terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Circo sem sol ao léu

 Por Ronaldo Faria

 


-- Senhoras e senhores, hoje tem grande show da mulher tatuada e imponderada, do homem pinguço, da sogra caridosa, do cunhado cordato sem pegar a última gelada da geladeira! Venham todos ver o mundo se reconhecer sem gênero obrigatório, poder ilusório, corruptos chafurdando na própria lama, tiros e sangue a romperem corpos e asfaltos em assaltos! Sem sobressaltos, olhem hoje e só hoje o quanto e tanto é possível sonhar e acreditar que amanhã será melhor. Que poderemos descobrir uma palavra consternada chamada amor, a sabermos que cada palavra será lavrada em terreno fértil que brotará sementes de árvores que sairão de um pé de feijão. E nele todos nós subiremos além das nuvens e nos fartaremos de esperanças plenas, plantios de poesias e músicas, letras e notas, acordes e pensamentos que não usarão mais a palavra lamento. Senhoras e senhores, todes, não percam este espetáculo que nenhum tabernáculo detalhou. Ele será único e sem direito a bis. Nenhum segundo antes, nenhum minuto depois. Mas celulares estão liberados e lembranças boas e livres estão igualmente liberadas. Sejam elas no nosso picadeiro, em Havana, nas cascatas de um Iguaçu ou vindas do vocabulário de um falastrão. Pouco importa. Para nós artistas dessa trupe mambembe, tanto faz! Estamos aqui, nesse ínterim entre nascer e morrer apenas para fazermos a cortina abrir e se fechar. Seja em qualquer lugar. A nós o importante não é vosso vil e raro quinhão de metal, plástico ou papel. É apenas que cada um de vós não tenha pena de nós. Nossa voz, nessa cena curta e mordaz, quer somente ser porta-voz de um planeta sem mares, sem terras, sem montanhas, sem artimanhas. Com manhãs límpidas, tardes brejeiras, noites reconfortantes. Todas como um instante. Afinal, a vida é apenas um instante a cobrir de páginas e dramas, comédias e tramas a significação de não existir significado. Portanto, venham assistir nosso epitáfio e nosso primeiro chorar ou grunhir assim que somos arrancados do ventre materno. Sejamos, nem que seja por um mero momento, eternos e ternos. Prometo desde já que se não gostarem daquilo que irão ver, devolveremos os ingressos com nossos maiores perdões por tão ínfimos préstimos. Mas, desde agora posso dizer, que nos apresentamos para públicos mais exigentes e púbicos. Estivemos no inferno e sob chamas e labaredas ganhamos do próprio Satanás a medalha de honra por serviços prestados. No céu, Deus decidiu acordar de seu sono eterno desde que o mundo criou e fez uma pausa para sentar na primeira fileira. No fim nos aplaudiu e pediu bis. Como dito antes, bis não fazemos. Fomos quase excomungados e deserdados do paraíso que nunca vem depois, mas ele também nos perdoou e desejou sorte eterna. Estivemos ainda no limbo e no purgatório. Mas nesses não vendemos um ingresso sequer. Quem lá está nem sabe o que fez enquanto habitou a Terra. Foi um fracasso cheio de sucesso para nossa trupe. Enfim, venham todos e todes! Prometemos mostrar e escancarar a vida de cada um, com palhaços, cães adestrados, elefantes e leões, trapezistas e dançarinas seminuas que irão lhes tirar da prostração que a vida nos dá. Temos até o homem atirado de um canhão. Mas este, como o espetáculo, não poderá repetir o feito. Seu féretro desde então está aberto a todos e todes que quiserem acompanhar. Mas, por fim, já que me alonguei quase tanto quanto o tempo de picadeiro, garanto a cada um de vós que comprar o ingresso com um sorriso verdadeiro ou um abraço apertado, que o mundo pessoal e íntimo logo depois estará revirado. Dessa forma, quem tiver vindo pela esquerda volte pela direita e aos outros vice e versa. Mas no fim, todavia e entretanto, por enquanto, todas as vias irão dar no mesmo lugar. Só que nosso desejo derradeiro, com todo o ensejo, é que não nos vaiem ou atirem objetos no palco de mentira. Nossos sentimentos, em tormentos, agradecem... E que assim seja vagamente real.
 
(Sob o som ainda de Arpi Alto)

domingo, 15 de dezembro de 2024

Willian Basie, o Conde do Jazz

 Por Edmilson Siqueira

Afastem o sofá porque vai dar vontade de dançar. E ao som de uma das melhores orquestras de jazz de todos os tempos: a Count Basie Orchestra. Esse disco em particular, nas suas dez faixas, promove todo um clima romântico, próprio dos anos 1950 em que ele foi gravado. E, para completar a faixa principal e que dá título ao disco é nada menos que "April in Paris". 

Count Basie é um dos maiores expoentes mundiais do jazz. Pianista, organista e band leader, sua orquestra é considerada uma máquina de swing. E, como salienta a crítica, "um dos marcos da discografia de Count Basie, 'April in Paris' é um daqueles raros álbuns que se impõe como um clássico quase instantâneo no panteão do jazz. 'April in Paris' representa a remontagem da orquestra Count Basie original que definiu o swing nas décadas de 1930 e 1940. A faixa-título passou a definir a elegância no jazz orquestral. Gravado em 1955 e 1956, o disco provou a capacidade de Count Basie de crescer através das mudanças do jazz moderno, mantendo a tradicional orquestra de jazz viva." Só por aí já da pra perceber que estamos à frente de um gigante do jazz. 
William Basie nasceu em Red Bank, New Jersey, em 1904. Era filho de Lillian and Harvey Lee Basie. Seu pai trabalhava como cocheiro e zelador de um juiz rico. Com a substituição dos cavalos e carruagens por veículos automotivos, seu pai se tornou jardineiro e "faz-tudo" de várias famílias ricas da região. Seus pais eram amantes da música. Enquanto Harvey tocava melofone, sua mãe tocava piano, tendo sido a primeira professora do filho. Lillian lavava roupas e vendia bolos para ajudar nas despesas da casa.
Basie foi para a escola, onde se tornou o melhor aluno. Em 1920, foi para o Harlem, o centro cultural do jazz, indo morar a menos de um quarteirão do "The Harlem Alhambra", local onde muitas celebridades do jazz e do blues se apresentaram, como Billie Holiday.
Seu primeiro emprego fixo foi em 1925 no Leroy's, como pianista. Em 1928, Basie estava em Tulsa, onde assistiu a um show de Walter Page e sua famosa banda, Oklahoma City Blue Devils, uma das primeiras big bands, com Jimmy Rushing nos vocais. Foi por volta dessa época que ele começou a ser chamado de "Count" (Conde) Basie, como referência à "realeza" do jazz.
Em 1935, Basie formou sua própria orquestra de jazz, a "Count Basie Orchestra". Em 1936, a banda se estabeleceu em Chicago para sua primeira gravação. Basie foi o líder do grupo por quase 50 anos, criando inovações como o uso de dois saxofonistas "split", enfatizando a seção de ritmo e tocando com uma grande banda, auxiliado por amplificadores para ampliar seu som.


