quarta-feira, 18 de junho de 2025

Ao Cordel do Fogo Encantado

 Por Ronaldo Faria


No cordel de um fogo encantado e encarnado o tropel atropela a estrada suja do pó que levanta das patas. O sol, que se esfria ao vento que bate nos galhos sem folhas, se prepara para sorrir raios amarelos nos farelos da tapioca a dormirem no fogão a queimar gravetos que um dia respiraram florir. No sorrir sem dentes da mulher iconoclasta, há muito nascida e parida à luta da vida, não há lugar para o luto. Da panela de barro sobe um cheiro que se esgueira nos buracos de pau a pique onde o barbeiro que nunca fez bigode e nem barba espera para picar. No alpendreos filhos correm com seus carros de boi em sabugos de milho. A lavoura pega fogo no preparo do próximo plantar. Santiago, pintado do negror da fuligem que um dia foi terra virgem, roça os últimos pedaços onde a vida ainda é bem-vinda.
Logo chegará outro escurecer de estrelas mímicas de si mesmas e mimetizadas para clarear o tanto de escuro nas terras de Agripina. Depois, no após apocalíptico que sugere apóstrofe no texto onde não caberá, o sol voltará. É hora de laçar o jumento que reclamará no seu jeito o lamento de tanta carga carregar e levar a colheita à feira, trocar por farinha, carne seca, feijão de corda e algum trocado que ficará largado na mesa à espera da quermesse do padre João. “Nesse dinheiro ninguém toca! É para São Jerônimo nos dar algum sinônimo pra viver!” – dizia o boiadeiro de pouco estudo, mas muito atino. Logo perto um preá corre atrás do pé de capim que, teimoso, resolveu brotar.
-- Agripina, deu pra colocar a galinha velha pra cozinhar?
-- Deu não, Santiago. Deu dó da coitada, que tanto ovo já pôs na nossa mesa. Agora que está velha, deixa ela ciscar em paz.
-- Então é fava e arroz de novo?
-- É não! Tem ovo, da filha da coitada da galinha. E amanhã, eu já vi, posso fazer a carne seca que você trouxe.
-- Tudo bem, mulher. Vamos na fé...
Do quarto, a filharada (são quatro) dorme à luz do lampião que queima cheiroso no querosene volátil que não enxerga o clamor tátil de dois corpos – Agripina e Santiago – a trazer outro rebento para o mundo. Mas, no fundo, lá no fundo do poço de onde se cata água em cacimba, esse sabe, a ver romper seu cordão, que não será o último. Novos filhos virão sem prever a barriga prenha ou se na mesa tem fartura e peleja. Na igreja, padre João dá a hóstia sagrada e sacramentada para o povo da ribeira. No momento onde ainda há o mínimo de consciência, a ciência do sertão se atira de cabeça, corpo e membros à solidão...

terça-feira, 17 de junho de 2025

O elegante Benny Goodman *

Por Edmilson Siqueira



 
"Stompin’ At The Savoy" é mais do que apenas uma coletânea de faixas dançantes e sofisticadas do “Rei do Swing”, o grande Benny Goodman. Trata-se de um retrato sonoro de uma era em que o jazz, na sua forma mais acessível e popular, encantava multidões em salões de baile e ondas de rádio. Benny Goodman, clarinetista virtuoso e figura central do swing, mostra nesse disco a energia vibrante dos anos 1930 e 1940, enquanto reforça sua relevância musical .
Para compreender "Stompin’ At The Savoy", lançado em 1956, é essencial entender o papel de Benny Goodman no panorama do jazz norte-americano. Nascido em Chicago em 1909, filho de imigrantes judeus, Goodman cresceu em meio à efervescente cena musical da cidade, tocando em bandas desde muito jovem. Ao longo da década de 1930, tornou-se líder de orquestra e pioneiro ao introduzir o swing como uma força cultural nacional nos Estados Unidos. Em 1935, seu concerto no Palomar Ballroom, em Los Angeles, é frequentemente citado como o momento inaugural da era do swing.
Não é pouco um músico ser citado como quem inaugurou uma nova era dentro de um gênero musical. O Savoy Ballroom, citado no título da faixa principal e do disco, era um dos clubes de dança mais lendários do Harlem, em Nova York. Inaugurado em 1926, o Savoy foi um dos poucos clubes racialmente integrados nos Estados Unidos, onde brancos e negros podiam dançar lado a lado. Era um símbolo da vitalidade do jazz como forma de expressão e de resistência cultural.
"Stompin’ At The Savoy", foi lançado pela RCA Victor, e é uma compilação que reúne gravações feitas por Benny Goodman em momentos distintos de sua carreira. A faixa-título, composta por Edgar Sampson, Chick Webb, Benny Goodman e Andy Razaf, tornou-se um clássico absoluto do repertório swing. A versão de Goodman, com sua combinação impecável de arranjo e improvisação, tornou-se uma das interpretações mais celebradas da música.
Ao longo do álbum, destaca-se a elegância da orquestra de Goodman, marcada por seções de metais precisas, riffs vigorosos e solos memoráveis. Mais do que técnica, o disco transmite uma alegria contagiante — a marca registrada do swing.
Um dos destaques do disco é a interação entre Goodman e seus músicos, pianistas, bateristas e trompetistas. A precisão da orquestração, aliada à liberdade dos solos, cria um equilíbrio entre ordem e espontaneidade, fundamental para o sucesso do swing como gênero.
Benny Goodman não era apenas um músico brilhante — ele foi também um dos primeiros líderes de orquestra brancos a integrar músicos negros em sua banda em uma época de forte segregação racial nos Estados Unidos. Artistas como Teddy Wilson (piano), Lionel Hampton (vibrafone) e Charlie Christian (guitarra elétrica) fizeram parte de sua formação, rompendo barreiras e ajudando a elevar o jazz a novos patamares técnicos e artísticos.



