terça-feira, 31 de outubro de 2023

No mundo dos Mutantes

 Por Ronaldo Faria


Não sei se saberei falar dos Mutantes agora. Afinal, não estou numa ágora. Falta-me a praça pública e a mulher púbica para grassar. E nem Rita Lee há mais. Mas, afinal, o que hoje haverá? Talvez um mar distante, uma saudade equidistante, um náufrago se afogando errante? Quem poderá delimitar a fátua linha entre a verdade, a sanidade e a sina? Torquato Neto naquele momento final teria razão ou não? Quem, em sã consciência, poderá responder ou viralizar (leia-se que o Word do Windows 11, talvez já velho, não aceita a palavra viralizar)? Como os tempos mudaram e se transmutaram. Mas, bata macumba... Bata incomensurável e afável a quem lhe quiser. Sejamos nós apenas um nó a mais entre a vida e a finitude. Na amplitude da efeméride proscrita e aflita, possamos procrastinar o que ainda nos resta, sem pressa. À inválida e vazia panela da eternidade não façamos filé mignon onde carne de terceira tiver...

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Musicando inúmeras versões de si mesmo

Por Ronaldo Faria 

Devia ter tido, sido, vivido. Ou ao menos assim dizia o poeta que sai dos cinco autofalantes. Ou não dizia? Terá sido delírio? Perfídia, som de mídia. Na promessa de estar junto nem que seja num asilo, a ensandecida magia. No auxílio de si mesmo, o homem profetiza que a vida é apenas uma falácia. No jardim brota uma acácia.

 


João manda um beijo para Emília via virtual. No mundo atual, pouco mais há que se fazer. Talvez uma caminhada tresloucada, um romance cheio de histórias realizadas, frases nunca ditas, desditas ao vento ou o tempo, frágeis por apenas serem frases. Mal ditas, malditas, transversas e finais. Nos algoritmos dos novos tempos, temporais de ventos mil que nunca saem para somente, em semente morta, realidade ser.

João sabe que cada movimento seu é algo a esmo, nas efemérides de quem é triste. Que seus desejos e ensejos nada são ou serão. Talvez um dístico que não escreveu, mutilado. Um fado tardio, um tango execrado no salão. A incerteza múltipla da solidão. As inverdades intrínsecas na vazia estrada da imensidão.

João, cercado de fotos e fantasias vadias, se transforma num ser amiúde, desses que a gente vê a cada passo que dá nas ruas quentes e secas. Nas vielas da favela, a singela figura da mulher se faz e desfaz. Diante da birosca, na esquina que barricadas ainda deixam ter, um bêbado ou outro finge ter a lucidez que já se foi. Quase tropeça no meio fio que ainda fia a vida que depende só de uma queda para esvair. Espera o Uber que o levará de volta na insólita estrada para o chegar que é só partir. Trêbado, submerso na sua imensidão, posterga ver os poucos pórticos que ainda existem e resistem entre a realidade e a solidão. No mais, só servidão. 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Sob o som de Nando Reis

Por Ronaldo Faria


Os olhos aos poucos falham. Haverá farofa a ver logo ali do depois? Na troca de óculos constante, a frustrante certeza de que falta pouco no oco viver. A incrustrada verdade que voa a saber que não haverá volta. Na blasfêmia da rotina de cada segundo, a falta do tal centro geodésico.

Liberto de vestes etéreas, sem, porém, vetusto ser, Camilo caminha em si mesmo. Dá voltas nas tantas curvas, esquinas, ruas, avenidas, estradas cheias de pó da saudade. Sua roupa tem rasgos do tempo, costuras feitas a mão, dessas que a gente fura os dedos com agulhas de costurar feridas e buracos que nunca fecharão. Quase tosco, antropófago de si mesmo, suicida de uma história, vê que o cérebro, aos poucos, está a apagar. Hoje, sai a vagar claudicante e arfante por não ter aonde chegar. Entre pesadelos enegrecidos e desejos proscritos, vive o pouco que decidiu sobreviver.

-- Até quando, me perguntaria o Armando...