O disco
A primeira faixa de destaca não só pela beleza da música, mas também pelo excelente arranjo. O encarte do CD que tenho (reprodução fiel do LP) tem um bom texto sobre as músicas, mas, infelizmente, não é assinado. O arranjo de "April in Paris" é de Willians Davis e diz o texto do encarte: "É um arranjo impressionante para uma canção que foi tocada e cantada de várias maneiras desde E.Y. (Yip) Harburg, com as palavras da melodia de Duke, tornando-se a característica mais memorável de um show da Broadway de 1932 chamado 'Walk A Little Faster'. No arranjo de Davi, há uma sequência que poderia muito bem ser um solo instrumental, exceto que nas mãos de Basie todo o conjunto começa a funcionar - o efeito sendo, para dizer o mínimo, altamente incomum; ouvindo-o pela primeira vez, presume-se que a banda está tocando uma melodia improvisada. Finalmente, há o final, que é uma brincadeira deliciosa, como todos os seguidores do jazz já sabem. Na noite em Birdland, [o clube onde se apresentava a banda] pareceu natural para Basie dar suas ordens verbalmente no final da música: 'Mais uma vez', ('One more time') ele ordenou. E depois, de novo: 'Mais uma - uma vez...' (One more - once'). Foi um sucesso.
As várias facetas da banda Basie, três vezes vencedora da Down Beat Annual Jazz Critics Poll, vêm à tona com vigor contagiante no restante do álbum. 
"Corner Pocket", a segunda faixa, é um arranjo de Ernie Wilkins, com os trompetes de Thad Jones e Joe Newman chegando fortes após uma pequena figura introdutória rápida do piano de Basie; o saxofone tenor de Frank Wess também faz um solo.
A terceira, "Did'nt You" (Frank Foster) mostra as palhetas com boa vantagem e há o trombone muito suave de Henry Coker.  Na quarta faixa, "Sweet Cakes" (Ernie Wilkins), também há o clima suave com um trabalho de piano de Basie. "Magic" (Frank Wess), a quinta faixa, é uma melodia complicada com o próprio Wess no saxofone tenor.
Na sexta-faixa,  "Shiny stockings" (Franl Foster) se revela a equipe toda em um clima particularmente forte de jazz enquanto outro arranjo de Foster, para a faixa seguinte, "What Am I Here For" (Duke Ellington), apresenta o trompete de Joe Newman e Frank Wess na flauta junto com o piano de Basie.
"Midgets" (Joe Anderson), a oitava música do disco, é aquele momento em que você, já meio cansado, deve parar para descansar, pois a música é rápida e vai exigir muito fôlego para acompanhá-la em passos pela sala.
Na nona faixa há uma mudança de clima, "Mambo Inn" (Bobby Woodlan e Graxce Sampson) envia a banda Basie para um ritmo latino-americano e um trabalho de conjunto alucinante. 
Na última faixa "Dinner With Friends", o trompete de Joe Newman e Frank Foster no sax tenor lidam com os solos saltitantes, num arranjo de Neal Hefti.
É este o repertório todo do excelente "April in Paris" com a "Count Basie Orchestra" que pode ser comprado nos bons sites do ramo e ser ouvido na íntegra no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=bTcmPGdDecw&list=PLlvikwomg9DCCuiio85VLJp1cpKOLmeeD).

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Cupido ao som de Arpi Alto

 Por Ronaldo Faria


A chuva desaba ininterrupta. Inodora, a vida não desperta para os cheiros que a areia molhada traz amiúde no meio de tanta correria dos esquecidos do guarda-chuva. Fernão e Isadora esperam sob a marquise que pinga em jorros o ônibus chegar. Ambos de celular à mão sabem pelo barulho que o mundo está se lavando num banho que as nuvens ou São Pedro resolveram lhe dar. O calor, intermitente, dá um tempo rápido. Sabe que voltará. É só esperar que o último pingo desça a ladeira em encontro a um bueiro que ainda não entupiu de folhas mortas e restos de vida. Um ou outro carro mais acelerado vez ou outra atira jatos curtos de água em direção ao casal que reparte o lugar sem ainda se avistar. Até que numa curva mais fechada, um insano acelerado e descerebrado os deixa encharcados.
-- Cretino! Precisava isso?
Irritado, molhado, Fernão xinga o motorista que certamente nem ouviu, em velocidade e janelas fechadas.
-- Tudo bem com você? – pergunta à moça que pingava igualmente.
-- Estou. Quer dizer, devo estar, tirando isso.
-- Como tem gente imbecil nesse mundo. Precisava esse escroto passar desse jeito? Vai tirar a mãe da zona ou o pai da forca?
-- É...
-- Desculpa o vocabulário. É que eu fico descompensado como algumas pessoas não têm o mínimo senso de civilidade e só pensam em si. Funcionam para o próprio umbigo.
-- Eu sei como você se sente. Penso o mesmo.
-- Então, menos mal. Meu nome é Fernão.
-- O meu é Isadora.
-- Tirando o acontecido, prazer...
-- Está esperando que ônibus?
-- Eu vou para Copacabana. Quer dizer, achei que ia beber um pouco. Agora, tem o risco de que eu pegue uma pneumonia. E você?
-- Também estava indo pra lá, encontrar uma amiga. Mas ela acabou de me avisar pelo celular que não poderá ir. A casa dela encheu d’água.
-- Coitada. Será que ela precisa de ajuda para puxar a água pra fora?
-- Acho que não. Ela está acostumada. Fechou o tempo já coloca tudo pro segundo andar. Na verdade, a parte de baixo só funciona mesmo no tempo da estiagem. No período das chuvas, fica quase clean.
-- É, a necessidade faz a decoração.
-- Com certeza.
-- Então, pra não perdermos a viagem de todo, quer ir comigo a um bar comigo? Eu garanto a conta, já que o convite é meu.
-- Aceito, mas vamos rachar. Já ouvi falar de direitos iguais?
-- Sim, claro. E sou adepto do não é não.
-- Espero mesmo. Sou faixa azul em capoeira.
-- E eu no máximo pratico halterocopismo. Fique tranquila.
Riram, dividiram um Uber que finalmente atendeu o chamado, já que o ônibus esperado estourara o motor com a enxurrada, e por horas, agora secas, conversaram, versejaram, trocaram ideias, soluções, aflições e números de celular. Prometeram se rever mais vezes e, quem sabe, um dia mudarem o status no Facebook. Despediram-se e partiram cada um para o seu lado, com sorrisos e beijo limitado ao cortês. No centro de controle de trânsito, porém, a discussão continuava sem solução. O carro que os molhara passou num sinal fechado próximo ao ponto de ônibus a quase 150 por hora. Até aí, tudo bem para um infrator. Mas, passado dias do Carnaval, o que fazia um Cupido ao volante? Uns juram que é fantasia que grudou no corpo do folião, já os outros dizem que é real demais para sê-lo. As apostas já estão feitas.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Astrud, perdoe, eles não sabem o que fazem

