mais sobre elas. Ocupar o lugar de direito. Pouco importa se sempre tivesse respeitado o não, não tivesse avançado um centímetro além do possível e fosse amante de mandar flores. Que visse cada mulher como não apenas um ventre, mas o vento que transforma o planeta, a chuva que cai para apaziguar a seca da estupidez que o macho traz em si, universo além do corpo para desbravar. 
Às bravatas do desejo, entre escorpiões e poesias, fazia trajeto oposto ao mundo, como anomalia. À revelia, era como ébrio no meio de lúcidos na sua ilucidez eterna em ternura. Ou seja, confusão em profusão de saber se estava certo ou errado. Se era gato ou rato. Na rua escura, sai um arroto. Meio trôpego e torto, ouve alguém cantar “A noite do meu bem”. A poesia de Dolores irá durar à eternidade. Sem veleidades, voltas, vestígios de amor, ternuras e o que ainda se pode dar. Na noite, numa clarividência que representa a morte de tecelãs a tecerem o destino de outras tantas história a fora, nos eventos que percorrem décadas e lutas, a fuga da labuta que é tentar unir vidas e remidas construções perenes da sociedade. Na saciedade do tempo, o melhor é torcer para que o pior não prospere.
-- Boa noite, José. Quer ajuda ou dá pra subir as escadas?
-- Obrigado Dona Valda. Dessa vez eu prometo me cuidar...
 
(A ouvir Tom Zé, independente do Dia da Mulher)

sábado, 4 de janeiro de 2025

O trem azul

 Por Ronaldo Faria

 


O trem destrambelhado e descabelado pela velocidade sobre os trilhos enfileirados para levar alguém a algum lugar segue engatado com os vagões em turbilhões. No passadio que existe na estação seguinte, a limítrofe e tardia sangria que estanca a branca saudade que une os longínquos e efêmeros lamentos em vão. Nos quilômetros atônitos e afônicos que se perderam no chão, um misto de perdões e ilusões. Na aquiescência da sofreguidão, a inaudita certeza de que o mais novo e solerte segundo é somente um novo senão.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A miltanear as travessias da vida

 Por Ronaldo Faria

 

Na esteira da contrapartida que nem a efeméride da vida dá, o orfeão mostra que o ouvir das falácias se torna realidade a quem pensa ser feliz...

 Esperar o tempo a mais, fugaz. Sabedor que o caminhar de logo mais será só contumaz, Belisário, o belo que ganhou a votação do que seria Elisário, encara o negror sem quase lua e estrelas e mistura letras e sílabas, frases e parágrafos, textos inclementes e inodoros ao sabor da vida viral e voraz. Para ele, hoje tudo permeia o tanto fez ou faz.
Quase um Quasimodo, personagem em viagem eterna na busca da essência, sem a malemolência que precisaria ter, sabe que está só. Na solicitude de si, toca os dias e diásporas como se ainda quisesse viver. Mas ele sabe que tudo isso é mero enguiço do carro que nunca dirigiu e frigiu seus pneus e ovos numa pantomina irrisória e simplória.
No bar enegrecido e perdido no mundo que pranteia mil plateias inexistentes e tardias, Belisário bordeja nas bordas que se formam entre a sanidade e a loucura. Logo mais chegará um novo e velho dia. Desde logo ele saberá ser um eterno passado. O segundo do presente é secundário e o futuro é somente uma semente que não germina infinda.
No passado que se faz passadio interminável, a intragável chegada da alma penada que se arrasta em correntes e tormentas no imbricado sortilégio do acaso. Talvez uma alva alma transtornada e atávica. Senão, o menino a se esconder em cobertas rasgadas, nos rasgos que são mais do que um ventre que no primeiro choro externo se põe a vender.
Belisário, ator, diretor, autor e plateia da casa de espetáculos com seus mil tentáculos, rompe a temporalidade que é ser. Entre aplausos e vaias, bilheteria perfeita e cadeiras vazias, merdas ditas em vão no camarim, segue a viver. Na semeadura inglória do terreno seco se faz a planta morta que decide renascer e se encher de flores amarelas e vivas, vívidas de beijar.
Na inerte veste, vetusta tragicomédia, o reviver que nem a melhor cena da extinta Cinédia traria ao lugar. Na criação da ação longínqua, a ilusória e utópica mansidão que só os anos que se foram e não mais virão dão. Mas, na incrédula célula que sobrevive, os sons etéreos e efêmeros que povoam a loucura genética e frenética de não se saber e sequer viver.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Ano em final

 Por Ronaldo Faria



E o ano se esvai. E corre amiúde entre dedos, olhos, sinais. Vai crente nos rastros que foram marcados, centelhas mil, saudades despedaçadas, calçadas andadas, rios que tornaram as águas límpidas, mares desbravados, portos chegados. Corpos recriados. Entre copos e cornucópias, cópias de palavras e notas, corpo a doer. Olhares trocados, copos lavados, copos entornados, cores mil. Uns dias, céu de anil. Noutros, a tempestade que chega entornada das nuvens nem sempre plácidas. Carícias proscritas e escritas, coisas esquisitas, moscas dentro do olho a voarem desbragadas. Três óculos num troca-troca que se faz quase sacanagem. À margem, cerveja benfazeja. Cogumelo azul. No interior a sonhar com a Zona Sul. Dinheiro no bolso e reembolso para qualquer louco. Sorriso promíscuo e surreal. Coisa e tal e tal e coisa então. Como pavio e lampião.

Mas o ano tem poucas horas apenas para entrar nas páginas do passado. Virar lembrança de uma dança que o par deixou de rebolar no salão em que as luzes se escondiam na penumbra da noite escura. Loucura? Só quando os olhos fecham para o sono insone. A seguir nos segundos frágeis que tentam ser minutos e horas para virarem dias e meses, o ano amuado se perde para o calendário de um tal Gregório, a que chamem de gregoriano. Carcomido e devorado, tragado e lavrado em cartório, introdutório de algo logo mais na frente, passeia ente Cartola e Candeia. Permeia a primeira ilusão que nasce da escuridão e pede para a folhinha de papel ser mel e não fel. Findo na felicidade que angustia quem não a tem, se vê perplexo a rimar música e sina.

Num atalho que ata e desata traduções e unções mil, o tempo segue milimétrico nas métricas que o tempo lhe dá. O ano, sabedor da finitude, voa de galho em galho à busca de um atalho. Na churrasqueira, pão com alho. O enxovalho que ficou para trás já procrastinou o abecedário. Poucas letras poderão medir o que ficou no passado recente. O destino agora mira o derradeiro presente. O futuro, proletário e atávico, se prepara, de branco, para caminhar na sua rota. Na gruta que chamam de grotão as palavras se perdem em negror na luz do computador. No mar as ondas se preparam para pulos de crenças e discrepâncias. Anchas, as vozes gritam que “agora vai”! Fogos espocam longe-perto, feito luzes coloridas em presto. Na janela aberta ao horizonte incólume que se vê vindouro, até diáspora se torna ouro. Num canto, quieto, 2024 se põe a chorar. 

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...