terça-feira, 7 de outubro de 2025

Uma coletânea curiosa

Por Edmilson Siqueira



Uma revista chamada Audio News, que nem sei se ainda existe (parece que agora é só digital e se chama Audio Vídeo Magazine), costumava publicar, junto com as matérias técnicas de aparelhos de sons e congêneres e culturais de música, um CD como brinde para os leitores. Esses CDs andaram por aí, ganhando vida própria nos sebos e, apesar do indefectível aviso "exemplar promocional - venda proibida", eles eram (e são) comercializados, alguns como raridades.  
Eu tenho um desses, nem sei se é raro e devo ter comprado na Hully Gully Discos, do meu amigo Osny. 
No pequeno texto do encarte que acompanha o CD, a promotora escreveu que a seleção era uma junção do que já era clássico com artistas contemporâneos. E que o disco veio pronto da série especial da Movie Play "Remember CD Collection".  
O disco se chama "The Best - Música Americana" e a primeira faixa é "Kiss" (Gillespie e Newman) cantada por... Marilyn Monroe, que, evidentemente não poderia entrar numa lista de "the best" das vozes da música norte-americana. Talvez seja até uma brincadeira da seleção, embora ela cante direitinho essa música. O fato é que, depois dela, surgem Nat King Cole, Frank Sinatra, Fred Astaire (um grande cantor também), Al Johnson, Ray Charle e Betty Carter, Pat Boone, Sammy Davis, Jr. e Shirley Bassey entre outros. Ou seja, um time que merece estar entre os melhores mesmo. 
Há, ainda, Judy Garland e Marlene Dietrich. Ambas se notabilizaram por suas atuações nas telas muito mais que nos discos, mas, se não estão entre as melhores cantoras, não estragam a seleção.  Enfim, o disco é gostoso de ouvir, tem alguns clássicos, mas acho difícil de encontrar por aí. Se ajuda, ele fez parte da edição 55 da Audio Vídeo. 
Marilyn Monroe, na abertura do disco, aparece com sua voz quase sussurrada, cheia de "sex appeal", com um coro masculino a auxiliá-la, deixando a faixa toda muito agradável aos ouvidos.  
Nat King Cole vem a seguir, com "Sweet Lorraine" (Burwell e Parish), gravação da primeira fase do cantor, logo que ele deixou de ser apenas o condutor do seu trio de jazz e passou a usar o vozeirão e o talento para nos encantar. 
O clássico "Smile" (Chaplin, Turner e Parsons) é a terceira faixa na voz de Judy Garland, gravação ao vivo como acusam as palmas no final. A música fez parte da trilha sonora do filme "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin, de 1936. No filme, a música que é de Chaplin e David Raksin, ainda não tinha letra, o que só aconteceu em 1954, por obra de John Turner e Geoffrey Parsons.  
A quarta faixa nos traz Frank Sinatra cantando Cole Porter: "You Do Something To Me", música feita para um musical de 1929 ("Fifty Million Frenchmen ") e que Sinatra gravou em 1961.  
Outro clássico, "Cheek to Cheek", (Irving Berlin) nos é apresentado por Fred Astaire. Detalhe: essa foi uma das muitas músicas feitas para o ator, bailarino e cantor Fred Astaire apresentar em seus filmes. Muitas hoje são clássicos da música norte-americana. "Cheek to Cheek" foi escrita por Berlin para o musical "Top Hat". Nele, Astaire canta a música para Ginger Rogers num número de dança. 
Al Johnson, que nasceu na Lituânia e se consagrou como cantor nos EUA, canta a sexta faixa, "Sonny Boy" (De Sylvia, Henderson, Browm e Jolson). Com estilo lacrimoso dos cantores dos anos 1930, Al faz bem o contraste entre o "antigo" e o "moderno" que a selação pretende.  
A sétima faixa traz de novo o som "atual" do fim dos anos 1950, com Peggy Lee cantando "Fever" (Davenport e Cooley), que foi gravada por vários cantores. Ao som de um contrabaixo, com repercussão de dedos estalando e pequenas intervenções da bateria, essa versão tornou-se a mais conhecida, com letras reescritas e um arranjo musical alterado. Foi top 5 na Inglaterra e na Austrália, além de ter ficado entre os dez primeiros nos EUA e na Holanda. 


Frank Sinatra volta com seu velho e bom estilo para cantar outro clássico: "Night and Day" (Cole Porter), música feita em 1932 para o musical "Gay Divorce" (gay não tinha, à época, o significado de hoje). O musical tinha Fred Astaire cantando o futuro hit. Segundo a imprensa da época, três meses depois da estreia, nada menos que 30 cantores já haviam gravado "Night and Day". 
A nona faixa traz a "cantora" Marlene Dietrich que até cantou "Luar do Sertão" no Brasil, numa visita ao Rio de Janeiro. Aqui ela canta "Lili Marlene" (Schultzel e Leip), canção alemã que se popularizou no Estados Unidos depois do filme "Julgamento de Nuremberg", onde a própria Marlene canta trechos da música ao lado de Spencer Tracy. 
A dupla Ray Charles e Betty Carter, que gravou um disco sensacional, é a responsável por outro clássico deste disco: "Ev'ry Time We Say Goodbye" (Cole Porter). A gravação, que abre o disco da dupla, foi feita em 1961.  
O cantor Pat Boone que arrastava multidões em seus shows, é o responsável pela faixa número 11 desta seleção: "April Love" (Webster e Fain). Típica balada romântica norte-americana, Pat Boone nos entrega aqui a mesma qualidade de sempre. 
Peggy Lee volta para mais um número na décima-segunda faixa: "Black Coffee" (Webster e Burke). Tíco jazz novaiorquino, Black Coffee, a música foi gravada inicialmente num LP de 10 polegadas, em 1953. Três anos depois, Peggy voltou aos estúdios e gravou mais algumas faixas para um novo disco, desta vez de 12 polegadas, tamanho que foi o consagrado na indústria fonográfica.  
A décima-terceira faixa é mais pop que jazz: "The Candy Man" (Bricuse e Newley), cantado pelo grande Sammy DAvis, Jr. A música foi feita para o filme "Willy Wonka & the Chocolate Factory", de 1971. Apesar do sucesso na voz de Sammy, ele jamais gostou dela. 
Por fim, "Send in the Clowns" (Sondhein), com a sempre ótima Shirley Bassey, encerra a coletânea. A música foi feita para o musical "A Little Night Music" em 1973.  
Ao pesquisar no Mercado Livre, descobri que este CD não é raro: há vários exemplares à venda por preços irrisórios, entre 15 e 25 reais. Não encontrei no Youtube ou em outros sites de música.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Questiúncula

