quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O samba de Délcio Carvalho

Por Edmilson Siqueira 

Se ao ouvir o nome de Délcio Carvalho você perguntar "quem?", não tenha muita vergonha, não. Eu também perguntei, há uns 20 anos, ao dono do bar Tonico's, o Paulo, durante um almoço, a quem ele se referia, já que o moço ia fazer um show ali e ele praticamente exigia a minha presença. Ele disse que era um sambista carioca, autor de vários sucessos e gente finíssima.  


Pois alguns dias depois, um sábado, estávamos, Zezé e eu, frente a frente com Délcio Carvalho, um sambista da mais pura cepa carioca.  O show era pra comemorar seus 65 anos de vida. Sucessos? Bom, pra começo de conversa ele era parceiro de Dona Ivone Lara, o que, de cara, já o credenciava. Depois, antes do show começar, vi Chiquinho do Pandeiro e outros sambistas de Campinas chegando. Aí tive certeza de que iria assistir a um grande show.  


Délcio subiu ao placo com uma certa responsabilidade, pois o Quarteto de Cordas Vocais que o acompanharia – que nessa noite era sexteto, pois já é quinteto e estava acrescido de uma cuíca sensacional – tinha feito uma apresentação cheia de aplausos entusiasmados.  


Délcio foi logo dizendo que era um tipo de compositor que muita gente conhecia as músicas, mas não conhecia o autor. E ele estava ali para que todos o pudessem conhecê-lo. E começou a cantar músicas suas com outros parceiros, como, além de Dona Ivone, Ivor Lancelotti, Mário Lago Filho, Capiba, Elton Medeiros, Maurício Tapajós, Noca da Portela, etc., mostrando que compõe só com cobra criada, como diria o grande Adelzon Alves, o amigo da madrugada, na Rádio Globo dos anos 1970. 


Com sua voz suave, ele foi desfiando lindos sambas, alguns grandes sucessos como "Esperanças Perdidas" e "Sonho Meu", além de outros que caíam na hora no gosto da plateia que não se inibia de cantar junto o refrão, principalmente em alguns sambas de roda feitos com aquele toque que só o compositor carioca sabe dar.   


No fim do ótimo show, comprei o CD "A Lua e o Conhaque" que ele estava vendendo e fiz questão do autógrafo. E é esse CD, com 17 músicas da mais fina estirpe do samba carioca, que estou ouvindo agora. Tem samba, samba canção, samba de roda... Tem hora que parece Cartola, outra hora parece Paulinho da Viola, às vezes Nelson Cavaquinho, mas são todos Délcio Carvalho, um sambista que nos deixou em novembro de 2013 e que, sem aparecer como outros grandes sambistas, deixou uma obra que encanta a todos aqueles que não são ruins da cabeça nem doentes do pé.  

Não encontrei o CD na íntegra pra ser ouvido, mas ele está à venda nos bons sites do ramo. 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

No Vento Viola

 Por Ronaldo Faria

Minas tem cheiro sei lá de coisa presta em festa? Tem. Com certeza tem. Tem cheiro de bosta de vaca, de mato a crescer livre, de riachinho que corre quieto na divisa indivisível entre suas terras e um São Paulo a pulular do lado de cá.

Minas tem cheiro de viola a correr e sangrar e brotar além nas cordas de aço que discorrem entre o leite e o café. Para deleite de São Gonçalo, se fará em qualquer um. Quem sabe num gole de pinga a respingar as horas e trovas, na fé.

Minas tem mais: tem junção de mundos entre o início e o fundo, a correr de lá e para cá num universo entre a cidade e a roça, no início e precípuo fim. Precipício às tristezas decerto há. Ácida, indelével, entre a missa e o refrão, fica a saudade e o que ainda resta de mundão.

Minas tem minério nenhum e tem todos. Tem um ilícito poema de madrugada em torpor, tem o imaginário e glacial louvor. Pedaço de mãos e vozes em imaginário torpor. No fim, nos sobra música mágica a voar feito ébrio perdido, inútil e grave ateu.