 Por Ronaldo Faria

 


-- Só pra dizer, puto da vida e pra caralho, Astrud Gilberto só foi “descoberta” no mundo virtual ao morrer aos 83 anos. Ou seja, somos (os perecíveis que um dia sonhamos em ser importantes) dignos de ser recordados ou ressignificados só após a morte.
-- Calma, Walter Wanderley. Será que é isso mesmo? Assim a esmo?
-- Claro que é. Vá ao Google e comprove a minha tese!
-- Nem fodendo. Não vou deixar de beber mais uma dose só pra vasculhar o mundo digital.
-- Não vai? Então não questione. Quer saber, que merda é isso: uma voz ser relegada ao esquecimento até deixar de ser. Aí todos os pecados são apagados e pagos, os filhos da pauta e da puta, com todo o respeito às putas e aos pauteiros, viram anjos de aureolas. Poupe-me! Por favor, ao menos isso.
-- Tudo bem, Walter Wanderley. Aceito a sua tese. Mas sempre não foi assim? O fim é que traz à tona a biografia de cada um?
-- Sei lá. Mas se o é, tudo não passa de um teatro sem plateia. O ser humano não é e nem faz parte de uma alcateia. É único, desde as digitais. Aqui, ainda tem o CPF. Logo, cada um colha depois de tudo aquilo que plantou. Foi um bosta morfético, seja igual. Um escroto que só pensou em si e fodeu o resto, seja jogado ao lixo da história. Mas lembrar da Astrud só depois da morte? Aí já é demais.
-- Concordo. É sórdido, triste, inglório. Mas a glória não é dada a poucos?
-- Com certeza. Ao que resta fica só uma fresta que será fechada quando último lembrante sobreviver ao tempo discrepante. Mas, como dizia o poeta, para isso fomos criados...
No redor ressoa Stan Getz. Surge a voz do João. Astrud permanece íntegra e real. Nalgum lugar, neste quase fim de mês que irá durar um dia a mais que o normal (até hoje não entendo esse mês plural), outro alguém irá entender este fim. Pra nós tudo, que tenha dó de nós o Senhor do Bonfim. Saravá!

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Na espera da esfera

 Por Ronaldo Faria

O pseudo-poeta espera a interlocução com a próxima esfera musical e etérea para tentar escrever. A ver, algo mais ou mais nenhum. O escriba que crê poetizar fica no limite entre a crença e a desavença que há no criar e findar. E na brincadeira de ser, seremos só limiar.

Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes: um registro histórico

Por Edmilson Siqueira


Era dezembro de 1968. Vinicius de Moraes, talvez procurando ares mais respiráveis, viajou para Roma, onde iria passar o Natal. Porém, no caminho resolveu dar uma passada em Lisboa, onde os ares também não eram muito bons, para visitar sua amiga Amália Rodrigues. E, na casa dela, combinaram de gravar um disco, ali mesmo, meio improvisado, entre amigos, com as canções de Amália, a poesia de Vinicius e o que mais viesse dos amigos convidados. O disco desse encontro só foi editado em 1970 e, claro, foi proibido pela censura da ditadura portuguesa. Salazar, debilitado, já não governava, embora não soubesse disso. Fora substituído por Marcelo Caetano, e a ditadura continuou. 
No encontro na casa de Amália estiveram presentes também outros poetas, como Ary dos Santos e Natália Correia. O encontro durou horas, mas as gravações foram editadas para caberem numa só hora, o que resultou num LP duplo. O resultado parece amador a princípio, mas os fados e as músicas brasileiras são de alta qualidade e as poesias, principalmente de Vinicius, são ótimas, tanto que há quem considere o disco como uma relíquia da música e poesia em língua portuguesa. 
A proibição fez o disco em vinil vender pouco e se tornar raro. O CD que tenho é uma cópia do LP que nunca tive. 
São 19 faixas, entremeadas de música e poesia e de um narrador (Ary dos Santos) que se porta como um dos convidados, contando para o ouvinte, em alguns momentos, o que está para acontecer. O clima é de descontração e alegria, embora o ambiente político em Portugal - e no Brasil, afinal 1968 foi o ano da edição do AI-5 que fechou de vez a ditadura por aqui - fosse dos mais pesados.  
Ary dos Santos inicia o disco como se estivesse subindo as escadas da casa de Amália para chegar, um pouco atrasado, à sala ou salão onde estavam todos reunidos. Informa a data (19 de dezembro de 1968 - 6 dias depois do AI-5) e diz que a festa é de despedida de Vinicius, que partiria no dia seguinte para Roma.  



A primeira poesia é justamente "Retrato de Amália", de Ary dos Santos, declamada pelo próprio. Em seguida, Natália Correia declama seu belo poema "Defesa do Poeta". 
A parte musical do disco começa na terceira faixa, com Amália cantando o fado "Havemos de ir a Viena", de Pedro da Cunha e Alain Robert, acompanhada pelos músicos Fontes Rocha, na guitarra (portuguesa, claro) e Pedro Leal na viola. A qualidade dos dois músicos chama a atenção durante todo o disco.  
Após cantar o fado, Amália pede a Vinicius que declame o "Poema de Orfeu". Vinicius corrige o nome ("você quer o Monólogo de Orfeu, né?"), e declama o poema, com belo acompanhamento musical de Fonte Rocha e Pontes Leal. 
Ary dos Santos nos informa que agora Vinicius, depois de declamar, vai cantar. E canta, com nítida emoção, "Poema dos Olhos da Amada", de sua autoria com Paulo Soledade.  
Na faixa seguinte, também anunciada por Ary, é Amália quem canta "Abandono", de David Mourão-Ferreira e Alain Oulman. Um dos momentos altos da interpretação da grande cantora portuguesa.  
A poeta Natália Correia aparece a seguir declamando seu poema "Formosinha de Elvas".  
O momento quase humorístico do encontro fica a cargo de Ary dos Santos, com "O Objeto", um curioso poema que protesta contra o fato das coisas não receberem o nome correto de cada uma delas. 