 Por Ronaldo Faria


-- Não vai pedir um sanduba?
-- Pra quê?
-- Para ficar mais forte e assim poder sobreviver.
-- Quer que eu te mande ir para a puta que pariu agora ou depois?
-- Sei lá. Fica à sua vontade.
Na mesa do bar, abarrotada de cascos mil, Gabriel, que nada de anjo tem, mas chora hoje até de comédia pueril ou medalha de Olimpíada, não sabe mesmo o que responder. Logo, melhor mesmo um puta que pariu. Quem era Sandoval para lhe dar conselhos? Logo ele, um putanheiro de carteirinha.
-- De boa, prefiro outra gelada. E que chegue logo pra ser tragada.
O dia tinha sido de marasmo profícuo. Desses marasmos sem fim que ninguém quer descobrir. Talvez um crepúsculo orgástico e débil, fatalidade quântica e tântrica, o inusitado fado que percorre as terras causticantes de um Nordeste infértil. Coisa de lembrança tênue e na parcimônia que nos flagra em cada noite bêbada, boêmia e trôpega, mesmo que estejamos a meio metro da cama que acolherá o corpo do aprendiz de poeta e esteta.
O garçom, solícito e em busca dos dez por cento, traz uma daquelas de perna de servente de obra. Na verdade, de perna de velho. E logo nos lembramos da foto da mineira então casada com um mineiro e que nos fez levar ao Rio uma baiana de barro sem quebrar e sem cobrar um centavo sequer. Emoções boas não se cobra e nem se desdobra. Tudo vale por ter valido.
-- Tem certeza de que não vai comer nada?
-- Sim.
-- Mas amanhã vai ser a ressaca programática. Uma dor de cabeça e o andar maluco de não saber o porquê do barulho da noite anterior...
-- Eu encaro tudo de frente como sempre fiz. Afinal estarei aqui no amanhã?
Gabriel não deixava de ter razão. Quem lhe garantia que não morreria na noite que se antecede logo ali? Tantos assim já se foram. Até quem se enterrou com a camisa do Timão. Aos poucos o tempo se destempera e obriga o escritor a escrevinhar linhas tortas e métricas na tela branca que se forra de letras pretas. Coisa do destino, bazofia sem fim. Ou um filme que diz como era gostoso o meu francês. Aliás, foi essa língua que salvou o pobre menino no vestibular, quando ainda era possível optar.
-- É verdade que a sandália antiga hoje simplesmente se quebrou?
-- Pra você ver...
-- Então vamos nos ver nalgum tempo sem nos ver?
-- Quisera saber, quisera saber...
Na questiúncula mínima e semântica daquele que não sabe como sabe o tal português, na verdade sabe sequer como chegou aqui sem conseguir sequer digitar de forma rápida o não, ficam a loucura de achar que a vida de depois há e tudo é apenas mera ilusão. Senão, vivamos segundos sem lucidez ou retidão.
-- Quer saber, somos um 171 que se deu bem e deu certo. Mas o que é se dar bem ou certo? Se acima do chão e ainda na trilha, tanto faz...

(Com Zeca Baleiro)

sábado, 4 de outubro de 2025

Previsões

Por Ronaldo Faria

 

No seu novo livro, "The Singularity is Nearer", Ray Kurzweil, diretor de engenharia da Google, reafirma a sua crença na chegada iminente da Singularidade e prevê que, até 2030, os nanorrobôs médicos e a biologia da IA ​​ revolucionarão a medicina, permitindo uma longevidade sem precedentes e até mesmo a imortalidade.
 
-- Você quer viver pra sempre, Jeremias?
-- De verdade ou só filosofia?
-- De verdade, driblar a morte ou a excrecência da senilidade.
-- Não sei. Parece ser antinatural. Fomos feitos para nascer e morrer.
-- Será?
-- Acho que sim, como numa história, há início, meio e fim.
-- Mas porque há de ser essa a história de vida de cada um de nós?
-- Sei lá, porque assim fomos criados. Ensinados.
-- Adestrados, talvez...
-- Talvez. Nunca saberemos que não e nem que sim.
-- E se chutarmos o balde e continuarmos vivos a brindar a vida?
-- Brindar o quê? Brochas, senis, com a pele encarquilhada e velha?
-- É verdade. Ser eterno já velho deve ser uma merda...
-- Portanto, melhor é seguir o ciclo vital e morrer.
-- É, acho que você tem razão. Afinal, para humanidade ainda seremos velhos a tentar ser.
-- Logo, possamos pedir mais uma e viver o tempo que nos resta nessa conversa.
-- Seu José, desce outra depressa antes que o infarto ou o câncer nos dê o fim.
 
II
 
Virgínia, virgem como a flor que desabrocha antes de nascer, sonhava com seu amado, Amaro. Amargo para muitos, um ser cheio de perfídias e rimas nos percalços da vida, ele era um mero funcionário de cartório a carimbar vidas e mortes, imbróglios e pendências de outros seres talvez tão iguais a ele na sua imensidão. Da cama vazia logo às seis da manhã para o trabalho, um almoço xoxo, um café quase frio, ônibus lotado, casa e janta tardia, mera fantasia. Nos seus pensamentos, entre sofrimento e lamentos, nem sempre a amada aparecia. A manhã fria e cinzenta, chuvosa e tardia, era o quadro ideal em pinceladas trágicas e atávicas. Na verdade, seus dias eram prazeres mínimos, milimétricos e enfadonhos. Pouco havia a prever ou rimar.
-- E aí, Amaro, vamos beber?
-- Pra quê?
-- Pra desanuviar dessa vida, falar besteira e viajar na maionese.
-- Não, obrigado. Prefiro ver a tristeza chorar de forma solitária.
Os amigos, bem poucos e desses que se conta em um dedo das mãos, já tinham esquecido dele. Por dó ou por descobrirem que não há porque buscá-lo no seu emaranhado de fugas e solidão. Na navegança de mar aberto, seja a costa longe ou perto, ele preferia estar desperto no seu mundo próprio. E se sirenas ou sereias estivessem a disputar com baleias e monstros marinhos cada légua marítima, pouco importava. Bêbado, estropiado e perdido, virava náufrago de si mesmo, a se agarrar na única boia que ainda restava na popa ou na proa do navio a submergir. Agora, só lhe restara Basílio.
-- Então, boa noite naquilo que ainda resta de noite...
-- Tudo bem e obrigado por tudo.
A caminharem em direções divergentes, lá se vão dois corpos ausentes, sementes largadas em chãos diferentes. No céu, uma ou outra estrela surge entre nuvens de chuva e frio real. Para o mundo, tanto faz como tanto fez... Na cama, com lençol de cambraia branco e cheiroso, Virgínia dorme mais uma noite vazia.
 