O tal Armando era o último amigo de Camilo. Conhecido de anos muitos atrás, desse tempo que hoje apenas a saudade traz. Não fique, além disso, porém, raro leitor. Armando há muito já se foi do mundo dos vivos. Talvez agora esteja em algum lugar de um céu qualquer a ver seu amigo professar profecias iniquas e inexistentes na realidade que ainda há.

-- Brinde procê, mano velho!

 Com disco na vitrola, Camilo caminha a esmo na madrugada seca e insólita.

-- E se o homem acabar com a Terra? Se ela nos autodevorar por tudo aquilo que fazemos com ela? Se um louco resolver um botão apertar? Se o coração nesse próximo segundo resolver parar?

Perguntas. Mil perguntas a assuntar. Era isso que Camilo tinha para pensar. Amou em vida o que, aquilo e quem pôde. Mais não o fez foi porque não conseguiu.

-- Mas com o que tinha, botei pra quebrar...

Liga a tevê, muda de canais de forma enlouquecida e sôfrega. Não para sequer um minuto em qualquer um deles ficar. Surgem rostos, vozes, obuses de uma guerra externa, anúncios de margarina feliz, atores e atrizes a volatizarem em gamas de pequenas luzes. Para ele, nada mais serve de alento. Camilo apenas espera uma veia estourar no cérebro, um pulmão deixar de se encher de vento, o coração decidir descansar, os olhos fecharem para nunca mais precisarem de óculos de lentes e armações. Do lado de fora, aforismo de tudo, uma chuva cheia de relâmpagos se arma para cair. Quieto, levanta, vai até a cozinha e abre outra garrafa que embriagará sua dor. Na secura do tempo a fumaça de vapor volatiliza a vida...

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Pro Waly Salomão não ficar puto

Por Ronaldo Faria



O medo, no entrevero da dor, se torna passado sem trono. Na voz da Gal, tudo está legal. Revejo o Rio de Janeiro. A todo o vapor me transformo em vaporização equânime naquilo que vivi, decerto. Dos tempos de nascido na capital do País até aqui, submergi e sobrevivi. Precisa mais? Quem sabe sim, quem saberá não. De antemão, sugiro um rever tão cansado que nem saberia responder. Quiçá, me transformaria num demente cheio de anéis. Na lua que se faz anular a cada mês, mesuras mil. Tenho mil passados a chamar de meu amor. Amortizado, mortificado, calcinado, prossigo. Como pegasse a próxima lata sem sequer ver que não acabei a anterior. Mas o tempo é isso: promíscuo, findo, fátuo, fatídico, presto a ser seu próprio fim. Na voz de Gal, não estou indo embora, ainda. Baby, sejamos um mundo próprio e próximo daquilo que o universo, em verso, procrastinou. Alegria e calma arrebatam cinquenta músicas a tocar. Na verdade, meu verdadeiro amor há 30 ou 40 dias está desparecida. Dessa coisa que a gente arranca até dos contatos do passado para não buscar numa embriaguez volátil. O que se foi, como diria o poeta, não pode, agora, fazer mal nenhum a mim, nem a ninguém ou a nada. Cavalos de santos perdidos no céu, nos aportamos num meio dia ou meia noite. Sempre na tua glória, estejamos sanos ou insanos... Santo Waly, nos faça um Salomão a seguir os ditames que nunca foram escritos por rei qualquer. Sejamos nós a voz e a verve de uma inócua e simples lenda.

sábado, 21 de outubro de 2023

Para o Pedro Salomão

Por Ronaldo Faria


A noite, como diria o novo poeta Salomão (não o Waly), insiste em não passar. Talvez, quem sabe, uma felina leoa poderá nos tocar, beijar e amar. Certamente encontraremos uma tal em alguma esquina de algum lugar. Num bar? Será? Nas calçadas que a mulher-menina anda despreocupada a viver? Quem irá saber? Talvez numa trama que se entranha em meia hora ou na eternidade que destoa da realidade que nos jogará aos vermes ou ao forno quente que traz ausente às cinzas finais, frugais, o esmaecer da vida finda. Agora, pouco importa. A porta fechada e o som restrito nos faz ao menos crer. A poucas horas iremos orar saber-se-á para o que. A vida, efêmera, surge como a fêmea que habita em cada alvorecer. Senão, seremos perguntas atávicas a pincelar dúvidas antropofágicas e letárgicas que destoam de ser em si.