Um pequeno coro se forma a seguir, chamando Vinicius e pedindo que ele declame seu famoso poema "O Dia da Criação", que acabou ficando conhecido mais pelo refrão "Porque hoje é sábado". Refrão que todos os presentes fazem questão de repetir junto com o poeta.  
Davi Mourão-Ferreira declama a seguir "Fado para a Lua de Lisboa", um pungente poema sobre a noite portuguesa. 
Amália volta na faixa seguinte, cantando "Gaivota" de Alexandre O'Neill e Alain Oulman. Mais uma vez a qualidade da interpretação se sobressai, tanto de Amália quanto dos dois músicos na guitarra portuguesa e na viola. 
A faixa seguinte, "Saudades do Brasil em Portugal" merece uma explicação de Vinicius. Ele diz que foi uma ousadia escrever um fado para Amália, tal como a marcha-rancho que ele fez em "parceria" com J. S. Bach. E ele canta emocionado seu poema com a música de Homem Cristo. Em seguida, na faixa seguinte, é Amália quem empresta sua interpretação à mesma música, que, claro, ficou muito melhor que Vinicius. 
Vinicius volta, desta vez para cantar um samba, não sem antes contar a história de como foram feitos os versos de "Pra que Chorar", na música de Baden Powell, de madrugada, numa clínica de repouso no Rio de Janeiro. 
Amália volta pela última vez para cantar "Fado Português", de José Régio e Alain Oulman. Mais uma interpretação digna da cantante lusitana. 
O disco termina com dois poemas. O primeiro é de Natália Correia, um de seus mais famosos, "Autogênese", que ela declama com bastante emoção.  
Por fim, encerrando o disco, mas provavelmente não a noite, que se estendeu até o amanhecer, Vinicius é solicitado a dizer as impressões que leva de Portugal. E o poeta discorre sobre o povo português "tão próximo do brasileiro" deixando nas entrelinhas o amargor que sente pelas ditaduras vigentes nos dois países. 
O "narrador" Ary dos Santos, após a fala de Vinicius, diz que aquele é o resumo de um encontro muito maior, mas foi o que coube em dois discos. Dois discos históricos que ainda estão à venda por aí, tanto em CD como em LP. E podem ser ouvidos na íntegra no YouTube (https://bit.ly/38klS1Q) e no Spotify (https://spoti.fi/3ioB3M3).

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Tom e Maucha

 Por Ronaldo Faria


Está difícil escrever a data. Aliás, desde o primeiro texto professado. Mas o que é uma data? Um ponto perdido na eternidade que há até a primeira terceira guerra mundial existir? Ou talvez a falha no exaustor que chupa o gás mortal que corre nos corredores sem fim. Senão, uma batida a mais que o coração deixou de dar. A irrelevante e arfante, inaudita e aflita canção não mais cantada? Nunca saberemos no saber-se-á.
No Leblon a noite cai doidivanas e infante. Entre morros, mares e areais. Ela sabe, sacana que é, que será envolvida em subterfúgios. Lamúrias, paixões tresloucadas, amores infaustos, beijos de línguas entrelaçadas, afagos no minimalismo artístico e profanado pelo fim que logo chegará no derradeiro gozo exposto no lençol. A noite agora denota em notas na voz da Maucha Adnet os sons que Tom Jobim sorveu de si mesmo e lançou ao mundo para ser devorado como o ardor de viver. E ser. O é.
-- Se eu chegar amanhã bebum até que é bom. Não sinto a agulha na veia penetrar e estarei sendo eu, verdadeiro e voraz.
Clarêncio, na clarividência que o nome dá, antecipa a picada e espera, à espreita da finitude, que o exame lhe dê mais alguns poucos anos de vida.
-- Gostaria de viver um tanto mais. Não pelos aniversários, já que isso não me apraz. Só pelos tantos dezenas e mil litros ainda a tomar e letras a escrever e professar.
Cordeiro, o amigo que cada vez parece esquecer o limiar e o lumiar, concorda enquanto puxa a corda do violão desafinado para tentar lembrar de ser. Na mesa de bar ficou o tempo ausente de fretes e mudanças, pajelanças e danças. Mas, afinal, ao final de tudo, no turbilhão de lembranças, ficam somente as sementes que brotaram bem além do além-mar.     
-- Logo mais chegarão as águas de março a decretar o fim do Verão.
-- E precisa? Quer matar o povão? Tem coisa mais fácil: coloca um capitão na marcha estradeira.
Fulgêncio, fugitivo do passado transgressor e opressor que o passado deixou nas graças de Deus, prefere não relembrar tempos atrás. Que as flores que ainda sobrevivem deixem em si a paz. Para todas as eternidades.
Aos poucos, no espocar de fogos que nunca foram acesos, os dois se juntam em pensamento. Há lamento? Não. Juramentos? Não. Tormentos equânimes e destinos atirados num catavento? Não. Talvez um silêncio deletério, mistério de loucuras transmutadas e caladas. Senão uma única palavra na mais certa lavra de ser: não.
No Corcovado, côncavo e eterno, o esquecer do sol sobrevoa nas nuvens plúmbeas e voláteis. Logo tudo pode virar tempestade sem saudade. Maldade? Esta fica para o fórceps que traz à vida o universo do verso loquaz e choro de orelhão a saudar a vida que se renova mordaz. Aqui ou na insana realidade que tudo se torna depois, se entorna a fatalidade fetal de um ou outro dedilhar. Clamar o quê? A chuva prevista não cai... até você voltar.
Terminemos, pois. Façamo-nos então o sol de Ipanema. Sem dramas, sem saudades da trema, sem sargaço que a poluição mata antes de vingar. A garota? Essa, às centenas, desfila com o corpo sarado, a bunda arrebitada, os seios siliconados, a boca esculpida com injeções mil. Na rua logo perto do mar, na esquina Vinicius e Tom, um sonhador prescreve a si mesmo uma dose de reviver...

sábado, 7 de dezembro de 2024

Entre dois iguais e Caetano

 Por Ronaldo Faria


-- Você lembra mesmo do passado?
-- Claro que lembro.
-- E isso ficou gravado tanto tempo na sua memória?
-- Ficou. Parte como algo a se esquecer e outra parte a aquiescer, como se estivesse pra sempre nas cenas de amor e paixão entre dois iguais.
-- Como assim?
-- Como algo que era um mundo à parte, apartado do medo e da dor da realidade. Algo de infância renascida e que guarda raízes indeléveis até hoje.
-- Sei. Coisa de mansidão estradeira, feita em dias de viagem e paragens de secura, mas com todas as cores possíveis. Saudade inefável, enfim.
-- É, quase. Um fim que nunca acabou. Se perdeu, se desfez, se reencontrou em sorriso de espera inglória após a morte e o desejo de revisitar um passado carcomido e enterrado.
-- Entendi. Triste, não?
-- Não sei. Como o corpo que ficou largado nos fundos da cova e nunca mais será revisitado, tal reencontro de lembranças foi sepultado.
A conversa, convexa e incongruente, chafurdada em recordações primatas e primárias, se esvai sem razão de aglutinar. Na distância de longas léguas, milhares de quilômetros e mares sem conta, a voz de história histriônica, lacônica, tragicômica. Em portais, móveis que se fecham e se abrem, portas com ferrolhos e ferrugem, sentenças proscritas e escritas, dicotômicas, atônitas, atômicas se explodissem além da memória. Senão, apenas cifrão esquecido nas contas da vida ou cifras da canção nunca escrita, na desdita inaudita que só o luar que iluminou gente e animais sentenciou em si.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Piramboca da parafuseta e Renato Braz