III
 
A tarde sem nuvens ou poentes cinematográficos se põe no horizonte. Um casal ou outro, novo como amantes ou paixão fugidia, se traveste de contos derradeiros ou sonhos a viver. Não há muito como saber. Afinal, como dizia o poeta, cada um sabe a dor e alegria de ser o que se é. Mas lá estavam eles, a se beijarem, se tocarem, se perderem num maremoto de emoções sem ser. Haverá outro encontro? Saber-se-á. O importante naquele minueto do momento era nada importar.
A tarde infinita na finitude que escapa nos grãos de areia alva, entre pés e corpos prostrados em decúbito dorsal para facilitar a penetração, se prostra famélica e tardia nas sombras que surgem detrás das montanhas que se vestem de pedra e verdes. Num ou noutro espaço, de forma branda ou enlouquecida, a perfídia carcomida que de nada vale estar morto ou vivo. Em momentos de rebentos, sedentos de algo a prever no momento do depois, ambos, homem e mulher ou sejam eles de que sexo forem, apenas esperam os escombros que as cinzas do futuro dão ou darão.
Na tarde cadavérica e feérica, meio formicida e homicida, cariocas e paulistanos se juntam feito água e óleo. E aos poucos chega a referida noite, notívaga em si mesma, cheia de dramalhões e fastios, fatal para cada negror que ilumina o restante de vida de calendário. Nunca mais será a mesma. Viverá somente na lembrança, sem semente ou drama. E irá rir ou rirá dos absurdos que apenas a incerteza da certeza inexistente dá. E tudo ficará bem. Porque não há nada mais além.
 
IV
 
-- E aí, o que vai querer?
-- Cerveja, um meia-lua e poder bater um tambor com o Ding Dong  quando não houver mais ninguém aqui no Natural. Pode ser?
-- Quanto a cerveja e o meia-lua tudo bem. Já o batuque, vou ver...
Esse diálogo existiu? Certamente não ou sim. Se quem viveu não sabe cravar a veracidade, imagina quem sequer viveu um segundo do autor da lembrança da lambança. Mas que rolaram batuques com o Ding Dong, isso rolou. Em alguns dias pude ser músico (certamente horrendo no ritmo) da noite, nas noitadas que já não existem no Cambuí. Mas isso eu fui. E ninguém tira isso de mim.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Poemiseta (coisa de velho)

 Por Ronaldo Faria



Parcimônia que cheira que nem rara amônia.
Canção derramada em gotas na beira do rio.
Esperança que a mulher desperte nua para o cio.
Esperas na fera que se acalenta de quase nada.
Simbologia da orgia tardia e afugentada daqui.
Fotografia sem grafia de quem se esqueceu de grafar.
Epifania daquele que é apenas refugiado de si.
Plural em sevícias frígidas e trágicas no anoitecer.
Talvez uma tez famélica de ser tocada e beijada.
Aquela que o poeta concretiza em cada verso.
Canção perpétua e dúbia, algoritmo sem fim.
Talvez o crivo do crível descobrir no incrível desamor.
Na poesia contínua do lugar, o coração a bater no arfar.
Na saudade sem maldade, um eterno divagar.
Mas em qual lugar iremos um dia ou momento chegar?
Com certeza e experiência da ciência pessoal, nenhum.
Mas há onde o bote de naufrágios aportar o leme de chegar?
Entre segundos e fugidios minutos, o lar de Iemanjá.
Daqui, longe da Bahia, o tardio glamour de saber só ser.
No viés das ondas plurais, o mistério do entardecer.
Entre o eu mesmo e o eu de quem sabe o quê, o fim.
Erva doce a queimar no lugar e se largar no céu.
No fel de cada paixão, onde poder parar e crer?
No próximo dia, prostrado de ressaca, a cândida canção.
A esperança do ar rarefeito feito unção de torpor.
E talvez, quem sabe, no canto do sabiá entorpecerá.
Embriagado, abrigado em si, o poeta tenta se eternizar.
No vento parado no tempo, um livro de livre sexo.
E surge e urge o grito que esconde o condito urgir do mundo.
Falsas elegrias tardias e dispersas feito relicário de amor.
Como a cama que corre o quarto no frigir de gozos e odor.
Madrugadas naufragadas em elegias ternas de torpor.
Mas agora, na fauna e na flora, apenas se faz eólico fim.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Amedrontado

Por Ronaldo Faria

 

Toada tardia no fastio da saudade infausta que torna cada dia mais perto da essência finda de ser. As trilhas percorridas em corridas e passos largos para achar que se pode ser. O restante, diríamos de pulmões plenos, vá se foder!
Tempos de bares sonoros, cheios e solitários, antagonismos entre a felicidade e o fim. Lampejos de sortilégios que fogem a cada sono solitário e acordam no mundo insone para tragar em pesadelos o simples e etéreo dormir.
Brincadeiras efêmeras de macho e fêmeas, retornos etéreos entre beijos e versos, corpos transversos a roçarem o limite entre o começo e o fim. Coisa para iluminar de candelabros inexistentes os descalabros que a esperança dá.
Caminhar em ruas escuras, soturnas e tardias que a cada dia escurecem para depois se iluminar. Na cama, deitado e prostrado, o poeta venera o corpo desnudo e mudo que dorme a incerteza de que pode tudo do zero recomeçar.
Em mesas quietas e voláteis, táteis mãos não acariciam a pele ou os pelos que esperam esparramar ao derredor a dor de desejar. Na meia lua de um prato pálido, o comer fisiológico do que realmente se queria naquela noite comer.
No quarto, átimo de uma vida, a sentença crível e solitária de quem espera a amada que deixou fugir. Na rede que há muito deixou de balançar, o corpo abrupto, longe da terra natal, naturaliza o desejo de um dia ter seu bem-querer.
 
