quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Na inconstância de Constância

 Por Ronaldo Faria


Peripécias de peças sem palco e passos sem som. Périplos à busca da perfeição e palavras vagas e vãs. E talvez o fim esteja a poucas horas. Com a hóstia na boca, Constância contrasta com o tempo que ferve do lado de fora. O padre, na verve, prega para os poucos fiéis que ainda decidem se a decisão de ter ido à missa foi boa ou ruim. “Na avenida ao menos tinha um tamborim”, pensa Serafim. Do seu lado, Constância espera que o barulho do samba não mate o arrulho dos pombos na capela de Nossa Senhora do Fervor.
-- Constância, queria ter ido o “Farofa e pó é tudo farinha”. Porra, Carnaval é só uma vez por ano! Missa tem todos os dias.
-- Quer falar baixo. Ou melhor, calar a boca. Está na hora da consagração.
-- Consagração é na Praça da Apoteose! Isso aqui é como se os componentes da bateria tivessem desistido de sair.
-- Irmãos, o sangue de Cristo! Amém – diz o padre contrito na sua fé e profissão.
-- Deu. Constância, estou indo. Te vejo em casa amanhã de manhã ou na quarta-feira.
-- Se você sair, não precisa nem ir pra casa!
-- Fui!
Serafim levanta do banco e sai resoluto pelo portal de madeiras entalhadas e pintadas de verniz. Abre os braços para o sol que queima o mundo sem piedade e grita: “Valeu, vida, eu estou aqui!”
Entra no carro, liga o motor, passa a primeira e acelera na rua vazia. O povo não está no Largo do Rosário e da Reza. Está todo mundo no bloco a fazer do tempo um pouco de vento nas ventas, a aspirar carreiras e seguir na esteira da música que sai do trio-elétrico.
-- Obrigado, vida, por me dar a chance de revoar feito pomba vagabunda de praça a comer restos esquecidos entre um pacote de migalhas de bolachas ou biscoitos.
Enquanto isso Constância beija a mão do padre que dá o seu anel de pedra preciosa para ser enxaguado de saliva e cuspe pelas ovelhas agarradas. As desgarradas há muito não comparecem no altar.
-- Como Serafim pode ter me trocado por um desfile de bloco? E tudo aquilo que vivemos? Que trocamos nas noites de açoites de corpos e nos risos de descobrir que o amanhecer depois surgiria para mais?
Na bunda da foliã a banda passa e abunda o cenário ao derredor com olhos de desejo e uma certeza onde o não é sempre não (nas graças daquilo que deve ser). A dor não faz parte do compasso. No passo das pessoas ressoa o tempo, imensidão de tristezas represadas, vastidão de carências castigadas, encontro de loucuras que dão razão ao maior desejo de ser feliz na cidade que fervilha de tesão e solidão do depois. Mas o que é o depois?
Serafim já passou há muito de Bagdá. Está perto da Faixa de Gaza. Falta só acreditar que nesta madrugada terá uma gozada. Senão, no cadafalso que se abre quando o mestre de bateria apita o final de tudo, o desejo será atropelado pela realidade. Na forja que cria e molda os próximos dias até daqui a um ano próximo de folia, será preciso crer que vale a pena persistir. Cambaleante, Serafim entra no carro, escapa de barreiras alcoólicas de policiais de saco cheio de terem que resguardar a sociedade que se encheu de saciedade e chega em casa. Estaciona o carro na garagem, desce e vai no controle remoto que seu corpo dá encontrar o quarto onde está Constância. A porta, porém, está fechada.
-- Constância, abre a porra da porta! Cheguei! Me perdoa!
O silêncio inclemente que vem detrás da porta é a certeza de que o máximo hoje será o sofá de dois lugares, ralo e velho, que tem na sala. Serafim, no espaço que sobra ao chegar vê que a sua mala está no chão, pronta para com ele zarpar. Devagar, relembra da igreja e da ameaça velada. Tudo bem: o combinado não é caro. “Mas quem sabe amanhã, aliás logo mais, o coração de Constância não mude de ideia?” Serafim deita no sofá, boceja e cai no sono profundo. Na rua o caminhão de lixo passa a catar os restos que cada um acha ser resto. Ainda no clima, um dos lixeiros canta o samba da Mangueira. Logo mais os jurados decidirão se a Verde e Rosa fará jus a mais um título.
Ps.: o título de eleitor do Serafim não estava na mala. Numa madrugada em que festejava a vitória do partido ele foi roubado junto com a carteira em vinte e quatro reais.
 