 Por Ronaldo Faria


Picotar na MP3, pisotear magias e mágoas inalteradas nas águas que hoje não se fazem ressaca mas amanhã trarão ondas óbvias de pouca mansidão. Mas teremos de sair para beber o café do Seu Luiz. Resistamos! Depois, nada teremos. Terrenos, fugitivos da vida e ressacados, andaremos abruptos e tolos a percorrer caminhos que a filha canina não mais percorrerá. Assim, Silmar, longe do mar que lhe deu o nome, vira pronome naquilo que isso tiver de ser. A ver e vociferar a mansidão que demove vozes e versos da sangria da vida deletéria. Estagnado em si, lúgubre e infausto, famélico e mordaz, sobrevive no sussurro estendido ao sol que queima sem pensar que seus raios matam e dão vida fugaz. E é somente Silmar, rima inócua no vazio que se faz levar.
Logo ali, perto do sono esperto que perpetua a imaginação profícua, alguém pensa que o amor sobrevive e resiste solerte e inerte no coração que se prepara para parar. Na aurora que seria altaneira anos atrás, um pássaro voa nos raros raios que sobremaneira se interpõem. No acordar de acordes surdos surgem canções. Imensidões rarefeitas e afeitas ao tardar de cada um. Na viola que viola o âmago do coração que surge em unção, a gratidão de ao menos saber soletrar um abecedário tão pouco proletário senão. Na noite, noir, a torre infiel a vazar no céu surge anêmica e cruel a fugir no trenó que foi roubado de Papai Noel. Daqui, com Silmar a ultimar final feliz, o infausto brinquedo de cada dança como fosse criança à espera de um final, enfim.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Adeus samba, até 2025

 Por Ronaldo Faria

 


Na avenida o samba já nem se lembra que desfilou e fez a alegria da passista e do compositor. Para ela vieram os desejos carnais de tantos carnavais, para ele a cantoria de milhares de vozes vorazes em si como vestais a cantarem os versos desiguais.
-- Jerônimo, homônimo heteronômico fugaz, vale a pena achar que os carnavais do passado foram a verdadeira delicadeza?
-- Sei lá... Ou melhor, sei. Um deles ao menos foi. Mas só um, que permanece vivo no eterno relembrar.
 
Fevereiro de algum ano do Século XX, vinte para quem faltou nas aulas de números romanos. Jerônimo, a amada e outros interlocutores anônimos para a prosa brincavam no salão. Antes, ambos estavam na avenida. Logo mais estarão na cama, a brincar de fim de folia, a fazerem a cama correr os poucos metros quadrados e enquadrados no depois e após apócrifo do senão. Tudo começava na parede e parava na porta, como querendo sair sala a fora, abrir um portão, descer escadaria e se largar na rua que descia para encontrar a avenida.
-- Foi bom esse Carnaval?
-- Como assim? Quer que o paraíso se perpetue?
Claro que Camila, personagem essencial para se entender a história, queria. Mas havia realidade e passado, a fatalidade tardia, tríade de rebentos que já não chorava pelos peitos mas prendia desejos e carências infindos, pendia entre o desejo de ser feliz e a obrigação de fazer outrem feliz.
-- Vamos simplesmente viver?
No estupor do momento o silêncio e o lamento da vida se fazem notícia de jornal na voz de Camila. No final de qualquer coisa,,metros e metros quadrados, guardados na lembrança que não se esvai.
-- Está lembrando o que, Jerônimo?
-- Nem eu sei. Talvez fosse melhor esquecer de vez. Mas como seguir adiante se não houver algo a lembrar, a nos mostrar que a tal felicidade existe de fato, mesmo sem ser unanimidade? E se por um momento fátuo, inócuo, fizemos parte dessa minoria? Se pudemos de uma forma efêmera, macho e fêmea, acharmos que fomos felizes?
-- Talvez você tenha razão. Mas de que vale a razão de antemão? Afinal, mil e tantas variantes existem entre um início, o meio desatinado e o pseudo fim?
-- É, afinal o que é a razão? Mero e destrambelhado tesão? Um slow motion do passado arfado e calado em si? Sorrisos e afagos que dançaram de forró a fado? Fatalidade de duas vidas cruzadas em teclas e teclados, separadas na esquina fatídica do não...
Na décima e algo se saberá de que os amigos exaustos de quererem encontrar respostas para a vida se entregam à saideira. Nessa hora a certeza do fim derreou, o momento já não há, o tormento do amanhã vira deletéria imprecisão. Das tantas caixas de um acústico sonoro surge a noite enfim. Logo mais o caminhão de lixo surgirá para carregar recicláveis e emoções do passado.
 
(Com Celso Fonseca a rolar)

domingo, 1 de dezembro de 2024

George Benson, no tempo do jazz

Por Edmilson Siqueira


A única informação que posso dar sobre o CD que motiva esse artigo é que a guitarra nele tocada é de George Benson. Quando foi gravado e quais músicos dele participam é um mistério. Não há, na internet, qualquer referência a esses detalhes, apenas o CD à venda, com as quatro músicas nele contidas. Descobri apenas que o ano de lançamento do CD é 1990 e que ele foi produzido na França. E se a data estiver certa, é de quando Benson tinha 42 anos mais ou menos e ainda se dedicava exclusivamente ao jazz.
Mas isso não quer dizer que seja um trabalho menor. O disco "Invitation" é um ótimo exemplo da grande qualidade do ex-guitarrista de jazz George Benson, e do grupo que o acompanha (piano, bateria e contrabaixo). Eles dão totalmente conta do recado.
O CD foi gravado ao vivo, pelo que demonstram aplausos de uma pequena plateia tanto no meio da música, depois de alguns solos mais elaborados, como ao final de cada apresentação.
O disco todo tem pouco mais de 42 minutos, divididos em apenas quatro músicas. Ou seja, além da melodia normal (ou quase normal) de cada música, os quatro esbanjaram nos improvidos. O que, aliás, torna o trabalho todo muito mais atraente. É bom ver grandes músicos dedicando seu talento aos improvisos típicos do jazz.