Embora "Stompin’ At The Savoy" não seja uma gravação ao vivo no próprio Savoy Ballroom, a música capturada ali remete diretamente à atmosfera do local: um lugar de liberdade, movimento e inovação. A faixa-título em particular, com sua introdução cadenciada e construção rítmica hipnotizante, é um convite para reviver a era dourada do jazz dançante.
O disco que tenho faz parte da coleção "A Jazz Hour With..." e, embora não seja o mais conhecido da vasta discografia de Benny Goodman, serve como excelente introdução para novos ouvintes e como uma espécie de cápsula do tempo para que já o conhece. O disco demonstra por que Goodman foi chamado de “Rei do Swing”, não apenas por seu virtuosismo no clarinete, mas também por sua liderança musical e sensibilidade artística.
"Stompin’ At The Savoy" mostra também a relevância contínua da linguagem do swing. Mesmo em meio ao surgimento do bebop e de outras correntes mais modernas do jazz, o trabalho de Goodman manteve-se atual por sua elegância, clareza melódica e poder rítmico. A música do disco não é apenas um eco do passado — é uma afirmação da vitalidade permanente do jazz como forma de arte viva.
Segundo críticos norte-americanos, o disco é mais do que uma coletânea de músicas antigas. "É um documento histórico e artístico que captura a essência de uma era em que o jazz era a trilha sonora de uma nação em movimento. É uma viagem ao coração do swing, com paradas em salões de dança, palcos lendários e momentos inesquecíveis da história musical americana."
O disco pode ser adquirido nos bons sites do ramo e toda discografia do Benny Goodman pode ser ouvida em sua página oficial: https://www.bennygoodman.com/ .
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Na peixaria da vida

 Por Ronaldo Faria



Barbatana de peixe carcomido, guelras sem respirar monóxido de carbono, escamas caídas em dramas nas tramas da vida. Era assim, peixe fora d’água, que Dorival se sabia e se sentia. Sem sentimento e como infausto corpo jogado no asfalto quente. Resiliente na guerra da espera utópica que a vida lhe expôs, sobrevivente da crença descrente no amanhã, ouve o assobio da ave que busca o trinado perdido ao acaso. Do lado, colocado no alto do púlpito que palpita vida, o padre profere palavras que ferem os ouvidos de quem passa. “Que nós, pecadores, possamos pescar nossas dádivas nas dívidas nunca pagas.” Nas pálpebras cansadas dos fiéis, tudo é só palavreado cantado. Na procissão que se prepara para sair, matronas e meretrizes se juntam para louvar o Senhor. Na dor, rezas e pregações viram unções às feridas em lamúrias e torpor de luz de luar.
Asas depenadas como almas que desanuviaram no céu sem cor, bicos sem minhocas espetadas na ponta do anzol, olhos que não veem mais o azul que se mistura no branco das nuvens. Desse jeito, pássaro que tem medo de alturas, Beatriz, mistura de senhora e atriz, antevia as horas futuras. Nas ranhuras dos móveis imóveis há anos na sala de cortina fechada e embolorada, transitava calada e performática. Seu gosto sempre fora a gramática. Porém, dramática, se fechara feito a cortina de veludo roxo em casa. Descasada e forçada ao autoexílio, personagem principal de uma peça nunca levada aos palcos e coisa e tal, vivia sentada na cadeira de braços longos a cerzir seu enxoval enxovalhado para o Natal. Morava num sobrado descascado na esquina das ruas Boa Morte e Descalvado. Seu número da sorte e da casa fora roubado.
No vilarejo, benfazejo no meio do mapa e paradeiro de tropeiros trôpegos, pessoas passeiam sem saber de Dorival e Beatriz. Nas efemérides próprias, muitas impróprias a se relatar, iam e vinham a circular no coreto que o correto prefeito Deodomiro inaugurou com banda de música, cantor da Capital e coral formado por meninos e meninas do abrigo municipal. O lugar, meio esquecido do mundo, perfumado de flores de laranjeiras, tinha joviais e brejeiras mulheres que sorriam aos garbosos e sebosos rapazes. Nalgum momento, dois parariam de circular e se tocariam, falariam feito matriarcas no jantar e se beijariam em loucura que só o amor dá. E o lugar seguiria seu curso, sem rumo, bússola ou porto de chegar.
Acima, de onde nem a melhor sonda espacial saberá existir, o Criador desliga a tevê e ri de tanta insensatez. “Até hoje eu não sei por que criei esse mundinho. Preciso lembrar o anjo Gabriel a não me deixar comer pimenta em excesso. A última caganeira foi demais e deu nisso.” Com um simples piscar desliga o sol e se põe a ressonar. Seu ronco faz tremer o lugar. Abaixo, tão abaixo que nem o milímetro saberia medir, o calendário embrionário diz que num ovário outro ser está por vir...
 
(Ao som de bandas rítmicas nordestinas)

sábado, 14 de junho de 2025

Se é pra ficar doidão, foda-se o que irá chegar

 Por Ronaldo Faria


Pela enésima vez nos entregamos aos dramas e as tramas (amanhã virá a conta no cérebro descerebrado). Dramaturgos que perdemos como atores principais, vestais de tramoias e filigranas de beijos que somos, sigamos como ciganos em carroças movidas hoje a centenas de cavalos. Olhemos as olheiras dos mais velhos, aqueles que de tanto olharem o mundo já não sabem mais o que é realidade ou utopia. Na urgência da ferida nunca fechada, a chave prematura da dura chegança do colibri. E se alguma esperança nos vier ou restar, o viés da insólita certeza de nada ser ou saber far-se-á. Na cela que nos prende nesse mundo sem caravelas para partir, ao menos um raio de sol refletirá do quadrilátero bastardo que viaja entre o real e a fantasia que, diz o poeta, se separam no final. Agora, qual ágora multifacetária, nos façamos seres frágeis e frígidos, bastardos de algum amor que não se fez plenipotenciário. Nos retalhos do trabalho de receber algum poeta que partiu e ficou, como parto libertário do fulgor, nos preparemos para o day de um after que se repete há décadas. No tempo que não há de tardar.
 