(Ao som de Cazas de Cazuza)

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Thomas Walbum Trio, from Denmark

Por Edmilson Siqueira


"Hi Ed, Greetings from Denmark." Depois dessa frase há uma assinatura que eu sei ser de Thomas Walbum. Trata-se de um autógrafo no CD "Boston", com o Thomas Walbum Trio.  
Claro que pouquíssima gente por aqui conhece esse artista. O CD, importado, eu comprei numa noite na casa do Kha Machado. Os dois devem ser amigos e Thomas veio para uma visita e acho que combinaram uma apresentação. Eu nem sou amigo do Kha, já escrevi sobre ele aqui e na revista Metrópole, onde tinha uma coluna. Acho que daí partiu o convite.
Foi uma noite agradável, com vinhos e algumas guloseimas (não me lembro se houve cobrança de ingresso), mas saí de lá com um CD do Thomas devidamente autografado.
É um CD de jazz puro, ou seja, piano, contrabaixo e bateria - a formação que mais aprecio em se tratando de jazz - e que, além da formação, trata o improviso em cada faixa com a devida seriedade tanto que a menor faixa passa dos cinco minutos e a maior passa dos dez. 
Thomas ao piano é acompanhado por Joe Hunts na bateria e John Lockwood no contrabaixo. Das sete músicas do disco, três são de Thomas. As gravações aconteceram em Boston, no dia primeiro de junho de 2001.
No encarte do CD fico sabendo que Thomas, dinamarquês, se graduou no Rhythmic Conservatory em Copenhague e também completou o grau de Master of Music no famoso Berklee College of Music do Conservatório de Boston, se formando em Jazz Performance. O período no Berklee culminou com a formação desse Thomas Walbum Trio e "Boston" foi o primeiro CD deles.  
E foi, digamos, uma estreia auspiciosa. Os três músicos se entendem perfeitamente bem e o resultado é uma sonoridade que não fica a dever os bons trios de jazz norte-americanos.
O disco começa com "Like Someone In Love" (Van Heusen e Burke), uma das favoritas de Thomas, como ele mesmo diz no encarte, nos comentários que faz sobre cada faixa. Dessa, diz o ainda o seguinte: A abertura alegra e arejada reflete o quanto nós gostamos de trabalhar juntos. A música praticamente seguiu sozinha e nossa performance acabou sendo uma versão simples, clássica e agradável desse que é um dos grandes standards do jazz". 
A segunda faixa é "Green Dolphin Street" (Kaper e Washington). Thomas fez algumas intervenções, como ele próprio assinala: "O que eu fiz aqui foi adicionar um groove lento e bluesy em sétima a essa melodia clássica cativante." 



O disco segue com "Into The Void", a primeira música de autoria de Thomas. Ele diz que a ideia surgiu numa manhã assim que chegou em Boston: "Eu estava me sentindo um pouco mal-humorado, perdido e inseguro, mas havia algo de excitação e expectativa sobre a desconhecida experiência que viria a seguir. A primeira parte é baseada nos princípios do intercâmbio modal, que ajuda a criar uma atmosfera de incertezas." 
"Love For Sale", o clássico de Cole Porter é a quarta faixa. Sobre o autor, Thomas fiz que ele sempre foi um de seus favoritos, "com seu infinito fluxo inventivo, de letras e melodias cheias de imaginação e um grande senso de humor." E é tentando, e conseguindo, imprimir essas qualidades na interpretação que o Trio nos apresenta esse clássico. 
Outro clássico, desta vez de George Gershwin - "Embaraceable You" - é a quinta faixa.  Thomas afirma que decidiu animar um pouco as coisas, "celebrando a maneira como um novo amor dá um salto no seu passo com uma versão de ritmo mais rápida". E ficou muito bom.  
"Octopus Blues" e "After Dark" são as duas últimas faixas, ambas de autoria de Thomas Walbum. A primeira, com um longo solo do contrabaixo e espaços também para o baterista mostrar suas qualidades, preenche a a expectativa de um blues bem definido. 
A segunda, conforme diz Thomas, "começa com um solo lindamente tocado por John Lockwood". E prossegue suave no piano e bateria. O tema, diz Thomas, surgiu in Copenhagen, "durante um daqueles momentos de tristeza à três da madrugada". E foi descoberto quando ele remexia suas velhas composições em Boston. 
Bom, se alguém ficou com vontade de ouvir, a única opção que encontrei foi em https://open.spotify.com/intl-pt/track/2R8iQSyBu6RBPrvmAGPvRV. Não encontrei o CD à venda.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Vai ou não vai?