Por isso a noite é o fim da tarde. Aquela que traz o que já se desfaz na possível chegada de mais uma madrugada. A alvorada, ao coração que ainda bate será a nossa grande pergunta. Chegará? Far-se-á? Irá saber lidar com as ressacas, com o céu a transmutar-se e o sermos somente por sermos? Nalgum lugar uma semente certamente brotará. Senão, que sejamos feito feijão e pão. Comidos no dia que sucumbe apenas para no calendário podermos existir e viver.  Na existência extrema de sempre aprendermos naquilo que hoje há e naquilo que virá, sejamos prosa e poesia, cantada, escrita ou declamada. Senão, possamos aprender que a vida se renova e se faz nova, queiramos ou não. Ainda bem que a morte perpétua do passado e do presente perpetua o renovar de um criar que deita no peito nosso antes de dormir. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Acorda Maria Bonita

Por Ronaldo Faria


Maria Bonita acorda desesperada. Talvez soubesse que uma bala irá lhe dar bom dia. Não haverá mais choro, trilhas com plantas carcomidas e secas do sertão, nem mesmo um cantão na grota de Angico. Nada sobrará. Nem calangos, cangaceiros ou macacos. Talvez, no futuro, um augúrio. Quem viver, verá.

 

Nas vertentes das veredas que se embrenham na lua que se esconde no céu, trabucos soltam o som da morte e descobrem no sangue derramado a trama que nenhuma viola saberá tocar. Depois da matança, cabeças expostas ao vento, os homens e mulheres, alhures, viram apenas festança e esperança de cordelistas pelo mundo. Sejam eles primogênitos ou geneticamente curtidos no sertão do passado, de lampiões de querosene e luares imensos ao som de um gado que vai parir e morrer, seguem no precipício que há entre o nascer e findar. Serão fotos, decapitados de seus corpos antes andantes e amantes, viverão em histórias mil. Serão cantados, declamados, difamados, afortunados por sobreviverem aos tempos que cada vez menos tempo nos dá. Como parte de um país senil e febril, semearão amores e ódios, ordinárias vertentes de sementes que, com certeza e presteza, brotarão. E caberá a cada um desdenhar ou regar o que disso puder sobreviver... Daqui, do mundo moderno, vejo, sem credo, que como diria o poeta, a mula pula. Ou seja, nada sei e sei que nada nunca saberei.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

No terreiro do som e rolando como fosse Boldrin

Por Ronaldo Faria



As frases. De onde surgirão as frases, como fossem sentenças embaralhadas pelos óculos errado? Ou, senão, como fossem ósculos perdidos na insana e doidivanas saga do amor.

De onde virão feito vendaval em sofreguidão? Sairão do desejo e do ensejo de que seremos donos de nós mesmos ou apenas são brinquedo feito chalana a correr no rio vazio?

E as sílabas? Sibilarão em cobras com vontade de picar a primeira sombra que vier com o luar ou irão fugir com o rabo entre as inexistentes pernas para o fundo de terra que der?

Nunca saberemos. Certamente não nós a quem foi dado o destrato de tratar rimas como fossem ruínas de um texto que se trata de saudades e maldades que a vida nos dá.

Por isso somos apenas um limiar que há de lumiar entre a luz e o negror da própria dor. Nos goles que dão a mansidão da imensidão e se tornam prolixos em inerte servidão.

E surgem parafraseados entremeados de letras mesmo que quase nulas para iletrados. E assim vamos a correr nas estradas de São João da Freguesia, sem saber se haverá sangria.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Realejo e sanfona

Por Ronaldo Faria


O realejo da praça central toca sem parar. Dele, um periquito surge pequeno e quase efêmero a buscar o que de melhor o cliente ou a cliente possam ler. Sem saber, ele diz à nota que denota no papel num lumiar ou um fim cruel para sonhos e feronômios. Mas, coitado, sem asas para voar, pouco sabe da sua missão. Sem intromissão ou permissão de no destino mexer, sequer sabe dos mexericos que as velhas da janela soltam em profusão. Apenas pega, solitário, um pedaço de textura de celulose que um dia foi vida. Sua missão aqui é apenas juntar centavos para o homem que o acorrenta e, vez ou outra, lhe dá um alpiste como fosse à vida um mero e único chiste.