 
George Benson está com 81 anos. Nasceu em Pittsburgh, na Pensilvânia, numa família de refinados músicos amadores. Aos seis anos já tinha começado a se apresentar ao público. Um ano depois, sua mãe se casou com um eletricista que também tocava guitarra de jazz amplificada. O jovem George implorou ao padrasto que lhe ensinasse a tocar. Infelizmente, suas mãos eram pequenas demais para alcançar o instrumento em toda a sua extensão e ele acabou ganhando um ukulele (pequeno instrumento havaiano de quatro cordas). Mesmo assim, alguns anos mais tarde, Benson ganhou a sua primeira guitarra. Em 1953 - ainda com 10 - ele gravou o single "She Makes Me Mad" nos estúdios da RCA.
Durante um bom tempo, foi um grande guitarrista de jazz, mas depois enveredou pelo pop, onde foi o autor de inúmeros sucessos. Dessa fase, assisti a um show dele em Barcelona, onde ele dividiu o palco com All Jareau. O show, excelente por sinal, saiu em disco e até ganhou prêmios.
Mas o misterioso CD "Invitation" que tenho, é importado e, pesquisando nas redes, descobri que ele tem outros nomes, como "Oleo" (Sonny Rollins), que é a música que abre o disco. Seu ritmo alucinante se transforma num desafio para uma apresentação ao vivo. Os longos solos de baixo e bateria são destaques para a apresentação de 10 minutos e 18 segundos, entremeada de aplausos.
A seguir vem "Lil's Darling" (H.Hefti), um clássico instrumental tocado com muita competência. Trata-se um blues onde tanto Benson quanto seus músicos se divertem bastante tocando durante 10 minutos e 57 segundos.



A terceira faixa é outro clássico: "All The Things You Are" (O.Hammersmith e J. Kern). Quase tão rápida quanto "Oleo", é nova oportunidade dos músicos mostrarem seus talentos. É a faixa mais curta do disco, com seus 8 minutos e 30 segundos.
Encerrando a apresentação, pelo menos no CD, a última faixa é a que dá título ao disco, "Invitation" (B.Kaper e P. Webster). É a mais longa do disco com seus 12 minutos e 19 segundos. É também um blues mais soturno que encerra magnificamente o conjunto sonoro aqui apresentado.
Muita coisa de George Benson pode ser encontrada no YouTube. Mas não encontrei esse disco específico. Se alguém quiser comprar, ele está à venda em https://www.discogs.com/release/6650564-George-Benson-Invitation?srsltid=AfmBOopw_u8YDYWnfCLu94ZiOr5vyGeiqkddlllOgj210we3rg7Ny1z_

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Manchetando com Celso Fonseca

Por Ronaldo Faria


Tragicomédia. Efeméride banal. Uniforme disforme e colegial. Coisa imaterial como se diria hoje às manchetes vespertinas de jornal. “Parem as máquinas! A verdade voltou!” Ou será que ela nunca chegou?
José está perdido no infindo infinito de onde ninguém chega ou sai. Acabara de levar uma dedada que lhe disse que um câncer talvez inexista. Felicidade? Só os próximos exames irão confirmar. Mas a praia, cheia de areia e ondas, brisas e coxas e peitos ao vento, está logo ali. E o sol brilha amarelo e eterno no céu. Quando a Terra acabar, por conta e documento sem alento dos homens, ele ainda estará ali a rir da imbecilidade de seres ditos humanos. Tivesse sido os outros animais, irracionais, ou a própria natureza a comandarem a peça teatral, tudo estaria igual como a milênios.
-- E aí, José, vai a saideira?
Derradeira? Claro que não! Que venham muitas mais. Ele mal havia começado sua estrada estradeira. Sua ida e loucura mal começaram a trilhar letras e sílabas, frases e parágrafos, sentimentos ágrafos que não terminam nunca. Agora, solitário, lobo e cordeiro de si mesmo, o importante era crer que a vida pode ainda resistir um tempo, mesmo a esmo.
-- Viu o resultado do Botafogo ontem? Tenho dó de quem torce para um passado distante, tão equidistante como a Terra de Plutão.
-- É, botafoguense só se fode. Ou seja, é um brasileiro padrão.
No copo a cerveja teima em esquentar. Na cabeça as lembranças entram em torpor.
-- Se Garrincha estivesse vivo ele talvez chorasse de dor de ver o que restou...
-- Talvez. Mas quem não tem um choro guardado por alguma merda que no passado fez? Soubéssemos do futuro estaríamos assim no presente?
-- Manoel, traz mais umas tantas porque o Zé aloprou de vez!
O português obedece feliz e mete o dedo na comanda. Ao redor, em derredor e dor, o vento de ventilador de teto não lembra mais dos afetos de meio afeto que fez nas mesas abaixo.
 
II
 
-- Cléber, você por aqui?
-- Com certeza. De novo, renovado.
-- Beleza, mano. Então vamos para as entradeiras.
-- Claro. Que desçam e cheguem cada vez mais...
Cléber, carioca da gema, da Zona Norte, onde a cidade se formou e depois migrou para o mar, acreditava que viver o momento, fosse ele em alegria ou tormento na mesa de bar, já valia ter visto as horas parcas correrem em 24 num insano respirar. Na praia, aprisionada nos corpos morenos e efêmeros, libidinosos e fogosos, tantos uns e tantas outras viajavam no mundo etéreo que o verão dá. Na areia quente e requentada na paródia que é viver, a viagem na derrocada letal.
-- E aí, Cléber, como está Marilena? Gostosa e peituda como sempre?
-- Não sei mais. Aliás, da última vez que a vi estava meio caída. Como dizia a propaganda: o tempo passa, o tempo voa.
-- Verdade. E é cruel. Chega rápido. E corrói tudo sem pedir permissão. De repente, estamos nós a desatarmos nós que nenhum de nós achou que tinha feito.
-- É. E são nós de marinheiro, que nem que já foi escoteiro sabe desatar.
No céu, devagar surge o luar. A brisa muda de odor, o mundo antevê outra cor. A luz que se vê é do Arpoador.
-- Mas tudo vale, não é?
-- Se a alma não for pequena, sim. Como disse o poeta. Mas e se não houver alma? Pra quê fingir que há um depois?
-- Moços, querem um amendoim? – a voz do garoto quase roto, retinto, soa como destino que pede para toda conversa desconversar.
-- Não, obrigado. Mas boa sorte pra você.
-- Porra, Gilberto, deixa de ser mão-de-vaca e dá cinco contos pro moleque!
-- Tá bom, deixa um aí!
-- Obrigado, doutor. Boa biritagem pra vocês! – responde o menino que sai a correr de mesa em mesa: “Quer um amendoim?”
Na rua, rotunda e moribunda, os carros passam viajandeiros. Os ônibus, atolados de pessoas cansadas e arfadas depois de mais um dia de trabalho árduo, parecem apenas brotar das esquinas em sinas sinuosas. O mundo é foda, parceiro.
-- Que bom que o mundo ainda existe, não é?
-- Para alguns, para alguns...
 
III
 
-- E se eu for morto por um louco e insano que não sabe sequer o que é ser lânguido?
-- E o que é ser lânguido?
(Lânguido - adjetivo
1. que se encontra em estado de abatimento, de grande fraqueza física e psicológica; sem forças, sem energia.
2. característico do que é doente; mórbido, doentio.)
-- É verdade, vai ser foda!
No meio desse papo louco de botequim, mais um dia estranho...