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, a escola desce ou não desce?
-- Pra descer ela primeiro tem que subir!
O papo de maluco beleza entre Pafúncio e Honório parecia um solilóquio à porta do único mictório da avenida.
-- Como assim?
-- Meu cacete, você perguntou se desce e eu respondi que só desce se subir.
-- Isso eu já sei. Então mudo a pergunta. Sobe?
-- Aí depende do jurado.
O papo estava difícil. Pafúncio, preocupado com o legado do seu pai, que era o mestre de bateria no passado, pensava em seus batuqueiros que não podiam atravessar o samba-enredo. Já Honório, sambista de destaque com seu pandeiro, tinha prometido o título à Adalgisa, a porta-bandeira que dormia com ele todas as noites na cama que rangia volta e meia em Madureira.
-- Tudo bem, então vamos pra cima!
Na avenida que não era a principal como palco da festança, na verdade um espaço para se sonhar um dia estar sob os holofotes de emissoras e cliques de gringos que nunca viram uma passista gingar, o importante era desfilar com fé.
-- Barnabé, segura a onda da ala das baianas. Faz elas rodarem como se o amanhã nunca existisse. Se tiver de morrer do coração, que seja aqui! Nada de Samu e UPA!
-- Tá falado, seu Justiniano.
Justiniano, ainda não apresentado, é o patrono da escola.
-- Carlinhos da Carola, carnavalesco de purpurinas e paetês, quero ver agora se a tua ideia valeu os tantos milhões! Se a escola não subir, pode fugir da comunidade. Afinal, pra se morrer de bala perdida ou achada não tem idade!
Assim, quando a sirene dispara para iniciar o desfile, a escola põe o bloco na rua e mostra desde a comissão de frente, com céleres cavalos marinhos vestidos de plástico para mostrarem a derrocada dos mares (o enredo era “O fim da terra e dos mares na finitude dos deuses da África quando se encontraram com Orfeu”), a força do entredo estaria por vir. O primeiro carro alegórico – A apoteose de Netuno no boteco do Almir – foi um colosso. A sambar sobre a mesa principal, Alícia do Justiniano, mulher do patrono, rebolava sua última plástica a sorrir sem a boca sequer poder fechar. E seguiram alas, novos carros (“Polvo sem tentáculos na rede dos pescadores pecadores” e “Ressaca na seca do sertão”) e alegria que o povão fazia surgir a cantar no samba de Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza. No fim do desfile, em fila de agradecimento, integrantes da comunidade beijavam a mão de Justiniano garantindo a cesta básica de março próximo.
-- Agora é esperar o resultado. E Deus que se apiede do jurado que não der dez...
No dia do julgamento, não teve aquele que não visse na Acadêmicos Fabulosos do Ilê de Iaiá do Morro da Piedade Piedosa a campeã. Na quadra, Pafúncio estava preocupado agora era no próximo ano não cair; Honório caía de bêbado feliz porque garantia Adalgisa no barraco por mais um ano; Carlinhos da Carola esperava convite de outra agremiação com menos bala na agulha pra disparar; Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza esperavam o Zeca Pagodinho deles um dia poder lembrar da dupla. Barnabé amparava dona Cremilda, baiana mais antiga da escola e que estava estafada, quase em piripaque. Justiniano? Esse ninguém nem precisava falar. Apalpava, beijava e erguia a taça de campeão e via Alícia tentar fechar a boca esticada para a foto do jornal estadual não desfocar.
-- Porra, Alicia, tu não disse que o doutor era porreta? Chiquinho Dedo Trêmulo, meu segurança, amanhã tu vai levar um lero com o vagabundo... E pode passar o rodo.
Na quadra, a felicidade estava a rolar inconsequente e real. O importante era escancarar o fim da espera, terminar os barris de chope e saber que Carnaval é só um dia pra se viver.