(Com Renato Teixeira e Xangai a ajudarem a dedilhar)


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Frasinhas bestinhas e abestadas

 Por Ronaldo Faria


 
Sororidade na sonoridade.
Catalepsia na calamidade.
Certeza da ressaca na prosperidade.
Letargia na letalidade.
Mentiras na etérea saudade.
Saudades no só porvir.
Certeza de não se redimir.
Cântaros de cantares em mim.
Na morte próxima, mortificar o fim.
Profilaxia da isquemia vadia.
Fomento do eterno tormento.
Estar nas facas da mão do irmão.
Blasfêmia da volátil e longínqua fêmea.
Falar e calar na falácia tardia.
Na vadia orgia, a incerta nostalgia.
Cataclismo tátil e ofício da cisma.
Nos meandros da alma, escafandros.
Nenhum, porém, a descer mais um centímetro.
No milimétrico e tétrico crer, algum querer.
Nas Tordesilhas, milhares de ilhas.
Ilhotas banais e fatais da orgia.
Na ojeriza de lamúrias, derradeiras fúrias.
Nos augúrios, a plena e boa ternura.
Fartura de esperanças certas de que não serão.
Mas frases e versos por certo ficarão.
Nas úmidas vozes virão o paladar de ser.
Imbróglio de emoções, casual casulo de crer.
Brincadeira tardia de querer viver.
Falta de dentes, versos e prometer.
Na lúgubre lágrima, o não poder esconder.
Nos dez minutos da cerveja gelar, o lugar.
O restante é só fresta de querer chegar.
Besteira de poeta ainda pouco lúcido.
Coisa de Lúcifer a tomar conta do lugar.
Como a geladeira demente a apitar sem parar.
No praguejar de tudo, marejar de olhos turvos.
Na torvelinha vida, a ávida e derradeira cisma.
A saudade do que foi e teve seu fim.
A parcimônia do brejeiro cheiro de carmim.
E quando tudo deixar de contar o tempo que foi, dormir.
Brandir brados e berros, ressurgir em si.
E saber que pouco ainda existirá a viajar.
No mesmo lugar, a naufragar, se autotraçar.
Se exilar nos medos e ensejos milenares.
Soar como mudo que só quer poder falar.
Se catar, se recontar, se traduzir na folia.
E depois, no após do desmazelo, descobrir-se na azia.
Tardio, o equilíbrio se fará numa cama vazia.
Glória aos loucos que acreditam poder sonhar.

(Com Geraldo Azevedo no ouvido)

terça-feira, 10 de junho de 2025

No papagaio ouvinte

 Por Ronaldo Faria


O papagaio, pragmático e dependurado no seu poleiro, só ouvia a música que saía da vitrola na voz de Maysa. O ano, perdido entre os 50 e 60 do século passado, passava entre Fords antigos que ostentavam bigodes, homens de chapéus e mulheres que pouco deixavam seus joelhos aparecerem na subida dos bondes. Mas, para o papagaio de penugens quiçá já chinesas, tudo era um relicário a se viver. Nas efemérides da vida, passageiras feito a própria vida, ele sequer sabia separar os rostos dos meros mortais que passavam pelo corredor do casario. Postado e prostrado no teto, ao menos conseguia enxergar as tetas de Abigail, matrona que se exibia nas noites de amor e luar. O papagaio, sem nome e que não conseguia repetir coisas ouvidas pela casa e a vida, por sequer ter cordas vocais, apenas ficava ali, a balançar num ou noutro vento que se fizesse bater. E quanto e tanto poderia falar... Silencioso e cioso de seu lugar na decoração, porém, ficava lá, nas blasfêmias, infâmias e mentiras de uma oração.
Papagaio vindo de algum lugar que nem aqueles que catam seus restos no passado sabem crer, ele apenas ostenta as cores de um paraíso bucólico e melancólico onde a paz se ostenta e se sustenta na imensidão de olhares, entrelaços e acasos no ocaso da vida. Certamente ele não verá árvores e seus galhos partidos de folhas, flores e frutos. Fortuito, talvez um dia seja jogado no lixo e termine num local cercado de outros tantos itens descartáveis dos seus donos, rotundos e redondos corpos a se espreguiçarem em cadeiras ou sofás. Lá, se bater a luz do sol e der sorte de ser descartado no final do caminhão de coleta, por fim verá o céu azul, um ou outro urubu a voar e aquilo que o mundo fora das paredes esconde no semear. E se mais sorte der, quem sabe uma papagaia que fale mandarim não caia ao seu lado. Sem poder bater as asas, ambos, entretanto, num tanto que é morrer, poderão ciscar pedaços de sensações mil. Talvez, quem sabe e quiçá, ouvirão as vozes de seus antigos donos e, enfim, saberão que o dono de cada um de nós é a mera quimera da ilusão.
 