(Com o som de Beto Guedes)

domingo, 28 de setembro de 2025

O segundo disco dos Mutantes: uma revolução

Por Edmilson Siqueira


Eu já escrevi sobre eles aqui, mas nunca é demais voltar ao tema, com mais detalhes, afinal não é todo dia, nem toda década, que há uma revolução musical no Brasil. E ouvir novamente esse disco é como voltar num tempo que, apesar de uma ditadura sombria, trazia novos ares. E essa nem foi a maior revolução musical de todas, mas foi uma delícia. 
Com vocês: "Les Mutantes du Brésil: nouvelle tendances, nouvelles idées, nouvelle vie".  
A frase acima soou como um slogan na França em 1969. Era a descoberta, para o público francês do Midem (Mostra Internacional do Disco e Edições Musicais), do grupo brasileiro que estava revolucionando a MPB com sua ousadia e, claro, com novas tendências, novas ideias e nova vida.  
Eles chegaram na França logo depois de gravar o segundo disco por aqui: "Mutantes". E é esse o disco desse artigo. 
No final de 1968, ano da macabra estreia do AI-5, que apertou ainda mais os braços sangrentos da ditadura militar no Brasil, os Mutantes - Arnaldo Baptista, Sérgio Baptista e Rita Lee, mais o baterista Ronaldo Dias Leme e Claudio Baptista (irmão de Arnaldo e Sérgio e "mago em eletrônica") - estavam no estúdio, sob a batuta do também ousado maestro Rogério Duprat, gravando o que viria a ser um dos mais cultuados discos do pop-rock brasileiro de todos os tempos. 
E foi tão impactante, que Nelson Motta escreveu também no encarte: "A cada dia, nas voltas mais rápidas do mundo, mudam os conceitos, muda o sentido das coisas, muda a direção das emoções e a arte caminha cada vez mais livre, pelos mais estranhos e impossíveis caminhos. Ficou longe o dia da "Arte", e o mundo moderno decretou as inevitáveis ligações arte-consumo, arte-comunicação, arte-indústria, arte-massa, arte-utilidade: Mutantes." 
Não é pouco para um país cuja música parecia ter se "modernizado" com os novos compositores revelados e/ou consagrados nos festivais que, naquele ano de 1968 já estavam em franca decadência. Não que Chico Buarque, Edu Lobo, Vandré, Gil e Caetano tivessem sido passado para trás. É que os Mutantes, eles próprios participantes de dois festivais - um como coadjuvantes de Gilberto Gil em "Domingo no Parque" e noutro como autores de uma das músicas (que não ganhou prêmio algum), com aquele espírito anárquico-musical pareciam, a princípio, não terem lugar na "nova" MPB. 
Só que o talento foi maior que as dúvidas e suas músicas passaram a tocar nas rádios, os shows se sucederam e eles acabaram tendo grande participação no Midem da França, para onde voltaram no ano seguinte para shows e para gravar um disco - "Tecnicolor" - que por um desses mistérios insondáveis só foi lançado em 2000. Era um projeto pra internacionalizar o grupo - muita gente dizia, com certo exagero, que eles seriam nos novos Beatles. O disco tem músicas em português, inglês, francês e espanhol. Não sei por que não foi lançado à época, mas quando decidiram lançar, 30 anos depois, teve uma capa ilustrada por ninguém menos que Sean Lennon, filho de John e Yoko.  


O crítico Fábio Rodrigues comenta, no encarte do CD, lançado bem depois do LP, algumas músicas do segundo disco dos Mutantes, que tem um "caldeirão de ritmos, influências e misturas impressionantes". 
"Fanfarras épicas prenunciam a aparição de um exército medieval e apresentam um 'Sancho Quixote, mascando chiclete'. É um 'Dom Quixote' (Arnaldo Baptista e Rita Lee) brasileiro, buzinado pelo Chacrinha e fulminado pelos acordes de 'Disparada', de Geraldo Vandré e gargalhadas histéricas." 
A segunda faixa, 'Não Vá Se Perder Por Aí' (Raphael Thadeu, da Silva e Roberto Loyola) é um country com direito a rabeca e bons conselhos: 'Cuidado meu amigo, não vá se estrepar, não queira dar o passo mais largo do que as pernas podem dar'. E as mutações continuam. Em 'Dia 36' (Johnny Dandurand e Mutantes), o clima fica soturno, o vocal é distorcido - foi gravado através do canal de som de um órgão - os instrumentos estão fora de rotação como se alguém segurasse o disco no prato até pará-lo." 
Fábio Rodrigues prossegue: "As surpresas não param por aí. 'Dois mil e Um' (Rita Lee e Tom Zé) começa com uma viola, sanfona e vocal caipiras: 'Astronauta libertado, minha vida me ultrapassa em qualquer rota que eu faça. Dei um grito no escuro, sou parceiro do futuro na reluzente galáxia'. É dupla caipira, é rock pesado, é Mutantes e Tom Zé - que David Byrne descobriu mais de 20 anos depois." 
Além dessas, o disco contém: 
- "Algo Mais" (Mutantes), que foi a música que o grupo fez para um comercial da Shell. 
- "Fuga Nº 2" (Mutantes);  
-  "Banho de Lua (B. de Filipi, F. Migliacci - versão de Fred Jorge) 
- 'Rita Lee" (Mutantes) 
- "Mágica" (Mutantes) 
- "Qualquer Bobagem" (Tom Zé e Mutantes) 
- "Caminhante Noturno" (Arnaldo Baptista e Rita Lee) 
O CD é encontrado em alguns sites do ramo a preços razoáveis (100 reais no mínimo. Mas o LP já está na prateleira das raridades, com preços acima de mil reais quando em bom estado. 
No Spotify dá pra ouvir o disco inteiro em https://open.spotify.com/intl-pt/album/63cmfLGQUMuPRwgllZmz6a . No Youtube dá pra ouvir em https://www.youtube.com/watch?v=XyYAQHCnRu4&list=PL2R1HJ6BBn93Nb5ylNd9Q65fXzWV75sna

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Escarafunchando o som de Sandra de Sá