(Em homenagem a Beth Carvalho e todos sambistas do País)

sábado, 9 de novembro de 2024

Mosquito proscrito ao som de Leny Andrade e César Camargo

 Por Ronaldo Faria


Um mosquito chato e pequeno, com tanta coisa a fazer na vida vem logo encher o saco do pseudo cronista Felisberto a tentar escrever.
- Puta que te pariu, vou te matar, lazarento!
-- Remédio, remédio, que tédio!
Felisberto era esse ser a descrer da loucura que é viver.
-- Pra quê essa merda se no fim dá tudo em bosta?
O mosquito esquisito buscava o copo de cerveja insistentemente.
-- Será esse morfético, ser insignificante, não frequentou o AA mosquital?
Sem saber se o tinha engolido ou não num gole a mais ou se o ventilador a mil o tinha impedido de continuar a voar, Felisberto por fim se acalma.
-- Agora vou poder pensar em Lavínia.
Recoloca o papel na máquina, vê se o rolo de tinta, já meio gasto, aguentará até o fim da proeza e volta a datilografar.
-- E agora, digo que a amo ou que a venero? Venerar parece coisa venérea. Melhor não. A amo. É isso! Amo-te, por começar parágrafo.
Ser solitário, catártico, prosaico, metamórfico, sabe-se lá mais o que, ele decide fazer um poema que pareça ode à elegia apaixonada.
“Daqui, nessa noite inesperada, sangrada, espero minha amada.
Será ela coisa forjada, arrebatada, enamorada, ávida? Saber-se-á.
Sei apenas que ela é noturna e soturna, taciturna...”
-- Puta que me pariu, a porra do mosquito voltou?
No meio de um pensamento, Felisberto atenta que o pequeno ser retoma seu voar.
-- Como esse infeliz ainda está aqui?
Sem saber ler pensamento ou voz de um ser humano, o ser de asas pequenas e assimétricas permanece em verve a perturbar o coitado do escritor atemporal.
-- Vai tomar no cu! Agora é guerra!
Colérico, Felisberto levanta da cadeira de madeira maciça e corre até a cozinha onde guardava um inseticida que trazia escrito “cuidado na sua utilização”.
-- Se prepare para morrer, famigerado...
Enlouquecido, despeja jatos por todo o lugar E inala tudo ao redor com voracidade de quem quer o tempo parar. Para ele, agora não tem tempo ou lugar.
-- Morre, desgraçado, morre!
Após o frasco secar, a casa parece um campo de batalha biológica entre a lógica e o esvanecer. Tonto, sem conseguir sequer dizer a quem queria escrever, Felisberto cai no chão. Intoxicado, com o coração a querer parar, vê o ridículo inseto, mosquito em presto, voar até o copo de cerveja quente. Interligados na cena, ambos morreram em poucos minutos. Se Felisberto tivesse lido a forma de aplicação teria visto que era preciso deixar o ar circular. Se o mosquito tivesse lido o rótulo da cerveja teria sabido que o produto não era recomendado a insetos e congêneres. O enterro dos dois, cadavérico e letal, teve hora e local iguais. E ninguém, de asas ou pernas compareceu...Mas, no horário marcado, as doses obrigatórias de remédio foram cumpridas.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Chuva, vento, Leny e César Camargo