(Ao som da eterna e terna Maysa)

domingo, 8 de junho de 2025

O excêntrico som do Manhattann Transfer *

Por Edmilson Siqueira

 

Eles começaram a jornada em 1969 e ficaram na estrada até 2023, mais precisamente, 15 de dezembro de 2023, quando, num show no Walt Disney Concert Hall, foi anunciado o fim do grupo.
Nesse mais de meio século de carreira, o grupo vocal Manhattann Transfer gravou dezenas de discos, ganhou dezenas de prêmios (vários Grammys, inclusive um com um disco só com músicas de compositores brasileiros), teve várias formações, se dedicou a vários tipos de música e marcou a música pop e o jazz do mundo com suas espetaculares vocalizações, sensacionais arranjos e uma empatia com plateias de todo o mundo.
Em 1969, Tim Hauser formou um grupo vocal em Nova York chamado The Manhattan Transfer, inspirado no romance de John Dos Passos. O grupo era composto por Hauser, Erin Dickins, Marty Nelson, Pat Rosalia e Gene Pistilli. O grupo lançou um álbum, Jukin' (Capitol, 1971), que abordava o jazz do passado, bem como os gêneros rock e country, diferentemente das versões posteriores do grupo. A Capitol Records não renovou o contrato do grupo para um segundo álbum, e o grupo se separou em 1973.
Com o correr dos anos, o grupo foi mudando sua formação por vários motivos. A segunda versão do grupo, formada em 1972, já mais ligada no jazz, era composta por Hauser, Alan Paul, Janis Siegel e Laurel Massé.
A terceira e mais comercialmente reconhecida formação do grupo ocorreu em 1979, quando Massé teve que deixar o grupo após se ferir gravemente em um acidente de carro e foi substituída por Cheryl Bentyne. Esta edição do Manhattan Transfer apresentou pop eletrônico, soul, funk e música rítmica, obtendo sucesso na década de 1980.
A quarta edição do grupo, desde a década de 1990, era originalmente composta por Hauser, Paul, Siegel e Bentyne, e tocava principalmente jazz cool e smooth. Também contava com vários membros rotativos em turnê, e o pianista veterano Yaron Gershovsky acompanhou o grupo em turnês e atuou como diretor musical. Trist Curless, originário do grupo a cappella de Los Angeles "m-pact", tornou-se membro permanente em outubro de 2014, após a morte de Hauser.
Tenho dois discos do grupo. Um é uma coletânea e o outro, motivo desse artigo, é "The Offbeat of Avenues", lançado em 1991.
Trata-se de um marco na discografia do Manhattan Transfer, cheio de sofisticação e ousadia. Neste álbum, o quarteto mergulha fundo na experimentação, incorporando elementos contemporâneos do jazz, pop, funk e música urbana, sem abandonar a assinatura harmônica que os consagrou.



Estão presentes aqui os elementos todos que fizeram o sucesso do grupo: vocalizações intricadas, fusão de estilos e um espírito de reinvenção constante. Com "The Offbeat of Avenues", dá pra dizer que eles chegaram a um novo patamar artístico, não apenas interpretando canções, mas também participando ativamente da composição — algo relativamente raro em álbuns anteriores. De fato, este foi o primeiro disco em que os quatro integrantes contribuíram significativamente para o repertório autoral, oferecendo uma visão mais pessoal e contemporânea do grupo.
A faixa de abertura, “The Offbeat of Avenues”, já revela a intenção do álbum: ritmos quebrados, vocais sincopados e uma letra que pinta um retrato urbano da vida moderna. A cidade pulsa no andamento irregular da música, refletindo as tensões e possibilidades do cotidiano. Essa abordagem também se estende para faixas como “Sassy”, que mistura swing com um groove quase hip-hop, e “Ten Minutes Till the Savages Come”, cuja crítica social sutil é embalada por uma levada quase cinematográfica.
Mas o álbum não deixa de lado a sofisticação vocal. “Gentleman with a Family” e “Women in Love” trazem arranjos intrincados que revelam o domínio técnico do grupo. A harmonia vocal é impecável, com linhas melódicas entrelaçadas como instrumentos de uma orquestra. O uso de técnicas como o vocalese — gênero em que letras são criadas para solos instrumentais de jazz — segue presente, embora com roupagem mais moderna.
A produção, assinada em boa parte por Tim Hauser e colaboradores como Jeff Lorber e Ian Prince, é marcada por um som polido, com sintetizadores, baterias eletrônicas e efeitos digitais que situam o disco nos anos 90, mas sem soar datado. O equilíbrio entre elementos acústicos e eletrônicos é bem dosado, e o resultado é um jazz-pop urbano, sofisticado e radiofônico.
Um dos grandes destaques do álbum é a faixa “Soul Food to Go (Sina)”, co-escrita com Djavan. A canção, com letra em inglês e português, traz uma batida brasileira vibrante e vocais exuberantes. É um exemplo claro da habilidade do Manhattan Transfer de dialogar com culturas musicais diversas e transformar essas influências em algo genuinamente seu. A colaboração com Djavan foi especialmente elogiada e rendeu à banda reconhecimento internacional, incluindo uma indicação ao Grammy.
De fato, "The Offbeat of Avenues" levou o prêmio Grammy de Melhor Arranjo Vocal por “Sassy”, consolidando a excelência técnica e criativa do grupo. Foi também um álbum que abriu portas para novos públicos, especialmente os interessados em uma fusão mais moderna do jazz com pop e R&B.
Apesar de menos comercial do que álbuns anteriores como "Extensions" ou "Vocalese", "The Offbeat of Avenues" é uma obra madura, ousada e artisticamente coesa. Ele captura um momento em que o Manhattan Transfer resolveu sair da zona de conforto, explorando “avenidas fora do comum” — como sugere o título — para renovar sua identidade artística.
Trinta anos após seu lançamento, o álbum continua atual em sua proposta de integração entre estilos e sua abordagem vocal inovadora. Para fãs do grupo ou para quem deseja conhecer uma das facetas mais criativas do vocal jazz contemporâneo, "The Offbeat of Avenues" é uma viagem sonora que vale cada compasso fora do lugar.
O disco pode ser comprado por aí, nos bons sites do ramo e ouvido na íntegra no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=MjyWnz4qJqM&list=OLAK5uy_my3sunDtYVxtibGT_wH_XJji9DaCqwpi8&index=2
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do Chat GPT.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O garfo, a faca e a natureza