Por Ronaldo Faria


Caramanchões da África que beira o outro lado do Atlântico afônico em receber atônito o tônico de ervas e sabores que se esparramam pela terra que se espraia em mil jardins de ervas e províncias etéreas dessas que surgem para ficar em grilhões rompidos e jogados das galés sem fé. Em cada nova cria, a sina da vida: nascer pra crescer e gerar novas vidas.
-- Boa noite, Adão...
-- Boa noite, Jeremias.
-- E aí, como foi o dia?
-- De serena e sonora sangria. Peguei o trem, transitei entre ruas e esquinas, vi minha sina em cada olhar racista e simplista de ver a vida na cor da epiderme.
-- Não liga, a vida é uma série de verme...
-- Sei disso. Mas, se sobrevivi até hoje, vou até o fim. A luta é o nosso esquema.
Na revolta que a volta em meia volta dá e deixa, o som da música preta e os atabaques que baqueiam e findam os muitos baques que atropelam peles na junção do mundo. Lá no fundo, onde o coração bate igual e próspero ou letal, tudo é igual.
-- Como vão as crias?
-- Meus filhos vão bem. Estão vivos e plenos. Há muito deixaram de ser nenéns. São guerreiros e vencedores. De sementes, viraram flores plenas e belas.
-- E com certeza irão criar raízes e gerar gerações de homens e mulheres que rasgam as intempéries e chegam dos oceanos do mundo para atingir os continentes finais. Nunca letais, porque algum dia a sanidade vencerá. E não haverá partilhas, matilhas de cães raivosos a morder a própria pata e vociferar o ódio enlouquecido. Esse será esquecido e remetido ao obscurantismo da humanidade. E ninguém sentirá saudade. A maldade ao lixo enfim irá ser entregue e enterrada. E toda a bruxa irá virar fada, sem cor, sem raça, sem parar no meio da calçada.
-- Enfim, vamos curtir a vida. Chega de ter falésias que se entregam ao mar.
-- Com certeza. Cada minuto é mais uma série de segundos que devemos tornar num palco de trocadilhos, centelhas e estribilhos. Todos como a canção da liberdade sem fim.
Em volta, a noite respira em cada pulmão o mesmo cheiro que logo mais fará madrugada despertar.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Renato Braz e Roberto Leão: dois sotaques na canção brasileira *

Por Edmilson Siqueira



O disco "Mar Aberto", parceria entre o cantor Renato Braz e o violonista Roberto Leão, é um desses trabalhos que surgem como um sopro de frescor e sensibilidade dentro da música brasileira contemporânea. Lançado no início dos anos 2000, o álbum sintetiza duas trajetórias que se cruzam em torno de um repertório sofisticado, no qual tradição e modernidade convivem tranquilamente.  
Ao unir a voz límpida de Braz ao toque delicado e preciso de Leão, o disco conquista pelo equilíbrio entre simplicidade e refinamento. O resultado é uma experiência musical marcante. 
Renato Braz já é reconhecido como um dos grandes intérpretes da nova geração da música brasileira. Dono de um timbre suave, de uma emissão clara e de uma técnica a serviço da emoção, ele se destacou pela habilidade de construir leituras de clássicos e contemporâneos sem recorrer a exageros ou firulas. Sua voz passeia entre o popular e o erudito, aproximando-se do canto camerístico, mas sem perder o calor da tradição da canção.  
Roberto Leão, por sua vez, é cantor português de trajetória sólida que se entrega às canções com a mesma seriedade de Renato, formando uma parceria que, diferente nos sotaques, se encontram na emoção da palavra cantada.  
A música "Mar Aberto" (Breno Ruiz e Cristina Saraiva), que dá título ao disco, traduz bem o espírito do disco abrindo horizontes sonoros que serão explorados por ambos.  
O repertório escolhido passeia por diferentes tempos e estilos da canção brasileira. Estão presentes compositores de diferentes gerações, evidenciando a preocupação em criar uma ponte entre o passado e o presente. Da riqueza melódica de Dorival Caymmi à modernidade de Edu Lobo e Dori Caymmi, passando por parceiros mais recentes, o disco reflete a pluralidade da música brasileira que, sem parecer contraditório, não soa dispersa: é justamente a unidade estética entre as vozes que confere coerência ao conjunto. 
Um detalhe interessante, que aprofunda a proximidade entre artista e ouvinte é que Renato Braz e Roberto Leão optaram por reduzir a formação ao essencial: voz, violão e piano de modo que ficam aparentes a força e a beleza musical. Cada acorde, cada frase vocal, cada silêncio ganha relevo. A ausência de excessos torna-se uma virtude, permitindo que a canção se apresente em estado quase puro. 
Outro aspecto que merece destaque é a dimensão poética do repertório. As letras escolhidas falam de amor, de mar, de tempo, de memória. São temas caros à canção brasileira, mas tratados com a delicadeza que marca a obra de Braz e Leão. O ouvinte é convidado a se deixar levar por imagens que evocam a natureza, o cotidiano, a saudade e o afeto. O mar, em particular, aparece não apenas no título, mas como metáfora recorrente ao longo do disco, associando-se à ideia de travessia, de vastidão e de profundidade. 


A economia de recursos confere ao álbum uma atmosfera quase camerística, que o diferencia das grandes produções e o aproxima do universo da música de câmara popular. Essa estética intimista encontra eco em trabalhos de artistas como Dori Caymmi, Mônica Salmaso e Guinga, todos herdeiros de uma linhagem que valoriza a sofisticação melódica e a delicadeza da interpretação. 
Outro aspecto que pode chamar a atenção do ouvinte mais atento, trata-se de um trabalho que exige tempo e silêncio para ser apreciado. E o ouvinte que se dispuser a embarcar nessa viagem sonora será recompensado com um repertório que se revela aos poucos, como camadas de significado que emergem a cada nova audição. 
É isso ái: em tempos de pressa e ruído, "Mar Aberto" se oferece como um convite ao recolhimento e à contemplação. Mais do que um disco, é uma experiência sensorial, um mar no qual vale a pena se lançar, sem medo do horizonte infinito. 
São as seguintes as nove faixas no disco: 
- Canção de Embalar (José Afonso) 
- Elogio (Mario Gil) 
- Milagres (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) 
- Francisca Santos das Flores (Dorival Caymmi) 
- Saveiros (Dori Caymmi e Nelson Motta) 
= No Coração das Procelas (Dori Caymmi e Paulo Frederico) 
- Nevoeiro (Mario Gil e Breno Ruiz) 
- Marinheiro do Mar (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) 
- Mar Aberto (Breno Ruiz e Cristina Saraiva) 
O CD pode ser adquirido nos bons sites do ramo. Não encontrei o disco inteiro no Youtube, mas há um show "Mar Aberto" com o elenco todo gravado em Portugal, com imagens em https://www.youtube.com/watch?v=P0m6I2t-VJA

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Testemunho rápido

 Por Ronaldo Faria


Um violão dedilha seu som nos dedos daquele que tenta tocar seus trastes tristes e tragicômicos. E joga sons ao vento e ao léu. Encontra ouvidos e seres que vivem a buscar seu porto torto no entorno dos oceanos. Diante de teclas que antes eram mecânicas e sonoras, o poeta profetiza sua sina urdida em câmera quase lenta, fosse a vida contada quadro a quadro. 