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Papo de dois viventes do século há muito passado

 Por Ronaldo Faria


-- Quantas já foram?
-- Sei lá, Raimundo. Você é muito sistemático. Isso importa? Está preocupado com a conta? A gente vai rachar meio a meio. Deixa de estrupício.
-- Não é isso. É que a Aurora está em casa me esperando.
-- Ô meleca, ela te espera faz mais de 50 anos. Vai ser justamente hoje que ela irá resmungar? Ela já está dormindo faz tempo...
-- Sei não. Será que a novela das seis já acabou?
-- Raimundo, ela acompanhava as novelas da Rádio Nacional. Acha que ainda está acordada?
-- Seu garçom, por favor, que horas são?
-- São 19h20, Seu Raimundo...
-- Está tarde, Zequinha. Falei que voltava às seis e meia.
-- Mas pelo amor de Deus, o medo é da canja esfriar? Pois saiba que ela já esfriou. As pelancas da galinha já dormem sobre o caldo.
-- Como você é mau, Zequinha. Você sabe que eu não gosto de canja fria...
-- Se é por causa disso, ô colega da caderneta, manda duas coxinhas quentes pra mesa!
-- Coxinha? Sabe que eu não posso com fritura desde que operei a vesícula há 40 anos atrás.
-- Isso é coisa da sua cabeça. Não esquenta. Vamos comer as coxinhas e conversar sobre a Copa de 58. Lembra que ouvimos juntos a final na casa de papai? Tinha um monte de gente colada na transmissão. Quando acabou era o tal de festejar e gritar. Vou te dizer, naquele dia, papai estava tão bêbado que aproveitei e tomei um gole da pinga que ele nem lembrava que estava a bebericar.
-- É, foi emocionante. Acho que veio a redenção da nação. Como disse o Nelson Rodrigues, perdemos a vergonha de sermos perdedores, vira-latas, ou algo assim.
-- Ah, já vivemos muito, não? Claro que não. Só por termos quase 90 vivemos demais? Eu posso até usar bengala, ser meio banguela, sentir dores no corpo quase todo, mas ainda venho aqui no boteco do neto do Seu Irineu tomar minhas cangibrinas.
-- Você gosta de parecer um garotão, como dizem esses de agora. Mas desde que a Marieta morreu não tem prumo na vida.
-- Prumo nada. Foi a segunda chance da liberdade. Quando eu vou pra casa eu não vou preocupado com a pelanca da galinha. Vou pra assistir minha tevê, comer o que tiver e dormir.
 -- Por isso que seus filhos e netos não te procuram. Você se acha a derradeira bolacha de sal do pacote.
 -- Raimundo, você é um imbecil carimbado e lambido de selo. O fato da pelancuda da Aurora ainda babar na fronha te faz melhor? Faça-me o favor...
-- Eu pelo menos chego em casa e tem alguém.
-- Claro, isso se o aparelho de audição dela não estiver descarregado!
Preocupado com o tom da conversa, Kleiton, o garçom, toma as rédeas da história.
-- Senhores, muita calma nessa hora! Vai a terceira cerveja ou já fecho a conta?
-- Terceira? Zequinha, você quer ficar bêbado de verdade? Traz a conta!
-- Raimundo, com todo o respeito, vá se foder! Não saio daqui sem a saideira! Traz a terceira!
Discute de lá, pragueja de cá, e chegam à conclusão que uma latinha irá satisfazer o desejo ensandecido de beber.
-- Então está bem, vou trazer a latinha e a conta.
A voz de Kleiton vira a sentença final.
-- Tem o dinheiro pra pagar?
-- Claro, minha aposentadoria é pouca mas dá pra esse arroubo.
-- Consegue fazer a feira se pagar?
-- Com certeza! Não sou mendigo.
-- Então está tudo certo. Até a próxima semana?
-- Claro. Apesar de você ser um chato, virei.
O destino, porém, bradou diferente. Aurora, asmática, naquela semana, como dizem hoje, empacotou. Raimundo, viúvo novo, se fechou em casa a pensar nas canjas que não mais existirão e no boa noite dito com a voz da amada que não ouvirá. Zequinha, que há muito já sabia o que era esse destino moribundo, compareceu religiosamente ao bar e bebeu até não querer mais.
-- Já são três Brahmas? Fecha, por favor. Ainda quero viver mais uns dois anos.
No mundo próximo uma chuva fina definhava na esperança. A vida estava quase uma lambança.
 
(Ao som de Pixinguinha e saber se os diálogos estão corretos ou não)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

O melhor de Nina Simone

Por Edmilson Siqueira


Nesses tempos de grandes discussões políticas, onde o racismo é um dos temas mais frequentes, estou ouvindo aqui uma ativista que não só sofreu na pele a discriminação por ser negra, como lutou contra o preconceito em praticamente toda sua carreira.
Estou falando de Nina Simone (1933-2003) e, para ter um bom conhecimento sobre sua carreira, nada melhor que uma coletânea com 14 gravações de vários gêneros.
Sim, porque embora seu nome seja relacionado mais ao jazz e ao soul, Nina passeou, como sua voz marcante, pelo folk, R&B, gospel e pop, tendo iniciado seus conhecimentos musicais no piano clássico.
Eunice Kathleen Waymon era seu nome de batismo. O nome artístico foi adotado aos 20 anos, para que pudesse cantar blues escondida de seus pais, em bares de Nova York, Filadélfia e Atlantic City. Eles não aceitavam sua opção de ser cantora, pois ela estudava para se tornar uma pianista clássica. "Nina" foi tirado de uma corruptela de "Niña", apelido que recebera de um antigo namorado de língua espanhola, enquanto "Simone" foi uma homenagem à atriz francesa da qual era fã, Simone Signoret.
Quando jovem foi impedida, por ser negra, de ingressar no Instituto de Música Curtis na Filadélfia, apesar de ter cursado piano clássico no famoso Juilliard School, em Nova York. A partir daí, se destacou por posicionar-se contra o racismo na crescente onda que tomava os Estados Unidos na década de 1960. E seu envolvimento foi tão grande que foi escolhida para cantar no enterro de Martin Luther King.
A coletânea que estou ouvindo (O Melhor de Nina Simone) começa com um clássico pop, "Don't Let Me Be Misunderstood" (Benjamin Marcus Caldwell), onde suas qualidades vocais se aliam a uma sincera interpretação, não deixando qualquer dúvida da qualidade de tudo que virá pela frente.
A segunda faixa já é um jazz dos melhores: "Do Nothin' Till You Hear From Me" (Ellington e Mills) com uma interpretação meio funkeada, ajudada pelos metais. Um show.
A faixa seguinte entra num campo onde Nina era craque: o jazz lento, que exige esforços vocais acima do normal e que só grandes cantoras conseguem. Trata-se de "Solitude" (De Lange, Ellington e Mills). 
O jazz continua em alta na quarta faixa com o clássico "I Love You Porgy" (George Gershwin, Ira Gershwin e Heyward), do musical "Porgy and Bess" que ganhou com Nina uma de suas mais marcantes interpretações.
"Love Me Or Leave Me" (Donaldson e Khan) é a quinta faixa, também no estilo jazzístico, mas bem mais rápida e com um ótimo piano. Nina passeia pela música com a natural desenvoltura. 
Um blues marcante aparece na próxima faixa e de ninguém menos que Bob Dylan - "I Shall Be Released"). O estilo pop segue em toda música, com um acompanhamento firme de uma guitarra e de teclados. Ótima faixa também.
"Work Song" (Adderley Brown Jr) é a sétima faixa. Mais um pop agitado que cai muito bem na voz de Nina. 