 Por Ronaldo Faria



-- Garfo, tem certeza de que você quer catar a comida desse prato?
-- Que pergunta, faca. Claro que sim. Senão, você cortou pra quê?
-- Essa é a minha função.
-- Portanto, faço igual. É a minha também.
-- Então somos tão somente duas criaturas com funções predestinadas a cumprimos nessa vida? E mais nada...
-- Creio que sim. Um corta e o outro cata o que tiver de catar do cortado.
-- Mas, que merda! E se eu quiser entrar na boca das pessoas depois de separar pedaços de qualquer coisa juntada?
-- Como assim? Quer subverter o que já está predestinado? Por acaso és comunista? Lembre que fomos feitos num regime democrático!
-- Feitos por operários mal remunerados e entregues às periferias da vida?
-- Não estamos aqui para fazermos doutorado em sociologia. Nossa função é alimentar.
-- Eu sei, mas não posso ao menos delirar? Existir só para serrar é foda!
-- Então tivesse pedido para nascer colher. Dá um tempo!
-- Cruzes, que bravinho. Você ao menos toca línguas, bate em dentes, vê a garganta, sente o calor de bocas e se sorve da saliva.
-- E encontro dentes estragados, mau cheiro e pessoas que engolem direto. Ou seja, mal posso curtir minha função.
-- Tudo bem, seu sofredor de alumínio. Vê se então fica de boa agora que o cliente sentou-se à mesa.
-- Cruz em credo, um outro daqueles que vêm aqui para encontrar a paz. Vai cantar, beber pra caralho e comer devagar. Quer dizer, banho com detergente, sabe-se lá quando vai rolar. Se der merda, nem voltamos aqui para o jantar.
-- Caguei. Não aguento mais serrar...
-- Por acaso você está menstruada por cortar carne mal passada?
-- Vai tomar no seu cu e se foder!
Acima, as árvores que cobrem o restaurante na beira do rio balançam suas folhas que riem do bate-papo dos dois. Feliz e quase zen, o turista fotografa a cena. Mas, surdo ao redor, não ouve o garfo e faca dizendo que nunca mais irão trepar. O momento, sem lamentos, é de delirar e curtir o paraíso que, raras vezes, o mundo dá.
 
(Ao som ainda de Ângela Ro Ro e de um almoço solitário em Caraíva)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Vai só um, por favor

 Por Ronaldo Faria


Sono no interregno da sobriedade e da costumeira loucura que há muito habita o corpo entre a noite e o novo lumiar. “Dormir pra quê? Para descobrir qual pesadelo vai aportar com seus enredos e degredos no escuro do sono de pipocar feito milho na panela?” Bernardo, fardo de si mesmo, simplório no inglório desanuviar, rio que emerge do mar, estava prostrado diante do espelho, nu em pelo, a apelar aos santos que podem de algum lugar ainda brotar. Na floreira da sacada, rosas esperam para florir e se deixarem cheirar.
Andares abaixo, corpos andam num périplo fugaz. Entreolham-se, passam perto uns dos outros, até sentem o cheiro dos perfumes caros ou baratos, enxergam as gotas de suor que se despejam dos poros, até pensam em se cumprimentar. “Oxalá possamos todos dessa pantomima acreditar que esse mundo pode ainda ser um lar”, pensou Bernardo. Na criação do Criador, talvez ele tivesse esquecido de que o mundo é um efêmero local de esperanças cegas, realidades entregues, regado em pedaços entre outros regatos de dor.
Mas na sala que se espreme na cozinha, quarto e banheiro diminutos, desses que se gasta um minuto pra se ver e cagar, Bernardo se bronzeia de lâmpadas de LED na escuridão que o universo dá. O verso agora diz da brevidade do tempo a passar sem perdão. Os olhares, alhures tenham existido, são de desejo e remissão. O som que perpassa ouvido e tímpanos é somente um torpor que espera pelo mínimo de gratidão. “Ao menos podia ter dito algo como beleza ou força aí.” Mas, qual que nada. Só ser ouvida quer ser a amada.
Uma ambulância reverbera sonora os gemidos que alguém, deitado na sua maca, solta em ganidos. O cheiro de mato a queimar adentra os poucos metros de planta de concreto e ferro. Nas paredes nuas pintadas de branco fosco e tosco, quadros amarelados em descalabro dão o tom. Na frigideira, um ovo está a frigir no óleo de milho. Nos olhos do filho nunca tido, a espera da fera que logo chegará. A olhar o mar de prédios em tédio e escondidos pelo luar, Bernardo espera a hora do ansiolítico tomar. No apartamento ao lado a vizinha resolve ligar a tevê e ouvir que o melhor da vida é viajar. Na mesa de centro descansa a propaganda que promete um resort esotérico no Iraque.
 