 Por Ronaldo Faria


A chuva se alvoroça do lado de fora para cair. Um vento de brisa tresloucada com cheiro d’água balança roupas no varal e derruba o que vê pela frente. Em quilômetro insanos de  correr pelo céu, a noite se prepara para apagar o que o dia ainda acreditava ser. Um ou outro transeunte transita veloz para fugir das gotas que caem fortes e perenes. Aos poucos o lugar vira um encher de poças e pés molhados a correrem no asfalto escondido por rios de água urbana. Do alto, José e Maria olham para tudo como não fosse com eles. Ambos, ou os dois, como diria o desavisado que visse a cena, sequer levantam da cama. Nus, mumificados em um amor ininterrupto, abrupto, paulatino em gestos e versos, preferem esperar a hecatombe passar. “Tudo passa, ela também passará”.
A sexta-feira é de Carnaval, festa carnal por essência naquilo que ao desejo se faz essencial. Mas, para o casal bíblico, fálico, tragicômico na sua epopeia, a festa de Momo já tem décadas de existência e nunca acabou. Quarta-feira de cinzas? No calendário deles inexiste. Todos os dias são dias de vestir fantasias, beber nostalgias, tragar doses de alegorias em saliva e paixão. No bloco que desfilam, não há bateria que peça para parar, foliões que desistam de desfilar seja onde for, no asfalto ou no mar. Para eles, a piedade não vem de bênçãos mundanas, profanas fantasias, dionisíacas orgias. A comissão de frente, que afronta jurados e notas, loucuras e artroses, passos e vozes, não precisa de coreografia. Basta um sorriso, uma fina brisa que bordeia o derredor e um antídoto pra dor: o juntar corpos, saciar cópulas, sorrir juntos num sorriso que os olhos veem.
E assim, como botões de rosa que decoram o fim do decoro de corpos, continuam a se tocar e vislumbrar que um dia, em inclemente sangria, verão seus copos entornarem emoções nas fálicas e inertes unções do querer ser feliz. Por isso não se importam com a chuva que inunda e destrói, com o vendaval que derruba e corrói, com a previsão que se diz factível e atroz. No quarto, catacumba que macumba nenhuma desfaz, se fazem únicos e invisíveis ao mundo. Na rua, após o dilúvio sobrenatural, que chamam de menino ou menina espanhóis, alguns voltam a sambar em som de atabaques e bumbos molhados e desafinados. Num beijo molhado e escandalizado, como diria o compositor, Maria e José, José e Maria, continuam sua estrada de ribalta e espera. Nos dois, descansa a fera...

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Nas odes das ondas

 Por Ronaldo Faria


A onda bate quieta na areia que requenta no mormaço da noite que veio depois de seus 40 e tantos graus que horas antes a cidade vivera. No balaústre que divide o asfalto do fato, Ana analisa o que seria se, no passado, sua mãe tivesse optado por chamá-la Luiza: “teria sido, ao menos, homenageada pelo Tom Jobim.” Mas, qual, lavrada a certidão, ficou só Ana. Assim, nome pequeno de uma sílaba agregada quase em si. Sonora denominação, sem a sonoridade de um nome composto. Somente, solene, Ana. Porém, pra onda que termina de chegar e a espuma redundante e junta que cabe numa terrina que embriagará o pelotão de apaixonados que caminhará a ouvir do som que quebra nas rochas, isso pouco importava. Fosse ela Ana ou Quitéria, Maria ou Ofélia, Tânia ou Amélia, tudo ficaria igual. Aos oceanos basta ser um caminho de rios ou encontro de águas. Não uma aquática lamúria noturna. E assim, assimétrico em sua vastidão, o mar não vê que Ana deixa os olhos marejar de lágrimas que igual a ele têm sal.
Do alto dos prédios, logo abaixo das nuvens raras, televisões brilham em 4K e HD. O que existir agora tem que existir em multivisão que nunca seria quadro assinado de Salvador Dali. Portanto, Ana decide ir buscar seu rumo. Longe de Roma, deixa que o vento a leve. Na avenida que flutua na imaginação e se prende ao asfalto graças à lei da gravidade, segue até sua casa. E lá, no desaconchego do lar, dorme nua e lívida. Sem não antes se questionar: “Por que cargas d’água tinha que ser apenas Ana na hora de registrar?” Da rua, um bêbado regurgita seu próprio despudor.

 (Ao som de Jorge Vercilo e Tom Jobim)

