Por Edmilson Siqueira
Eu sei que elogiar Elis Regina é chover no molhado. Sei também que ontem, 19 de janeiro, marcou a trágica morte da estrela, em 1982. Mas hoje, aqui, além de manter minha convicção de que ela foi e ainda é a melhor cantora do Brasil, vou comentar sua incrível performance num programa de TV que durou três anos como campeão de audiência (e não foi na Globo) e vou encher de elogios um homem responsável por eternizar esses momentos de Elis em companhia de outros craques da MPB, que estariam inevitavelmente perdidos e só existiriam na lembrança de alguns por algum tempo. Eu, por exemplo, me lembrava de alguma coisa, mas mínimas perto do que foram os programas O Fino da Bossa exibidos pela TV Record nos anos de 1965, 66 e 67. Pois o responsável pela preservação desse tesouro da MPB foi o grande Zuza Homem de Mello, que morreu em outubro de 2020, e que fazia a engenharia do som (ele não gostava de ser chamado de sonoplasta) nos shows da emissora de maior audiência na década de 1960 do século passado.
Conheci Zuza quando trabalhava no Correio Popular e, entre outros afazeres, eu escrevia uma coluna
chamada Farol, na revista semanal do
jornal, a Metrópole. Ele lia minhas
colunas, onde música era assunto constante, pois tinha uma casa em Indaiatuba
onde passava fins de semana, e acho que comprava o Correio de domingo em alguma banca da cidade. Por conta da amizade
dele com Nelson Homem de Mello, então diretor Editorial do Correio (à época
ambos estavam tentando descobrir se eram parentes), Zuza deve ter falado sobre
mim e Nelson resolveu promover um almoço entre os três, o que me deixou todo
orgulhoso, pois conhecia Zuza como autor de alguns ótimos livros sobre música
e, principalmente, sobre os Festivais da Record, que eu havia comprado anos
antes.
Zuza, como engenheiro de som da Record, conta nos CDs detalhes das peripécias tecnológicas que
fazia para extrair dos parcos recursos à época o melhor som possível e
gravá-los por perceber que naquele palco estavam ocorrendo momentos
históricos.
Elis Regina, ainda jovem, (20 anos!), mas com o todo talento
que lhe era peculiar, comandava, junto com o brincalhão e ótimo cantor Jair
Rodrigues, o show que trazia a nata da MPB para São Paulo, onde ensaiavam à
tarde o que iria ser apresentado à noite. Orquestra completa e grupos de jazz e
bossa nova (Zimbo Trio, Os Cariocas, O Quarteto, Quinteto de Luiz Loy)
completavam o cenário. O auditório estava sempre cheio e não eram
"claques" e sim um público pagante que fazia fila para comprar
ingressos.
Nas centenas de noites em que o programa foi apresentado,
Zuza gravou quilômetros de fita de rolo. Depois tentou, por muitos anos,
transformá-las em disco. O pouco caso com música de qualidade que foi se
acentuando no Brasil no fim do século passado, fez com que, durante quase 30
anos, as fitas permanecessem estocadas, ainda bem que sob os cuidados do
próprio Zuza.
Prossegue Zuza: "Se de um lado o tempo provocou um
desgaste natural às fitas, de outro, a tecnologia digital e os recursos atuais
de recuperação permitiram reconstituir, na medida do possível, como na
arqueologia, o som daquelas segundas-feiras dos anos 60".
Zuza explica também muita coisa daqueles tempos de euforia musical, além de acrescentar um ótimo depoimento de Elis, dado a ele mesmo, em duas entrevistas feitas em 1978 e 1979 para o Programa do Zuza que ele mantinha na Rádio Jovem Pan. Os depoimentos de Elis são longos e ocupam os encartes dos três volumes. Enfim, os CDs são um documento precioso do que eu costumo chamar de raízes da moderna música popular brasileira. Ali estiveram desde nomes consagrados do samba como Ciro Monteiro, Dorival Caymmi e Baden Powell, como grandes intérpretes como Elza Soares, Lúcio Alves e Agostinho dos Santos. E jovens que estavam iniciando carreiras que viriam a se tornar históricas no Brasil, como Gilberto Gil, Wilson Simonal, Hermeto Paschoal, Edu Lobo e Jorge Ben (depois Benjor). Sem contar os instrumentistas todos de grupos como Zimbo Trio, Quinteto de Luiz Loy ou a grande violonista Rosinha de Valença.
Com esse time, e muitos outros bons nomes (Ataulfo Alves tem uma apresentação espetacular, Adoniran canta várias músicas com Elis e revela, inclusive uma, até então inédita, parceira com Vinícius de Moraes) à disposição, o resultado só podia arrancar aplausos em cena aberta em quase todos os números apresentados.Os três CDs, intitulados Elis
Regina no Fino da Bossa Ao Vivo, são o retrato de uma época em que a
televisão, em branco e preto, parca dos infinitos recursos de hoje, retratava,
pelo menos em alguns programas, o que havia de realmente melhor na música
brasileira. Durante três anos, o brasileiro amante da boa música tinha um
encontro semanal de duas horas com o fino do fino da MPB, comandado por uma
cantora que se firmava definitivamente no cenário musical brasileiro e por um
cantor, Jair Rodrigues (sim, o programa era mais ou menos dos dois), que com
sua alegria no palco, suas improvisações e suas ótimas interpretações,
acrescentava a dose exata de humor e qualidade em noites memoráveis. A grandes
momentos do Fino, Zuza acrescentou
duas apresentações de Elis com outros artistas em dois outros programas da Record: o Show em Simonal e o Corte
Rayol Show, também campeões de audiência à época.
Os três CDs ainda estão à venda em sites na internet, mas
quem quiser ouvi-los de graça, estão à disposição no YouTube, nos links abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=lFzPjf_NZ2M
https://www.youtube.com/watch?v=TBr2UaTBiO8
https://www.youtube.com/watch?v=NuOB8VyfyBE