O realejo, que nada de realeza tem, entoa sons que chamam aqueles que procuram a felicidade em meio a tristeza da cidade. Nele, o periquito, antes já descrito, é a chave do futuro, do presente e do passado. Ausente de tudo, soturno na sua missão, apenas cumpre o papel de menestrel. E sucumbe a cada olhar de ódio que lhe dão quando puxa um destino em desatino com o desejo daquele que tira o dinheiro da carteira. A ferocidade seria certeira se o seu dono não impedisse um periquiticídio. Em meio a tudo, num maio altaneiro, a criança corre solerte e brinca de que a vida será eterna e terna. Da sua prisão a ave pede a Deus de que ela esteja certa.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Ao Toninho Ferragutti

Por Ronaldo Faria


Respire fundo e afunde em si mesmo, a esmo. Ensimesmado, sinta-se abençoado pelos orixás ou deuses em que possa acreditar. Se não tiver a nenhum deles, não importa. Cerre o ferrolho da porta e ponteie na viola de sete cordas aquilo que quiser. Certamente, São Gonçalo irá te dar guarida mais premida e contigo proseará. Da janela logo perto talvez a louca desde nascida gritará. Não ligue, a lua maior há de trazer um acordeom que soprará sons e tons num desabrochar de léguas de mato verde ou rio cheio a transbordar de vidas e peixes. Tanto faz. Deixe fluir o que melhor lhe apraz. No fim, lá no fundinho ademais, surgirá algo próximo da paz. Na mais loquaz sublimação.

Se puder, para não perder a razão, olhe para o chão que te sustenta. Na intenção dessa peleja, um corpo que emerge também logo arqueja. Sem soberba, aceite que salada tem que ser com azeite. No universo do verso derradeiro, o importante é ser meeiro de um pedaço de página qualquer. Como pudesse ter nas mãos um ínfimo espaço de mulher. E entendesse da geração de outra vida, mesmo que premida. Pense, por fim, mesmo que no fim, a esmo, de que nada haverá no depois. Deponha no júri de si e sentencie o réu a vestir um véu que a tudo esconde e nada deixa mostrar. E se, lá no fim, denotar que há algum lugar a chegar, se achegue e se aninhe. A vida, cansada, agradecerá.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Viola e insônia crua e encruada

Por Ronaldo Faria


Na viola do violeiro, o esgueiro de um som que foge entre os ouvidos e olvida ser maior do que é. Na insônia crua e encruada na madrugada que é tragada pelas horas, a histriônica história inglória de Jesus Aldo, filho de Maria e José. Ou terá sido de José e Maria? Saber-se-á...

Carregador num mercado de secos e molhados, vive molhado de suor do seu ir e voltar com quilos de sebos e restos fervidos. E segue em passos pequenos e cansados à espera do relógio de ponto bater no ponto em que possa ainda, nessa sina, mesmo quase morto, viver.

Aldo, aldeão da sua aldeia inexistente, vive como um ser premente, desses que espera tanto que o tempo não deixa sequer sobreviver. Logo joga em cova rasa, tão rasa que nem os pés cabem pra dentro e se largam feito erva daninha a brotar em qualquer lugar e se largar.

Mas nos dedos do violeiro, primeiro ser a dedilhar o som do silêncio sepulcral, Jesus Aldo se prende à sua cruz. Ao invés de pregos, pregoa aos ventos sua solidão inclemente. E mente a si mesmo de que seguir levará a algum lugar. No ar, fuligem de mata nova se põe a chegar.

Jesus, amado mestre, que sobrevive a toda a peste, cuide de Aldo, no seu descalabro. Deixe que ele, assoberbado, presenteie sua vida com a mesma chama que vem do candelabro. Num canto de sala, na insólita glória, certamente alguém cantará um perdido tema de amor.