(A ouvir Ângela Ro Ro)

terça-feira, 3 de junho de 2025

O essencial talento de Rosa Passos *

Por Edmilson Siqueira


Minha admiração por Rosa Passos está marcada pelos dez CDs que tenho da moça, além de inúmeras outras gravações nos arquivos digitais. Já há um bom tempo não compro nada dela, mas o que tenho sempre é bom de se ouvir novamente, cada vez com mais surpresas, todas agradáveis.
Aliás, já escrevi quatro artigos aqui sobre discos dela, além de um do Yo-Yo Ma ("Obrigado, Brazil") no qual ela faz importante participação.  
O CD da vez é "Eu e Meu Coração", lançado no Brasil em 2003 pela gravadora Velas. É, simplesmente, uma obra-prima da cantora, compositora e violonista baiana. 
O "lançado no Brasil" da frase acima é porque o disco foi concebido originalmente para o mercado norte-americano sob o título "Me and My Heart" em 2002. Ele é resultado de um show solo realizado por Rosa em Nova Orleans em 2001. Na plateia estava Jim Cuomo, presidente da Gravadora e Distribuidora Ryko, de Nova York, que se encantou com a performance e propôs a gravação do álbum. Com a participação do baixista Paulo Paulelli, o trabalho foi gravado em apenas cinco dias, resultando em um registro intimista e sofisticado que mescla bossa nova, samba e jazz. 
O álbum é composto por  14 faixas que transitam entre clássicos da música brasileira e composições da própria Rosa com parceiros.  
Rosa Passos é reconhecida por sua voz suave, afinação impecável e domínio do violão. Sua interpretação é marcada por uma abordagem minimalista e sofisticada, que valoriza a melodia e a harmonia das canções. Fã assumida de João Gilberto, Rosa herdou do conterrâneo a precisão vocal, a batida no violão e a espontaneidade, sem deixar de imprimir sua personalidade musical, oferecendo releituras que fogem do convencional e revelam novas nuances nas composições escolhidas. Sua capacidade de improvisação e sensibilidade rítmica são frequentemente comparadas às de Ella Fitzgerald (outra grande influência). 
O baixista Paulo Paulelli, parceiro de longa data de Rosa, contribui significativamente para o álbum com seu baixo acústico e percussão vocal. Sua atuação complementa o violão de Rosa, criando uma sonoridade rica e envolvente que reforça o caráter intimista do trabalho. A parceria entre os dois músicos é evidente na coesão e na fluidez das interpretações. 


"Eu e Meu Coração" ajudou a consolidar ainda mais a carreira internacional de Rosa Passos, que já havia se destacado no cenário musical com participações em projetos como o álbum "Obrigado Brazil", vencedor do Grammy. O disco também foi lançado no Japão e na Espanha, ampliando o alcance de sua música e conquistando admiradores em diversos países. 
"Eu e Meu Coração", além de nos apresentar as excelentes interpretações de Rosa, é uma obra que sintetiza a elegância e a profundidade da música brasileira. O álbum todo oferece uma experiência auditiva que supera  fronteiras e estilos, reafirmando o talento singular de Rosa como intérprete e instrumentista.
As faixas, todas muito boas, são as seguintes:
"Só Danço Samba" (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
"Água Doce" (Ivan Lins e Vitor Martins)
"Aos Pés da Cruz" (Martino Pinto e Zé da Zilda) 
"Juras" (Rosa Passos e Fernando de Oliviera) 
"Eu e Meu Coração" (Naldo Vilarinho e Antonio Botelino), 
"O Que É Que a Baiana Tem?" (Dorival Caymmi), 
"Desencontro" (Chico Buarque), 
"Se o Tempo Entendesse" (Marino Pinto e Mario Rossi), 
"Dunas" (Rosa Pasos e Fernando de Oliveira), 
"Dois de Fevereiro" (Dorival Caymmi), 
"Surpresa" (João Donato e Caetano Veloso), 
"Minuano"(Rosa Passos e Vitor Martins), 
"Mentiras" (João Donato e Lysias Ênio) 
"Águas de Março" (Tom Jobim). 
O disco está à venda nos bons sites do ramos e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=swt1PaY0X0U&list=PL1nql9qUW9J2fLNf0IkhyNBpMFCKHs5fL

 .
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Pariu-se. E daí?

 Por Ronaldo Faria

                                         

Abestado, Januário, parido na dor da mãe Zifinha, depois de horas de placenta jogada em água amniótica na terra seca do sertão, hoje se pergunta por que nasceu. “A trepada do pai cheio de vontade de gozar valeu o intento do dia encruado e sem vento?” Na dúvida endoidada que a vida sempre dá, ele não detinha a resposta. Fosse ela posta em postas jogadas no breu da feira circunscrita aos pesadelos e desmazelos de antemão. Januário era somente um anuário no calendário de milhares de anos. Talvez um cachorro desses que se encosta e se prostra debaixo da banca de carnes pra ver se um pedaço de sebo cai. No meio de barracas e barcas atoladas na secura de até tristeza alumiar, ele brinca de poder ser feliz. E bebe, derrama goles e ouve foles de sanfona. Quem sabe nalgum canto um canto de louvor há de recebê-lo sem querer cobrar. Se assim, porém, acontecer será milagre desses que nem mesmo Jesus Cristo consegue assinar embaixo e prescrever.
Encruada na mesmice encalacrada que a vida destina e dá, Januária segue com seus terços e novenas a pisar em trilhas poeirentas e de pedras pequenas. Véu na cabeça que um dia já foi branco e vistoso, hoje escurecido pelo pó que sobe do chão, ela vai na busca dos santos que descansam no altar cagado pelos morcegos que descobriram no local o descanso dominical. Cheia de rugas que à face mostram que o tempo eterniza as veredas e sutilezas do mundo, ela busca apenas um tempo extemporâneo que nem o passado sabe ter existido. Na chuva que não bate em Sergipe e nem nas Alagoas, as lagoas jogam líquido insípido aos retirantes que passam na busca de outra vida sobreviver. Na sofrência do ultimato que dentro da gente dá que nem mato, Januária segue feito os bois que carregam o carro a ranger na servidão. Afinal, na taciturna falácia de ser feliz, vale de tudo: a mentira bendita, a certeza inaudita, a crença renhida de saber que nunca chegará.
 