Saudemos nossos músicos invasores dos tempos que fazer ouvir se torna mais distante do que sonhar que é possível viver de arte. Façamo-los crer que o pranto estancou nas notas dedilhadas, tocadas, batidas, famélicas de tanto querer... 

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sábado, 20 de setembro de 2025

Sempre voltar a Itamar Assumpção

Por Ronaldo Faria


A noite, essa peça de açoite diário, vocifera que é dela que vem a orgia da poesia. E não está errada. A voar no calendário gregoriano e no tempo como fada, volatiliza o estigma que vem e volta gota a gota. Afoita, atônita em morrer de querer e chegar, é apenas solicitude a cada atitude tomada no nível do mar ou na altitude. Senão, é apenas ela: noite.

-- Parece que perdemos a guerra contra a vida. Fizemos todo o possível, em vão. Mas, afinal, no final de tudo, se você não sabe andar é certo que trupica.
-- Certamente essa é uma tese taciturna, mas real.
-- E aí, acha que tem salvação?
-- Só se formos rumo ao Japão.
A noite que se antecipa em píncaros à picardia tardia que desabrocha de cada flor que nasce na rocha, sabe que tem pouco tempo na Terra. Também é muita sacanagem com ela. Incrustrada nas tardes que crescem a cada estação e na madrugada que assola o mundo a fundo, minimiza o tempo restante. Mínima no vazio tardio que a imensa realidade nos dá, brinca de pular corda já sabendo que uma das pontes que gira o destino irá lhe sacanear. Menina dos olhos da eternidade, a noite é apenas um presente sem passado. O futuro? Que furo... Não haverá. Como diria o poeta negro e preto, a natureza está morta e a cama dorme vazia.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Casal sem ser

Por Ronaldo Faria


Eram um casal de comercial de margarina depois de uma angina, mesmo que esta vida estivesse vencida na gôndola do supermercado. O tempo, porém, prostrado no calendário, não os deixava se encontrar. Impávido em seu colosso, o destino sempre programava algo. Doença, netos, fetos, fratricídios, corpos separados e uma ou outra intempérie safada e escrita que nem conto de suspense. Se não vivessem no Brasil, certamente um vulcão jorraria chamas incandescentes sobre eles ou um terremoto os faria sucumbir diante de uma marquise qualquer. Como a cartomante a revelar que nada nunca mais os iria unir. “As cartas mostram dois enforcados na mesma árvore, mas ela foi replantada depois da morte do primeiro num lugar lúgubre e longe. As suas almas jamais se encontrarão”. No encontrão que se dá entre dois corpos em contramão, eles eram os personagens principais, como tais e quais.
Até poderiam ser protagonistas de presépio de Natal – Maria e José. Mas não eram. Eram somente José e Maria, nomes comuns na vida desigual. Dois destinos em desatino que se misturaram numa escada e se perderam noutra esquina. Personagens atávicos e dramáticos de uma peça de Nelson Rodrigues, enamorados de vinhos e fados, fugas e votos de sempre querer, só se esqueceram da própria estrada escrever. Talvez um barco perdido no oceano onde rio e mar se fazem irmãos e vãos que correm como areia pelas mãos. A fluírem feito sangue nas artérias, se perdem em dois corações imaturos e quase mortos de nada bombear. Ou seja, amargos doces de cocada que a baiana vende na barraca da vila desejada. Nalgum lugar, a gargalhar, o senhor das vidas desregradas e separadas toma mais um gole em homenagem à tristeza que a certeza de talvez na próxima encarnação algo virar poesia ou canção.
 
No mar que bate na areia tresloucada e vazia de ser apenas areia, o peixe recém-nascido brinca de achar que na terra firme ainda poderá viver...
 

(Ao som de Anna Setton)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Entre crocodilos

Por Ronaldo Faria


-- Aí já é muita crocodilagem...
-- Será?
-- Claro que é. Se o cara é bom da boca, respeito. Se é meia boca, pau nele...
-- Mas isso não é a lógica da tal visão capitalista?
-- Com certeza.
-- Ou seja, é tudo um bando de filho da puta?
-- Certamente. Jairão, traz mais uma!
Fim de tarde. Carlos e Bernardo discutem as relações que existem pra lá do fim do mundo. E eles estavam apenas num subúrbio, que alguns chamam de periferia. Comunistas? Não. Apenas operários da vida, desses que pegam trem, ônibus apinhado de sardinhas na lata rodante, moradores de casa pequena, diminuta, abrupta no seu jogar entre uma rua sem terra e terra de ninguém. Dois a mais, sem muita estatística oficial para delimitar em que classe estariam. C, D, E ou algo assim? Falta um recenseador para lhes dar lugar digno nas planilhas oficiais.
-- E aí, saiu o aumento?
-- De trabalho?
-- Claro que não, caralho! De grana.
-- É óbvio que não. Você acha que o patrão é candidato a vereador ou benfeitor?
-- Sei lá. Não trampo lá.
-- Então eu te respondo: tudo na mesma. A merda continua igual.
Devagar uma ou outra lâmpada acende no derredor. Sem muita pressa ou dor. Na porta da casa rosa, que se mistura no verde das mangueiras cheias de frutos comidos pelos pássaros e meninos, Maria espera por Feliciano (outros personagens em cena). Esse, feliz da vida que logo voltará nos braços da amada dedicada e entregue aos delírios do juntar, vem no passo devagar. Quer ver cada olhar distante que Maria entrega ao vento silente que corre com sabor comida fervida para embriagar o mundo longe do mar.
-- E a Verinha? Ainda está com ela?
-- Melhor seria perguntar se ela ainda está comigo.
-- Como assim?
-- Tivemos um arranca-rabo feio, quase um entrevero. Nem sei se vale a pena voltar para casa.
-- Com certeza vale. Sempre vale.
-- Acho que vou ouvir o teu conselho, mas antes vai ter a saideira. Jairão, mais uma e a outra na faixa!
Devagar o bar vai enchendo de mais Carlos e Bernardos. Marias e Verinhas. Vai conquistando seu espaço de saudades tardias, reminiscências gerais, tristezas travestidas de bolhas que sobem no líquido amarelo e gelado que escorre no copo e desce gargantas que estão cansadas de tanto falar amém. Aos poucos, um ou outro negligencia o mundo torto que corre perto e pranteia de toques, beijos e abraços o regaço onde o toque faz tudo mudar. Mordaz, o tempo escreve nas suas linhas tortas e voláteis a sordidez entre a sanidade e a loucura. A tal linha tênue que tanto descreve e escreve o destino de cada um de nós. A sós, todos sabem que o agora é somente vida ilusória e rápida como o som de uma voz. No fim, só nos resta esperar.
-- Jairão, pendura a conta no cabide do Abreu!
 