Mas, na viola de um violeiro, o centeio da semente que se espraia no chão seco e carcomido de quem sabe que, em outra era, será como serpente a correr o trilho de terra onde o pó passeia a presentear quem, como Aldo, almeja ser apenas um Judas a moedas contar.

sábado, 7 de outubro de 2023

Extraído da foto em som e fotograma

Por Ronaldo Faria


A tez da mulher parecia ter saído uma orgia, dessas que a gente nunca mais esquece e o corpo padece de se recuperar. Seu olhar, na sombra da tarde que entardece e enternece quem de longe olha só por olhar, vê a foto que o som extraído de um fotograma perdido e urdido no passado que o naufrágio da paixão deixou afundar no mar mais morto que o próprio Mar Morto não sabe denotar.

A face da mulher, sem a flacidez que logo lhe chegará, é como a faceta que existe entre o amor e o marujo que se perdeu no mar do amar. Suas mãos buscam os lábios do amado como fossem beatas na beira de um altar. Mas não há onde tocar. Sôfregas, como samaritanas de uma procissão, seguem a desdenhar o desejo. Na insólita chegada do insólito anoitecer, um cão uiva sua solidão ao luar.

Os braços da mulher, à espera de um abraço avassalador, desses que curam e cicatrizam qualquer dor, cansaram de se estender. Na verdade, não há muito que entender. Na ilusão da frágil imensidão que existe entre ser e querer, o coração bate em retidão na espera de um dia parar. No frigir de ovos que a panela ou a procela dão, só a cadela já morta descansa quieta naquilo que a eternidade dá.

Na boca da mulher, o desejo e o ensejo de que um dia o universo há de se descortinar como um palco sem cortina final, onde o público aplauda a mais ridícula sanha que nem uma edícula deixaria morar. Nos tragos que se fazem farrapos e num escrevinhar tresloucado, o homem que o hímen dela não vê, traça versos e versículos e apenas repete, em verve, a primeira canção solar que surge ao amanhecer.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Ao som múltiplo da múltipla multiplicidade que vem com a idade

Por Ronaldo Faria


Vendetas de amor, blasfêmias de dor, canções consternadas e adernadas entre copos de vinho e olhares vagos, entrecortados na noite que permeia os afagos e tragos. Pares trocam pernas e pés pisados no salão. Entre tantos, está Romão. Homem de idade longeva, dessas que já não conta aniversário e vira anedotário, está sentado, solitário, na mesa que se esconde numa canto sem luz. A cena em si sem traduz. Não passa garçom, não chega um chamego, ninguém olha nem de viés. O revés é total. O Romão é somente mais um animal. Houvesse licença de caça, sequer alguém ousaria encher com ele um embornal, gastar um pavio de pólvora, buscar a trilha em que ele se embrenhou. Na verdade, sequer qualquer fêmea emprenharia no local. Ele era um apêndice, desses que não cabe em dicionário e nem obituário. Que não se extrai do corpo e deixa a vítima morrer. No seu além, dos anjos nem um desdém. Talvez, quem saberá, um universo sem verso e a nobreza que há muito está na mágica do aquém.

Mas Romão estava lá, a cantar larari ou larará. Cantava só, num assombroso silêncio que nem a madrugada mais calada poderia ouvir. Na parcimônia cômica, a antagônica agonia que frigia como ovos de uma galinha que punha nova vida sem sequer cacarejar. Um sanfoneiro toca brejeiro para um casal dançar. Nos ouvidos que olvidam o mundo encontrar, uma nota ou outra denota que mais um dia irá acabar. Logo, outro surgirá e urgirá as verdades que Romão não quer escutar. Pegar um novo ônibus, subir e descer atônito como fosse um ator cômico. Tentar desvendar, em tantos tentáculos que tentam pegá-lo para no breu jogá-lo, de quais fugir no urgir de um tempo que sua úlcera não deixará viver. Mas, para ele, tanto faz. Chama o garçom que, por fim, decide vê-lo chinfrim e pede a conta. Sai trôpego e sôfrego. Logo ali, na distância sem equidistância, cairá para nunca mais ser, ver ou respirar. Em volta, o lugar testemunha o vendedor que prega que a pupunha é o melhor a se comprar.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

A Nicolas Krassik

Por Ronaldo Faria


Eles dançavam na beira do mar. No ar, o som do forró girava corpos em sinfonia madrigal. Ele e ela, os dois, brindavam às ondas com pés molhados num sol que vem adormecer a criação da tarde. Na cor do Nordeste, um vento leste voa reluzente na areia que espuma com a água que vira de ponta nas duas cabeças. Na sandice cênica, um candeeiro logo surgirá da efêmera nuvem negra que sairá do cheiro de frescor noturno, desses de amor quase soturno que se esconde dos olhos dos outros para outrora germinar.