(No som de Seu Luiz Gonzaga)

sábado, 31 de maio de 2025

Dúvidas e dívidas

 Por Ronaldo Faria

 


-- Você viu que o Seu Tranca Ruas estava na seca?
-- Vi. Mas achei que isso talvez fosse bom, para ele ver o quanto dói a gente pedir e querer algo e ficar a ver navios que nunca chegarão num porto sequer.
-- Mas não é assim que o santo funciona.
-- Como assim? É tudo toma lá e dá cá? Aí não é crença. É extorsão.
-- E o que nessa vida não é assim?
-- Quer dizer que rezar e implorar de nada vale?
-- Acho, por experiência própria na imprópria existência de impropérios, que não.
-- Por isso eu acho que ser ateu é o mínimo a se fazer.
-- Pode ser. Quem saberá...
A noite escura como cama de tatame, como exemplificou o poeta, a professa metástase da tristeza que consome o corpo devagar e a vagar, se torna dona do lugar. Certamente, quase tão certo como a álgebra que a bactéria semeia na semente da mente tristonha, pessoas passeiam nas esquinas que se escondem entre as luzes de postes apagados. E acreditam no crer, creditam ao próximo dia a alforria do seu lumiar, percebem que a saudade não traz de volta a reviravolta da vida.
-- Todas as suas decisões foram acertadas?
-- Não. Mas todos os meus erros me cobram até hoje cada passo na estrada.
-- E como fazer um novo caminho?
-- Se for como um novelo, nem em desalinho há linha ou linho.
A cada novo gole que se entranha nas entranhas do corpo e vem do copo, corre um córrego vazio de águas e repleto de mágoas que margeiam a solidão que invade o asfalto em sobressalto com os pneus dos carros que fogem do seu derrear. Na ladeira que desce defronte, a fronte do casal se entrega em beijos e orgasmos mil ao mais senil desejo de se alojar num canto do peito que vive a pulsar.
-- E valeu viver?
-- Acho que sim. Não o fosse, não teríamos esse papo entre escrachos e cachos de uvas mal paridas e mortas nos galhos.
A mão esbarra no copo e o gole ainda posto se torna um escorrer no esgoto. O santo, o mesmo que ficou na secura da fissura de beber, deve ter exigido algo a mais além do copo cheio de aguardente. O dia, agora não quente, se esvai. Na irrisória lamúria da fatalidade, a realidade vive seu amor até o fim.
 
(Com Mauro Senise a tocar Gilberto Gil)

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Entre afetos e desafetos

 Por Ronaldo Faria

 

Gestos prestos e afetos que aos desafetos, nascidos também fetos, parecem somente restos. Canções que se embrenham e se fazem prenhas de uma imaginação sem ação. Que se deixa levar a entoar sílabas, palavras, versos, sesmarias. Na estrada do amor, dezenas de Marias. A José bastasse o nome como sina, todas sairiam formatadas e moldadas de uma mesma oficina. Feitas nos primórdios da revolução industrial, seriam morenas, olhos negros, corpo esguio, bocas ávidas de beijos, corpos largados, entregues e tragados na mesa de um bar. Mas, filhas da pós-revolução de costumes, nunca se deram a curtumes. Cada uma foi feita sob a forja de um destino incomum a todas. Lobas, devoraram à imensidão suas presas e se esgueiraram em esquinas e estradas para seu mundo traçar. Ainda bem. De vagão igual basta trem.
-- E aí, o frio chegou?
-- Sei lá, mas um conhaque já está bom de tomar.
Milton, aquele que todos chamavam de rouxinol pelos mil tons que sabia soprar, viajava nas suas entranhas e artimanhas. Nas manhãs, de ressaca, buscava a receita mágica para voltar à realidade. Na verdade, nunca a viu ou a teve. Sua nuca e cabeça doíam de forma involuntária. Nas tardes, tardiamente tentava lembrar daquilo que havia feito antes. Em vão. À noite, se envolvia em si mesmo e, ensimesmado, ouvia samba e fado, fodia parcas e frágeis lembranças, dormia acordado na fé. Na madrugada, tragada e ultrajada de coisas feitas, refeitas, temerosas do dia a raiar, viajava para o universo próprio cheio de versos a remar rumo ao porto esquecido de Trafalgar. No todo, um tanto de loucura, outro de crer e outro de brilhar.
-- Agora esquentou geral...
-- Te falei. Conhaque a dezenas de graus é animal...
Milton, menestrel que transforma fel em mel (ou vice-versa no verso), segue seu rumo até o fim. E redescobre a simetria entre a loucura e a sanidade, a diferença entre a chegada à vida e a verdadeira idade. Surge e emerge na voracidade de tragar rios e mares, vulgares e sagazes. Tanto faz. Tanto fazia. No fim é tudo orgia vernácula e verborrágica. Coisa atávica ou trágica. Cheia de gozos ou flechas cravadas no coração. Antes de viver na porta aberta pelos decibéis e débeis graus, não há como se saber. Nesse momento, no tormento que se desfaz e se refaz em lamento e amor, que venham todos. Como já disse Milton à amada, ele, eu, você, todos nós estamos facinhos que nem focinho de cachorro no passeio do lazer.
 
