Por Ronaldo Faria
Os olhos aos poucos falham.
Haverá farofa a ver logo ali do depois? Na troca de óculos constante, a
frustrante certeza de que falta pouco no oco viver. A incrustrada verdade que
voa a saber que não haverá volta. Na blasfêmia da rotina de cada segundo, a
falta do tal centro geodésico.
Liberto de vestes etéreas,
sem, porém, vetusto ser, Camilo caminha em si mesmo. Dá voltas nas tantas
curvas, esquinas, ruas, avenidas, estradas cheias de pó da saudade. Sua roupa tem
rasgos do tempo, costuras feitas a mão, dessas que a gente fura os dedos com
agulhas de costurar feridas e buracos que nunca fecharão. Quase tosco, antropófago
de si mesmo, suicida de uma história, vê que o cérebro, aos poucos, está a
apagar. Hoje, sai a vagar claudicante e arfante por não ter aonde chegar. Entre
pesadelos enegrecidos e desejos proscritos, vive o pouco que decidiu
sobreviver.
-- Até quando, me perguntaria
o Armando...
O tal Armando era o último
amigo de Camilo. Conhecido de anos muitos atrás, desse tempo que hoje apenas a
saudade traz. Não fique, além disso, porém, raro leitor. Armando há muito já se
foi do mundo dos vivos. Talvez agora esteja em algum lugar de um céu qualquer a
ver seu amigo professar profecias iniquas e inexistentes na realidade que ainda
há.
-- Brinde procê, mano velho!
Com disco na vitrola, Camilo caminha a esmo na
madrugada seca e insólita.
-- E se o homem acabar com a
Terra? Se ela nos autodevorar por tudo aquilo que fazemos com ela? Se um louco
resolver um botão apertar? Se o coração nesse próximo segundo resolver parar?
Perguntas. Mil perguntas a assuntar.
Era isso que Camilo tinha para pensar. Amou em vida o que, aquilo e quem pôde.
Mais não o fez foi porque não conseguiu.
-- Mas com o que tinha, botei
pra quebrar...
Liga a tevê, muda de canais de
forma enlouquecida e sôfrega. Não para sequer um minuto em qualquer um deles
ficar. Surgem rostos, vozes, obuses de uma guerra externa, anúncios de
margarina feliz, atores e atrizes a volatizarem em gamas de pequenas luzes.
Para ele, nada mais serve de alento. Camilo apenas espera uma veia estourar no
cérebro, um pulmão deixar de se encher de vento, o coração decidir descansar,
os olhos fecharem para nunca mais precisarem de óculos de lentes e armações. Do
lado de fora, aforismo de tudo, uma chuva cheia de relâmpagos se arma para
cair. Quieto, levanta, vai até a cozinha e abre outra garrafa que embriagará sua
dor. Na secura do tempo a fumaça de vapor volatiliza a vida...