Na casa que mil paus pôs a pique para nascer, o brilho tragicômico e harmônico da rabeca se junta ao violino. E das cordas acorda o imaginário que surge sempre e urge para ficar, apesar de ir embora a cada florada fora de hora. No quintal, o mandacaru brota quase morto de sede. Mas revive nas sonatas que fogem pela janela entreaberta onde a festa faz-se numa cama forrada de linho branco. No fogão a madeira crepita a cantar a voz da natureza perplexa com tanto amar. Mas, na beira do mar, eles estão a dançar.

E, portanto, no tanto que pode existir e ter, o luar se embriaga de ser. Chama as nuvens para cobri-lo de textura e se atira entre uma e outra sombra que se faz no rio seco que a cheia esqueceu de beijar. Nas poças que sobram, bois e vacas soçobram como arquétipos de seres, ossadas que caminham devagar a esperar a morte chegar. Mas, longe, entre o limite do terreiro e a imensidão do mar, o casal esquece que há finitude ou latitude entre a crença e o coração. Aos dois resta, por fim, a imensa e real mansidão.

sábado, 30 de setembro de 2023

Em Dani Gurgel

 Por Ronaldo Faria


São Paulo escurece quieta. Como toda a cidade em festa, está prestes a estar presta no logo que será um amanhã. Agora já é noite. Ao fundo as luzes reluzem como fossem um brinde para a loucura soturna e noturna que se espraia entre algoritmos e ritmos mil. A cidade, sem idade, na mediunidade local, acorda e dorme em transe. Transita do Centro ao Jabaquara. Pernoita num Minhocão onde o chão empilha seres que não esperam algo além de adormecer, já que vida já não há para viver. Um cachimbo a mais, K9 quiçá, e vamos nos arrastar na bilheteria de um cinema sem fotogramas e que não há. Em coma, qualquer cama servirá.

São Paulo se empilha de luzes e louças a lavar. Pratos quebrados, partos interrompidos, cansativos metros corridos num metrô de série de tevê. Uma bebida a mais, sagaz, fatídica crença de nunca mais. Talvez um nóia a viajar seu mundo profundo no submundo que se traveste em traste de imundo para não irromper o feto que foi criado a gramas e maresias. As futuras crias. Na esquina de gente fina, a finitude germina. Quem sabe um gole a mais, uma golfada na primeira esquina, a quina que deixamos de bater na mesa do lugar. O joelho agradece e a sentença da primogênita enternece de perdão o último e profilático sermão.

São Paulo se dilacera como fera sem jaula. Quem dera pudesse derrear num parque em fé. Na ilusão que ainda resta, na equânime sintonia que existe entre a morte e a vida. Na transversal que decerto existirá na maior cidade deste país, uma ou outra saudade ainda se fará. O beijo que se largou em louvor, o olhar que transmutou servidão, a insana certeza de que nada chegará. No elevador que sobe e desce, se desfaz a cena que antes, talvez, pudesse antever o louvor. Na iniquidade do lumiar, o próximo dia que, sobremaneira, perpetuará a incerteza de num canto, escondido, o corpo atroz, enfim, adormecerá sob um poste que pisca sem saber.


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Júlia Vargas

 Por Ronaldo Faria


Passarinho, cadê as horas que passarão? De onde virá a passarinhada primeira do sol que brota saber-se-á de onde? Certamente do outro lado da Terra em que casais e tristes seres desvirginaram a existência mortal. No imaginário desvirginado do assombro tardio, o frio da madrugada tragada de goles e foles criará o fim da boemia. Mas será ela dela, sua ou minha?


Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...