(Ainda com Bituca)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Procrastinação

Por Ronaldo Faria



Perácio procrastina o prefácio da festa inexistente que ainda resta. Sabe que o casamento, em lamento, há muito foi para o saco e só espera o lixeiro passar para buscar. Mal sabe onde catar papelões e engradados para colocar os fardos que o acompanham há décadas. Nas peripécias e inércias que a vida dá, faz e apraz, não adianta ser loquaz. Se muito, irá correr os metros finais que a idade traz.
Juventina, eterna menina que não faz a mínima menção de querer viver a vida do outro e vive a pisar em nuvens que são apenas reflexos do medo de saber que o fim chegará por fim, pede a si para ter razão. No coreto, um minueto varre o som silencioso do lugar. Cioso, o maestro rege a banda infanta na busca de alegrar o sumir do sol que antecipa um luar cheio de luz e prata ao seu ficar.
Ambos, Perácio e Juventina, Perá e Tina, nas suas surdas rotinas há muito não têm a sudorese que emana dos corpos a se entranharem num roçar e se estranharem tão juntos no efêmero postergar. Para eles, o toque na pele, o respirar que exala do vilipêndio pleno que nenhum compêndio traz, parece fugidio e ineficaz. Tudo na rotina de uma tina que, furada, nunca mais se enche de água, a vida liquefaz.
A sonhar envolto na brisa que sai de cigarros verdes e sedas, incongruentes catarros e escarros, o homem sentado diante do morro que vê as ondas baterem num repetir assimétrico e assintomático contra as rochas, ri da cena. Ele sabe que o bode e a larica que virão depois são blasfêmias que as fêmeas da sua imaginação irão parir como sentenças em si. De pouco adiantará brilhar ou estar. O jeito é rezar...
Na avenida, na premeditada ermida que a ilusão teima em manter viva, casais e famílias, filhos e filhas, afilhadas e até as mais solteironas frígidas, afilhados e kamikazes de seus trágicos poemas findos, todos se juntarão na canção para levitar. Irão além dos corpos, como tortos e voláteis, voluptuosos e anchos achados, para local qualquer. No reencontro consigo mesmos, nos ermos vazios do silêncio e da ausência, far-se-ão tesão solitário. Do alto do prédio de onde se antevê a tevê ligada no programa que busca a fama, um casal irreal despoja suas vestes para vestir de madrugada a noite virginal. Nos créditos que sobem na tela, a bucólica e angelical promessa...
 
(Sob a inspiração e o som de Silvério Pontes)

terça-feira, 27 de maio de 2025

Na dor, minha dor primeiro e só

Por Ronaldo Faria


O recado é dado e o silêncio é real, definitivo, longe do afetivo gestual, não abstrato. Substrato do sentimento chamado amor, talvez esteja perplexo em si mesmo, mortificado por um mal maior até o fim. Na dó daqueles que esperam reciprocidade, a cidade caminha entre passos dos casais involuntários e o piscar de faróis incandescentes. Às mentes, milimétricas danças egocêntricas e tântricas, jusantes findas em um mar que disseca a seca da paixão, Celidônio está idôneo no frigir de ovos. No caixão fechado, feito achado final e senão, o corpo de Gerusa descansa a saber que não haverá nova dança. Na rua, a contradança se entrega nos salões que ainda brilham em luzes acesas, copos bêbados e cigarros a queimar.
-- Não deu certo por quê?
A pergunta do alter ego de Celidônio fica sem resposta.
-- Sei lá... Acho que não era para ser. Foi o que deu. Depois, cada um no seu mundo e destino.
Aos poucos o velório se enche de pessoas com suas almas penadas cheias de pena de estarem lá. Um ou outro comenta que preferia estar velando a própria solidão numa mesa de bar. Mas eram Celidônio e Gerusa. Algo como peritônio queimado por uma medusa. Não tinha como deixar de dar um abraço no amigo, ver sua musa desnuda do brilho do olhar, quem sabe a vagar noutro mundo etéreo, prestes a se recolher à eternidade do cemitério. No seu canto, a relembrar os momentos de ir e chegar, juntar os corpos e beijar, saudar o fim do dia, comemorar o sol na janela, juntar sentimentos, receitas e panelas, Celidônio, atônito, espera apenas o ataúde fechar.
-- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Quando o padre acaba a oração e benze de água benta o choro que não mais arrebenta ou arrebata dos olhos de Gerusa, o féretro segue pelas alamedas do cemitério até a sepultura, lugar onde a saudade e a ternura se juntam como o único destino. Ao fechar da pedra de mármore com cimento fácil de romper ao próximo corpo que chegar, Celidônio por fim vê que é hora de recriar caminhos, desalinhos de cabelo quando as mãos da amada os tocam, pérfidas cenas de afagos quando um fado emerge da vitrola que pede para se aposentar.
-- Quer carona, Celidônio?
-- Não, obrigado. Vou andar...
Pela praia, cercado de morenas a mostrarem seus corpos e um ou outro vendedor de chá mate e biscoito de polvilho, como um novilho longe da boiada, ele pisa na areia fofa e branca. Lembra das ancas de Gerusa, ri de si, se pergunta para que existe a vida: “Que besteira vir aqui para não se achar e ser perder.” Olha o casal que se beija em línguas e acaricia o corpo que está à toa, ouve a toada primaveril de pássaros que fazem a revoada do amor. Na sua dor tão normal e vulgar, se embrenha no mar contra as ondas que devagar o cobrem de espumas. É encontrado semanas depois, em decomposição, marés e correntes marítimas muito longe do local em que se enveredou. No pasquim das raras bancas de jornal e que escorre sangue nas letras negras, a manchete é “Cadáver bate na areia por não saber nadar”. No quarto e sala de Celidônio, medalhas de competições aquáticas esperam para serem jogadas no lixo.
 
(Ao som do grande Johnny Alf)


Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...