(Em homenagem a este bar do Maranhão)

domingo, 14 de setembro de 2025

Gary Burton, um vibrafonista no jazz *

Por Edmilson Siqueira



O disco foi lançado em 1981 e foi gravado ao vivo no Festival de Jazz de Cannes. E o som é perfeito. Ou seja, há 44 anos as técnicas de gravação ao vivo já eram das melhores. Estou falando do disco "Gary Burton - Live in Cannes". Trata-se de registro que revela não apenas a genialidade do vibrafonista norte-americano, mas também a atmosfera vibrante da cena de festivais de jazz europeus no início da década de 1980. Gravado na Riviera Francesa, o álbum captura a energia comum de uma apresentação que combina improvisação, lirismo e a linguagem moderna do jazz que Burton ajudou a moldar ao longo de sua carreira. 
Claro que não estamos falando de novatos do jazz, afinal, o festival de Cannes é um dos maiores do mundo, fazendo jus ao festival de cinema que ali perpetua fantásticas produções cinematográficas.  
Gary Burton, hoje com 83 anos, era, àquela altura, um dos mais respeitados vibrafonistas da história do jazz.  Vibrafone é aquele instrumento tocado com umas baquetas, percussivo, mas harmônico e melódico. Seu som lembra gotas de chuva saindo na água, como definiu a Zezé, minha companheira, um dia no carro ao ouvir esse mesmo disco, num de seus solos perfeitos, por sinal, uma música de Jobim.  
Burton, diz sua biografia, desde os anos 1960, havia introduzido novas técnicas de execução no instrumento — como o uso inovador de quatro baquetas simultâneas, que ampliou as possibilidades harmônicas do vibrafone — além de ser um dos pioneiros do jazz fusion, fundindo elementos do jazz com o rock, a música brasileira e a música erudita. Trabalhou ao lado de nomes como Stan Getz, Chick Corea, Pat Metheny, Carla Bley e muitos outros, sempre em busca de uma sonoridade que dialogasse com diferentes linguagens. 
A época em que "Live in Cannes" foi gravado marca uma fase de transição importante: Burton já consolidara sua reputação como líder de grupos e também como educador, sendo uma das figuras centrais do Berklee College of Music, em Boston. O festival francês foi palco ideal para apresentar seu repertório e sua versatilidade, diante de um público europeu que sempre demonstrou grande apreço pelo jazz norte-americano. 
O disco se destaca por sua espontaneidade. Ao contrário das gravações de estúdio, nas quais tudo pode ser ajustado e planejado, "Live in Cannes" mostra o virtuosismo cru de Burton e sua interação não só com os excelentes músicos que o acompanham em ci nco das sete faixas, como com a plateia. A cada faixa, percebe-se a fluidez da improvisação, a liberdade rítmica e a precisão técnica que o vibrafonista e o grupo possuíam.  
Nas faixas dois e quatro, o vibrafone de Gary reina sozinho. Nas faixas três, seis e oito, ele é acompanhado por Ahmad Jahmal no piano, Sabu Adeyola no contrabaixo e Payton Crossley na bateria. E nas faixas cinco e sete, por René Urtager no piano, Pierre Michelot no contrabaixo e Daniel Humair na bateria. 
O álbum passeia por um repertório variado. O que impressiona é a forma como Burton mantém um equilíbrio entre a clareza melódica e a complexidade harmônica, características que sempre marcaram sua música. 
Além disso, percebe-se que Burton já havia se tornado um elo entre diferentes gerações do jazz. Sua abordagem moderna dialogava tanto com músicos veteranos quanto com jovens talentos — alguns deles, seus próprios alunos em Berklee. Essa capacidade de unir tradição e inovação é talvez o legado mais importante de sua carreira.  
A faixa primeira do disco não é uma música. Trata-se da introdução do grupo com bom humor por Philippe Adler, talvez o mestre de cerimônias do festival. 


  
"My Foolish Heart" (Washington Young) abre realmente o disco. Uma balada clássica, carregada de emoção, onde Burton utiliza o vibrafone como extensão da voz humana, explorando a melodia com sensibilidade e riqueza harmônica, enquanto o trio rítmico acompanha com sutileza. 
Na terceira faixa "One" (Sigidi Abdula, uma composição que se expande com liberdade. A improvisação se torna densa e envolvente, com Burton explorando ondas sonoras mais amplas. O piano, baixo e bateria respondem com diálogos dinâmicos, criando um momento de pura improvisação. 
A quarta faixa é um solo magnífico de "No More Blues", nosso famoso "Chega de Saudade" do maestro soberano Tom Jobim.  Burton caracteriza o tema com leveza, swing e invenção harmônica, mostrando toda sua habilidade na profusão de notas que envolve a melodia de Jobim.  
"The Night Has a 1000 Eyes" (Berneir e Brainin), a segunda faixa mais longa do disco, vem a seguir e é um standard animado, apresentando jogo rítmico e aventura melódica. A melodia ganha contornos expressivos no vibrafone, com sequências rápidas e respostas do piano e bateria que criam uma pulsação emocionante. 
"Autumn Leaves" (Kosma e Prevert) [e a sexta faixa e, claro, se trata de outro clássico do mundo jazzístico, frequentadora assídua de apresentações ao vivo. Aqui, Burton alterna suavidade melódica com intensos momentos de improvisação, equilibrando lirismo com profundidade, criando uma narrativa sonora envolvente. 
"African Flower" (Kennedy e Ellington), a sétima faixa, inspira um clima mais introspectivo. Burton trabalha com sonoridades mais longas e etéreas, destacando o aspecto espiritual do tema. A banda acompanha com apoio discreto e sensível, respeitando o espaço sonoro. 
Por fim "Bogotá" (Evans) fecha o disco e é a faixa mais longa da apresentação, com mais de 10 minutos, onde o virtuosismo de Burton aparece em toda sua amplitude: viradas improvisadas, exploração de texturas e interações pulsantes com a banda, construindo um clímax envolvente que fecha o álbum em grande estilo, para o aplauso da plateia presente.  
 O CD está à venda no Mercado Livre e deve estar em outros bons sites do ramo. No YouTube não encontrei o disco inteiro, mas há várias músicas dele gravadas aleatoriamente.  

