No seu novo livro, "The Singularity is Nearer", Ray Kurzweil,
diretor de engenharia da Google, reafirma a sua crença na chegada iminente da
Singularidade e prevê que, até 2030, os nanorrobôs médicos e a biologia da IA
revolucionarão a medicina, permitindo uma longevidade sem precedentes e até
mesmo a imortalidade.
-- Você quer viver pra sempre, Jeremias?
-- De verdade ou só filosofia?
-- De verdade, driblar a morte ou a excrecência da senilidade.
-- Não sei. Parece ser antinatural. Fomos feitos para
nascer e morrer.
-- Será?
-- Acho que sim, como numa história, há início, meio e
fim.
-- Mas porque há de ser essa a história de vida de cada
um de nós?
-- Sei lá, porque assim fomos criados. Ensinados.
-- Adestrados, talvez...
-- Talvez. Nunca saberemos que não e nem que sim.
-- E se chutarmos o balde e continuarmos vivos a brindar
a vida?
-- Brindar o quê? Brochas, senis, com a pele
encarquilhada e velha?
-- É verdade. Ser eterno já velho deve ser uma merda...
-- Portanto, melhor é seguir o ciclo vital e morrer.
-- É, acho que você tem razão. Afinal, para humanidade
ainda seremos velhos a tentar ser.
-- Logo, possamos pedir mais uma e viver o tempo que nos
resta nessa conversa.
-- Seu José, desce outra depressa antes que o infarto ou
o câncer nos dê o fim.
II
Virgínia, virgem como a flor
que desabrocha antes de nascer, sonhava com seu amado, Amaro. Amargo para
muitos, um ser cheio de perfídias e rimas nos percalços da vida, ele era um
mero funcionário de cartório a carimbar vidas e mortes, imbróglios e pendências
de outros seres talvez tão iguais a ele na sua imensidão. Da cama vazia logo às
seis da manhã para o trabalho, um almoço xoxo, um café quase frio, ônibus
lotado, casa e janta tardia, mera fantasia. Nos seus pensamentos, entre
sofrimento e lamentos, nem sempre a amada aparecia. A manhã fria e cinzenta,
chuvosa e tardia, era o quadro ideal em pinceladas trágicas e atávicas. Na
verdade, seus dias eram prazeres mínimos, milimétricos e enfadonhos. Pouco havia
a prever ou rimar.
-- E aí, Amaro, vamos beber?
-- Pra quê?
-- Pra desanuviar dessa vida,
falar besteira e viajar na maionese.
-- Não, obrigado. Prefiro ver
a tristeza chorar de forma solitária.
Os amigos, bem poucos e desses
que se conta em um dedo das mãos, já tinham esquecido dele. Por dó ou por
descobrirem que não há porque buscá-lo no seu emaranhado de fugas e solidão. Na
navegança de mar aberto, seja a costa longe ou perto, ele preferia estar
desperto no seu mundo próprio. E se sirenas ou sereias estivessem a disputar
com baleias e monstros marinhos cada légua marítima, pouco importava. Bêbado, estropiado
e perdido, virava náufrago de si mesmo, a se agarrar na única boia que ainda restava
na popa ou na proa do navio a submergir. Agora, só lhe restara Basílio.
-- Então, boa noite naquilo
que ainda resta de noite...
-- Tudo bem e obrigado por
tudo.
A caminharem em direções divergentes,
lá se vão dois corpos ausentes, sementes largadas em chãos diferentes. No céu,
uma ou outra estrela surge entre nuvens de chuva e frio real. Para o mundo,
tanto faz como tanto fez... Na cama, com lençol de cambraia branco e cheiroso,
Virgínia dorme mais uma noite vazia.
III
A tarde sem nuvens ou poentes
cinematográficos se põe no horizonte. Um casal ou outro, novo como amantes ou
paixão fugidia, se traveste de contos derradeiros ou sonhos a viver. Não há muito
como saber. Afinal, como dizia o poeta, cada um sabe a dor e alegria de ser o que
se é. Mas lá estavam eles, a se beijarem, se tocarem, se perderem num maremoto
de emoções sem ser. Haverá outro encontro? Saber-se-á. O importante naquele minueto
do momento era nada importar.
A tarde infinita na finitude
que escapa nos grãos de areia alva, entre pés e corpos prostrados em decúbito dorsal
para facilitar a penetração, se prostra famélica e tardia nas sombras que surgem
detrás das montanhas que se vestem de pedra e verdes. Num ou noutro espaço, de
forma branda ou enlouquecida, a perfídia carcomida que de nada vale estar morto
ou vivo. Em momentos de rebentos, sedentos de algo a prever no momento do depois,
ambos, homem e mulher ou sejam eles de que sexo forem, apenas esperam os
escombros que as cinzas do futuro dão ou darão.
Na tarde cadavérica e feérica,
meio formicida e homicida, cariocas e paulistanos se juntam feito água e óleo. E
aos poucos chega a referida noite, notívaga em si mesma, cheia de dramalhões e
fastios, fatal para cada negror que ilumina o restante de vida de calendário.
Nunca mais será a mesma. Viverá somente na lembrança, sem semente ou drama. E
irá rir ou rirá dos absurdos que apenas a incerteza da certeza inexistente dá.
E tudo ficará bem. Porque não há nada mais além.
IV
-- E aí, o que vai querer?
-- Cerveja, um meia-lua e
poder bater um tambor com o Ding Dong
quando não houver mais ninguém aqui no Natural. Pode ser?
-- Quanto a cerveja e o meia-lua
tudo bem. Já o batuque, vou ver...
Esse diálogo existiu? Certamente
não ou sim. Se quem viveu não sabe cravar a veracidade, imagina quem sequer viveu um segundo do autor da lembrança da lambança. Mas que rolaram batuques com o
Ding Dong, isso rolou. Em alguns dias pude ser músico (certamente horrendo no
ritmo) da noite, nas noitadas que já não existem no Cambuí. Mas isso eu fui. E
ninguém tira isso de mim.