Minas, misturada em quilômetros afônicos e tônicos, sobrevoe, pois, feito os pássaros atônitos que te cobrem de poemas e penas. No permear de qualquer coisa, não seja nada. Se apequene gigante no seu sem mar, a seguir onda a onda no cerzir e sorrir.

Minas, tua grandeza, em si, te fará...

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A alegria de Beatriz Azevedo

Por Edmilson Siqueira 

Em 2008 chegou em casa o primeiro CD de Beatriz Azevedo, "Alegria". Gostei muito do que ouvi, mas depois não acompanhei sua carreira. Hoje, fico sabendo que essa careira está bem consolidada, ela é citada por importantes nomes da MPB, já se apresentou ao lado de uma porção deles e, mais importante, já gravou mais 12 CDs, vários no exterior.  

Seu primeiro disco é coisa fina, sem trocadilho com a gravadora, a ótima Biscoito Fino. Ouvi muito, escrevi sobre ela na revista Metrópole do Correio Popular e, hoje, ao retornar a ele, percebo que devia ter ouvido mais.  


A descoberta, à época, se deu pela internet, animado que fiquei com algumas críticas que li e com os parceiros que fazem parte do disco – Tom Zé e Vinicius Cantuária –, além da direção musical de Cristóvão Bastos, o que é garantia de bom gosto.  


O futuro da moça já estava mais ou menos traçado, pois quando lançou o primeiro CD, já havia uma pequena biografia dela no Google: "Beatriz Azevedo é poeta, cantora e compositora, multiartista brasileira. Graduada em Artes Cênicas pela Unicamp, estudou no Mannes College of Music e no Jazz and Contemporary Music Program de Nova York. Em Barcelona, estudou na Sala Beckett com bolsa do Instituto de Cooperación Iberoamericana da Espanha. Ganhou a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura do Brasil em 2002. Em 2003, apresentou-se no Festival Première Brazil! do MoMA de Nova York e no Verizon Music Festival, cuja programação incluiu artistas como Erikah Badu, George Benson e Wynton Marsalis com a Lincoln Center Jazz Orchestra." 

O CD comprova todo esse "currículo", pois ela compõe bem pra caramba, canta muito bem, tem bons parceiros, a produção é excelente e o disco, se bem me lembro, entrou na lista dos melhores lançamentos de 2008. 


Tem samba, tem baião, tem maxixe, tem rock e tem jazz, tudo refinado, devidamente deglutido e reciclado de forma a dar prazer aos nossos ouvidos. Tem música em português, inglês e francês. Nessa última língua, a música se chama  "Savoir Par Coeur", a expressão francesa para “saber de cor” que explicita o coração como centro da lembrança. Tem homenagem a Pagu e a descoberta do “buraco” cantado com Tom Zé.  


Pra quem não sabe, Tom Zé tem uma relação com o "buraco". Em plena ditadura, ele lançou um LP cuja foto da capa era estranha. Cheia de riscos meio tortos cinza azulados com alguns traços de vermelho, convergentes a um centro escuro com uma bolinha de gude. Algo que poderia ser considerado uma tela contemporânea. Na verdade, era uma pra ser uma foto tirada bem de perto de um ânus de uma mulher. Mas no fim a coisa não rolou e, conforme contou o próprio Tom Zé, Décio Pignatari, que estava na produção do disco, desenhou algo parecido, ampliou bastante, botou a bolinha de gude no meio e virou a capa do disco "Todos os Olhos".  

O disco de Beatriz Azevedo pode ser ouvido na íntegra na Apple Music: https://music.apple.com/br/album/alegria/730090331 . 

sábado, 20 de agosto de 2022

Bons tempos do Bons Tempos

Por Edmilson Siqueira 


Dia desses vi um post no Facebook, colocado pelo velho amigo Newtinho, de uma das músicas do DVD que o Grupo Bons Tempos gravou com o show em homenagem a Ari Barroso. Newtinho era o violão do grupo e fazia parte dos vocais. O DVD foi gravado no Teatro do Centro de Convivência Cultural de Campinas, em agosto de 2005, e eu estava na plateia (até apareço num passeio da câmera), ouvindo emocionado e aplaudindo o espetáculo que o grupo campineiro produziu tão bem sobre um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos.  