*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Auto-papo (e se a palavra não existir, foda-se)

 Por Ronaldo Faria



-- Boa noite, minha insana consciência...
-- Boa noite, minha lucidez maluca e translúcida.
-- E aí, vai tudo bem?
-- Estamos indo. E vindo.
-- Só em lembranças tronchas e antigas?
-- Com certeza. É o que me resta.
-- Mas por que só relembrar a saudade que dói?
-- Sei lá. Talvez porque haja pouco a lembrar.
-- Como assim? Apenas a dor faz algo surgir?
-- Saber-se-á ou saberemos lá...
-- Caralho, certamente na sua mente existirá felicidade a povoar!
-- Entendo a sua colocação. Por isso a busco no coração.
-- Engraçado: você me acha um baita cara de aconselhar e não me deixa te guiar.
-- É. Infelizmente a minha mente me boicota feito galhofa.
-- Pois então a deixe seguir seu rumo numa pororoca.
-- Quem dera. Mas nasci com ela e ali não há lugar para quimera.
-- Sério? Nem tem espaço para outra quimera?
-- Quem dera...
-- Que merda.
-- Com certeza. Sou um andarilho de caminho igual. Ungido de au-au.
-- Então a solução é mesmo se embriagar para criar, fugir e viver.
-- Talvez. Você conhece outro lugar para se refugiar?
-- Vou pesquisar e te digo logo mais.
-- Sabe que eu curto ter você como meu alter ego?
-- Obrigado. Eu tento dar o meu máximo, mas você não me escuta.
-- Seu filho da puta, se eu ainda estou vivo é graças a você!
-- Sério?
-- É claro e você sabe disso. Não fosse a sua lucidez já teria dado um sumiço.
-- Obrigado, de bom grado. Faço aquilo que me é possível.
-- Sei disso. E te ouço. Aliás, de verdade, só te ouço nessa vida.
-- Sério? Puta merda, ganhei o dia. Ou melhor, a vida!
-- Deixa de ser tonto e querer confetes! Você sabe o quanto é importante pra mim.
-- Sei, quer dizer, achei que sabia. Mas dito assim, desse jeito, me deixa lisonjeado.
-- Então, sinta-se. De coração é muito bom conversar com você. Me faz bem.
-- Legal saber. Eu faço o que posso. Afinal, somos malucos desde o berço.
-- Eu sei. Lembra quando lá pelo início dos Anos 60 vimos a parede se abrir?
-- Como não, claro. Mas como dormíamos no quarto dos pais, num berço, acho que era no fim dos Anos 50.
-- Bem provável. Nos faltou um celular para comprovar.
-- Muito nos faltou nesses anos todos.
-- Certamente. Somos trogloditas ou visigodos.
-- Mas vencemos juntos e conversando num tanto de contos e cânticos.
-- Não tenho dúvidas. Não fosse você, já estaria em camisa de força.
-- Muita calma nessa hora. Não chega a tanto.
-- Tá bom. Se você não quer elogios, paro por aqui...
-- Para não. Se você parar, paramos ambos.
-- Tudo bem, estou sem sono mesmo. Voltar às biritas me dá insônia e paz.
-- Ainda bem, assim vivemos mais um pouco neste pouco passar pela vida.
-- É verdade. O tempo voa e a gente acha que vê. E ele voa...
-- Concordo. E se vamos dormir para a tal de eternidade, vale a pena dormir?
-- Claro que não! É perda de tempo!
-- Sabe que estou começando a gostar de você!
-- É sério? Que legal, pois você é o meu sinal.
-- Quer dizer que nos amamos de paixão?
-- Sem dúvidas. Habitamos o mesmo corpo e convivemos no mesmo cérebro.
-- Mas como dividimos os mesmos lugares sendo tão diferentes?
-- Aí você terá de perguntar para quem nos fez ser o que somos.
-- Você viu que mudou o som?
-- Vi. Saiu Caetano Veloso e Ivan Sacerdote e entrou a playlist nossa.
-- Nossa ou minha?
-- Sei lá. Somos dois e um só.
-- Bom saber disso. E aí, vamos viajar para Caraíva ou não?
-- Te digo quando a justiça trabalhista trabalhar.
-- Então eu acho que este ano não estaremos nas terras da Bahia a cheirar mar e ar.
-- Talvez sim, talvez não. Mas tudo na vida não é um se perguntar sem fim?
-- Com certeza! Na mesma presteza que rola agora um Secos e Molhados...
-- E aí, a saideira?
-- Pode ser. Apesar de não saber em quantas estamos.
-- E isso conta?
-- Amanhã você já saberá a resposta.
-- É foda, mas acho que já sei. Mas o que é uma cefaleia perto de um criar?
-- Nada. Nunca foi. Aliás, que se foda o amanhã. Pois ele pode vir ou não chegar.
-- Concordamos enfim?
-- Sempre concordamos. Você é que deixou de saber. Virou o certo a gerenciar o doidão da hora.
-- Não faça isso! Para de um ser ermitão e fugitivo do mundo. Não fosse eu a sua meretriz nunca teria um cafetão.
-- Tudo bem. Desculpe. Amigos?
-- Claro. Mesmo porque não tenho como sair de você...
-- Eu sei disso. Desde que fui parido.
-- E aí, vamos caminhar amanhã?
-- Hoje, você quer dizer...
-- Hoje. Agora que eu vi o relógio.
-- Iremos. Vou te levar para andar. Mas promete não viajar na maionese?
-- Aí você me fode. Sou ou não o teu ser “certinho”?
-- Cacete, então continue você e eu continuo eu.
-- Combinado. Seguiremos assim: 50% cada um.
-- Feito. Mas quero 51% na jogada e fim de papo.
-- Pode ser. Mas você lembra das amantes que largamos?
-- Quer saber: acordo desfeito. Vá para a puta que nos pariu! E o genitor também...
-- Como assim?
-- Se é para rever nossas vidas, sejamos bandoleiros.
-- Tudo bem. Melhor então dormirmos. Mesmo sabendo que pesadelos mil nos chegarão.
-- Você me protege?
-- Tentarei.
-- Então nos entreguemos a Morfeu. Ele talvez nos dê um pouco de paz e remissão.
-- Boa noite e bom dia!
-- Pra nós em nós...

Na viagem

Por Ronaldo Faria Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire ...