Por Ronaldo Faria
Ricardo costumava coçar a
cabeça com o dedo mindinho da mão direita sempre que algo lhe parecia errado. Enfastiado
com o enfadonho dia que tivera na repartição pública, que mais pudica não seria
senão, esperava as horas passarem para bater o velho e amarelado cartão no
ponto que ponteia o limite entre a loucura e a sanidade. Aguardara meses por
suas férias, quase efêmeras nas feéricas loucuras que pensara para viver livre.
“Vou-me ver livre de pensamentos e lamentos, ônibus lotados, fadados a foder o
operário do erário.”
Na querência de um amor
verdadeiro, desses que poetas escrevem como sendo fáceis de se encontrar, Ricardo
vagava solitário entre organogramas, tarefas inverossímeis e prazos eternamente
dilatados. “Vá no seu ritmo, Ricardo. Aqui é repartição pública. Sem pressa.
Quem se apresa perde o melhor do funcionalismo estável: poder faturar no fim do
mês o salário sem medo de se foder.” A voz do seu chefe, perto de se aposentar
com todos direitos preservados, batucava na sua cabeça. “Foda-se o populacho.
Afinal, tudo aqui é um escracho. Eu quero é curtir meus dias de férias
merecidos por nunca faltar, chegar no horário adiantado e sair depois do
relógio deixar.”
Ricardo, um asno para seus
companheiros de repartição, nem acreditou quando bateu o ponto que determinava
30 dias de afastamento. “Meu Deus, agora somos só o Senhor e eu!” Fechou a
gaveta com chave, deixou à mostra os processos que não concluíra a tempo (“Quando
eu voltar decerto ainda estarão aqui”) e desceu no elevador com suas portas pantográficas
enferrujadas. “Boa noite, Seu Luiz, até daqui a um mês.” O porteiro agradece o
cumprimento e deseja bom descanso a Ricardo. Ele, feliz a curtir seu momento,
segue rua abaixo a cantarolar um samba do Cartola.
As desejadas férias de
Ricardo, deixo a cada um decidir:
1) Acorda
cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de
queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a
bagagem e senta no assento, com direito a janela. Horas depois desce no
destino. Vai até a pousada e curte seus merecidos dias em eterna orgia.
2) Acorda
cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de
queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a
bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, porém, pago em 12 vezes
sem juros, estava um bagaço e cai 20 minutos após decolar. Todos, passageiros e
tripulação, morrem instantaneamente. Irreconhecíveis, tiveram enterro coletivo.
3) Acorda cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto.
Lá, pede um pingado e um pão de queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a
área de embarque. Despacha a bagagem e senta no assento, com direito a janela.
O avião, porém, no bagaço, apresenta problema mecânico e faz um pouso forçado a
milhares de quilômetros do destino. Lá, porém, Ricardo conhece Vitória, passageira
também e sonhando com as férias. Com ela faz história, interage e fica, manda o
emprego público à merda e vira empreendedor social. Hoje tem três filhos e
descobriu que a vida é para se viver.
4) Acorda
cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de
queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a
bagagem e senta no assento, com direito a janela. O avião, no bagaço, levanta
voo e é obrigado a voltar ao destino. O piloto pede perdão aos passageiros e a
companhia aérea promete ressarcir a todos com nova passagem, dentro de 30 dias,
e um chaveirinho. Desolado, Ricardo passa as férias em casa, sem (como diria o
poeta) mandinga de amor. Na volta ao trabalho é suspenso por ter dado um soco
no rosto do porteiro que lhe desejou bom retorno.
5) Acorda
cedo, pega um Uber e vai até o aeroporto. Lá, pede um pingado e um pão de
queijo. Reclama do preço absurdo e vai até a área de embarque. Despacha a
bagagem e senta no assento, com direito a janela. Só então acorda, suado, do
sonho no meio do expediente no dia quente (o ar-condicionado da repartição
estava quebrado e não havia dinheiro para consertar). Por falta de funcionários
concursados, suas férias foram suspensas, a bem do serviço público. Na mesa a
pilha de processos se acumula. “Que se foda!” – brada colérico antes de mais um
café tradicional.
(Ao som do delírio)




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