Além do DVD, que guardo com carinho e assisto de vez em quando, o show foi também para o CD, gravado ao vivo. E foi tudo coisa fina. Albino Pinheiro coordenou o show que estreou no Teatro João Caetano, no Rio e o roteiro ficou a cargo de ninguém menos que Sérgio Cabral, o jornalista e autor da melhor biografia sobre Ari Barroso. 

O Bons Tempos tinha Alfeu Júlio, Caio Piccolo, Chiquinho do Pandeiro e Elder, além do já citado Newtinho Gmurczyk. Marcaram época em Campinas e, com esse show, foram conhecidos em todo o Brasil. 


A parte musical foi muito bem cuidada, como era de se esperar de um grupo do nível do Bons Tempos. A direção foi entregue a Ricardo Matsuda. Goio Lima tocou saxofones e flauta transversal. Guilherme Ribeiro, piano e acordeom. O trombone ficou com Lucimar Perez. Pepe D'Elia foi o baterista. Rubinho Antunes se incumbiu do trompete e do fluguelhorn. E Matsuda ainda ficou com contrabaixo. O espetáculo teatral tinha ainda cenários grandiosos e um ator, Fábio Sampaio, representando Ari Barroso, passeando pelo palco como se estivesse conferindo a música da moçada. 


Segundo um texto assinado pelo grupo, na contracapa do CD, "...A gravação deste CD é a concretização de uma longa história de amor entre o Grupo Bons Tempos, Sérgio Cabral e a rica obra de Ari Barroso".  


A escolha do repertório foi difícil e fácil ao mesmo tempo. Difícil porque Ari tem muitas músicas que podem ser consideradas obras primas, mais do que caberiam num show ou num CD. E fácil porque qualquer música que se escolhesse seria muito bonita, sempre.  

Assim, o show se inicia com "Rio de Janeiro" e logo de cara a plateia aplaude em cena aberta, pela beleza da abertura do espetáculo. A segunda música já entra no lado romântico de Ari, e inicia a apresentação de alguns clássicos do repertório do compositor mineiro:  "Maria" parceria com Luís Peixoto, levada com maestria pelo grupo. 

Outro clássico, "Na Baixa do Sapateiro" vem a seguir. Declaração de amor (uma delas) que Ari faz à Bahia que o deslumbrou quando a conheceu e a ela dedicou muitas músicas. "Faixa de Cetim" acompanha esse deslumbramento, aqui mais ainda escancarado, porém sem perder a qualidade. 


"Terra Seca", uma espécie de samba-afro, denunciando os horrores da escravidão, fez muito sucesso à época. As duas faixas seguintes, dois grandes sucessos de Ari, "Pra Machucar Seu Coração" e "Morena Boca de Ouro", serviram para revelar mais ainda a qualidade dos músicos que acompanharam o grupo no show, pois são apenas instrumentais. 


O grupo volta na sétima faixa, uma parceria de Ari e Luís Peixoto: "Por Causa Dessa Cabocla", um solo vocal de Caco Piccoli, o "crooner" do grupo. "Folha Morta", um samba-canção que será ouvido ainda por alguns séculos, tal sua qualidade, mostra a excelente afinação do grupo, num ótimo arranjo vocal.  


A partir daí o espetáculo entra na sua parte final, com cinco sambas que eternizaram Ari como mestre da MPB definitivamente: "É Luxo Só" (com Luis Peixoto), "No Tabuleiro da Baiana", "Os Quindins de Iaiá", "Rancho dos Namorados" (com Vinícius de Moraes) e, por fim, a música escolhida para, num longínquo 7 de setembro, ser tocada em milhares de rádios dos Estados Unidos na mesma hora e que até hoje é uma espécie de hino informal do Brasil: "Aquarela do Brasil".  

Não encontrei o CD nem o DVD à venda nos bons sites do ramo, mas dá pra assistir a vários trechos do espetáculo no YouTube. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...