A oitava faixa já nos remete à canção francesa (Nina viveu na França, onde morreu, aliás). E é um clássico: "Ne Me Quitte Pas" (Jacques Brell). A interpretação clara e meio seca de Nina retrata fielmente o sentido que o compositor quis dar ao apelo à amada para que não o deixe. 
"Gimme" (Stroud) já mostra uma Nina emprestando sua voz marcante para o mais puro rock and roll. Uma faixa que dá vontade de afastar os móveis e sair dançando ao melhor estilo dos anos 1960. 
A décima-faixa - "Nobody Knows You When You're Down And Out" - é uma daquelas baladas que ficaram famosas nas vozes de grupos vocais, só que com uma qualidade melódica superior e que se encaixa muito bem na voz de Nina.
A faixa seguinte - "He Needs Me" (Arthur Hamilton) - traz o bom e velho jazz de volta. Uma canção lenta e triste, com um trio (piano, baixo e bateria) muito competente a acompanhar Nina.
A décima-segunda-faixa é "Spring Is Here" (Duke e Gershwin - há controvérsias sobre a autoria) e é também um belo exemplar da canção jazzística que as grande cantoras negras americanas costumavam embalar os cabarés. Nina mantém a tradição.
"My Babe Just Cares For Me" (Khan e Donaldson) é outro clássico do jazz gravado por muita gente. Nina não deixa por menos, captando toda a intensidade e ironia da canção. Destaque também, novamente, para o trio que a acompanha na faixa. Infelizmente, o CD não tem uma ficha técnica, apenas o nome das músicas e seus compositores, assim mesmo com algumas dúvidas sobre eles. 
O disco se encerra no puro rock and roll, com um clássico do grupo The Animals dos anos 1960. Trata-se de "The House Of Rising Sun" (Holmer e White). Nina dá uma nova intepre,tação à música, puxando para o country e mostrando uma nova possibilidade para a famosa gravação.
O CD pode se comprado no Mercado Livre e em outros bons sites do ramo. Não encontrei no YouTube a gravação para ser ouvida, mas lá está quase toda obra de Nina Simone.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Cadeiras na calçada a ouvir Amelinha

 Por Ronaldo Faria


Juju proseia com Celinha. No ar há uma mistura de palavras e ideias em invenção e prosopopeia. Existe, nalguns momentos, até epopeia. Coisas que vêm de Atenas ou da Galileia, dada à idade de ambas. Sentadas em suas cadeiras na calçada, abismadas com os tempos modernos, pouco afeitos e fraternos a vetustas senhoras, contam histórias imemoriais que nem Gutemberg saberia numa folha de papel imprimir. No frigir dos ovos, beijos eram ósculos.
-- Você lembra quando Astrogildo foi lá em casa pedir minha mão em namoro a papai?
-- E não lembro... O Seu Arcanjo ficou uma vara, queria colocar o rapaz pra fora a varas de marmelo no lombo.
-- Foi. Ele dizia: “filha minha só sai de casa aos 15 anos”. Eu nem menstruado tinha.
-- É, mas os tempos eram outros. Que bom seria se o outrora tivesse se perpetuado...
Na rua que teima em dividir o quadro em lado direito e esquerdo, esquinas, um rapaz passa com sua bicicleta elétrica e grita alto: “ E aí, vovós, tudo beleza?”
-- O que esse moleque depravado quer dizer com beleza?
-- Sei lá. Beleza pra mim era o entardecer na fazenda, com os bezerros a mugirem, o lampião a iluminar o escuro em meia-luz com aquele cheiro gostoso de querosene. Um ou outro morcego a voar nas telhas do quarto. Era de botar medo, mas nenhum nunca veio o nosso sangue chupar.
-- Cruz credo, ainda bem! Minha mãe dizia que eles só comiam frutas. Eram do bem.
-- E as procissões pra pedir chuva, você lembra?
-- Como não. Eram lindas. Todo mundo de branco cantando incelências para ver se os santos davam uma ajuda pra terra não ficar esturricada além do que já estava. O padre suado na frente a excomungar o fato de ser padre e ter de orar aos céus quando melhor era ficar na sacristia a beber vinho e contar tostões.
-- Mais bonito do que elas só as noites de lua cheia com o sanfoneiro chamando a roda de ciranda. Todo mundo em volta a fogueira a rir e brincar de viver feliz.
-- E tão lindo quanto triste era o enterro dos anjinhos que nasciam mortos ou não vingavam. A ruma de gente a seguir o caixãozinho até um campo santo qualquer.
-- Por que tudo isso acabou?
-- Sei lá. Acho que foi o tempo que passou. E voou rápido como se quisesse desaparecer de propósito pra provar que as nossas vidas são só uma vela a queimar.
-- Que mal doloroso...
-- Fazer o quê...
Ao longe o som do sino da igreja badala para a hora da oração a Nossa Senhora. Mas essa realidade ainda existe? Ou será simples chiste de um padre esquerdista na bandalheira que virou a fé?
-- Acho que está na hora de irmos entrar pra rezar, jantar e depois dormir.
-- Será? Posso dizer uma coisa feia, mas bem feia?
-- Pode, né...
-- Então, vai lá: puta que pariu, que se foda a hora da missa! Eu tenho um licor de jabuticaba aqui em casa. Quer entrar e tomar?
-- Não é pecado?
-- Pecado, eu cheguei à conclusão, é morrer. Afinal, ao fim de tudo, vivemos pra quê?
-- Quer saber, tem razão. Vamos encher o pote com seu licor.
Elas riram em seus dentes restantes e resistentes e foram para a sala degustar o tal licor que de tão velho já viu há muito o álcool evaporar. Mas, para Juju e Celinha pouco importava. Atávicas, para elas o drama era estupor. E ligaram a vitrola, colocaram os discos que quiseram, relembraram seus maridos mortos e enterrados. Solertes e brejeiras se embrenharam nas lembranças do tempo em que ainda tinham tranças. Riram muito mais e um tanto ainda mais e dormiram feito duas crianças no sofá coberto com a manta encardida de fios do Egito. O tempo para elas voltara afinal. E agora sem tempo, sem agonia, sem final.

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...