domingo, 3 de novembro de 2024

The Dells e Burt Bacharach: uma união perfeita

Por Edmilson Siqueira


Juntar um conjunto vocal afinadíssimo, viciado no rhythm and blues, com arranjos excepcionais e um repertório de maravilhosas canções interpretadas com talento e ineditismo só pode resultar num disco sensacional. 
Pois foi isso que aconteceu quando o produtor e arranjador Charles Stepney juntou o grupo The Dells e a obra musical de Burt Bacharach com as letras de Hal David. E com um detalhe: só músicas que houvessem sido gravadas por Dionne Warwicke. 
A formação inicial do grupo remonta a 1953, entre amigos do ensino médio, e o nome escolhido foi então El-Rays. Eles lançaram sua primeira gravação em 1954 e dois anos depois tiveram seu primeiro hit de R&B com "Oh What a Night". Depois de se separarem devido a um acidente de carro quase fatal em 1958, a banda se reformou em 1960 com Funches sendo substituído por Johnny Carter. Essa formação permaneceu junta até a morte de Carter em 2009. Em 2004, os Dells foram introduzidos no Hall da Fama do Rock and Roll e no Hall da Fama do Grupo Vocal. O grupo se apresentou até que uma doença forçou o vocalista de longa data Marvin Junior e o vocalista baixo Chuck Barksdale a se aposentarem, encerrando a carreira de 60 anos do grupo. 
Nesses 60 anos de estrada, foram 28 álbuns gravados até 2008, muitas coletâneas e vários singles que chegaram a frequentar as paradas de sucesso.

 
O álbum em questão foi assim apresentado pela casa de discos Dustin Groove, de Chicago: "A Chess Records assume a música de Burt Bacharach, com resultados surpreendentes – graças aos vocais profundos do The Dells e à produção impecável do lendário Charles Stepney. O álbum é um tremendo encontro de mentes, já que o The Dells realmente transforma as composições brilhantes de Bacharach – dando a elas profundidade e sentimento de maneiras bem diferentes de quaisquer outras interpretações das músicas. Os arranjos de Stepney também são incríveis – a par de seu famoso trabalho para Minnie Riperton, Rotary Connection e Ramsey Lewis – tão majestosos quanto Burt Bacharach poderia ter desejado, mas com uma abordagem muito diferente e uma leve corrente de funk. A instrumentação é de Stepney, Phil Upchurch e membros do The Pharaohs – além de uma seção de cordas completa também. Outro clássico do soul barroco dos dias de glória da cena soul de Chicago!" 
Como se vê, não é pouca coisa. E basta ouvir os primeiros acordes e a vocalização inicial de "I'll Never Fall in Love Again", faixa de abertura do disco, para perceber que o trabalho e coisa de gente grande. Todas as dez faixas seguintes frequentaram as vitrolas de muita gente durante anos, na voz da então mulher de Bacharach, Dione Warwicke. Só que a nova roupagem que os Dells e Stepney deu a elas, fez com que se sentisse estar ouvindo algo novo e muito bom também. 
As dez faixas seguintes são: ""Walk On By"; This Guy's In Love With You"; "Raindrops Keep Fallin' On My Head"; "I Just Don'T Know What To Do With Myself"; "Close To You"; Trains And  Boats And Planes"; "A House Is Not A Home"; "I Say A Little Prayer For You";  "Alfie" e "Wives And Lovers".Há alguns exemplares do disco em vinil para venda no Mercado Livre. Não encontrei CD. O que eu tenho não é oficial, mandei copiar do LP que tinha. Mas dá para ouvi-lo inteiro no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=oV2WcMdCoE8&list=PLR-S3EnQixcJtQxbqo8BCdteNWPMx33ZD
"The Dells sing Dionne Warwickes' Greatest Hits" é um disco gravado em 1972 em Chicago e que, até hoje, é ouvido por aí em estações de rádio especializadas em rhythm and blues e soul music. O grupo não existe mais, mas sua música - há várias outras gravações memoráveis deles - parece ser eterna, pois alia o bom gosto do repertório à qualidade dos vocais e dos arranjos.


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Zeus

Por Ronaldo Faria


Zeus! Isso é nome de colocar numa criança? Fazê-la desde o início ser um deus? Obrigar o pobre pequeno a dar ordens em todos os outros deuses da mitologia desde o primeiro choro e a primogênita mamada? Pra puta que pariu os pais que isso determinaram...
-- Zeus, e aí, vamos pra balada?
-- Vai ter birita?
-- Claro que vai!
-- Então estou nessa...
Zeus, brasileiro da gema, era desse jeito: ser multiforme em constante deformidade. Para ele, tanto valia o agora ser de grandiosidade de salões performáticos ou feito às vielas mais combalidas e diminutas. Se houvesse o que beber e viver, seu endereço estava ali. Todos pegaram o rumo, seguiram o prumo e colocaram a bússola no destino taciturno. Tudo, no fim, sabiam, vira fim de turno.
-- Que horas são?
-- Sei lá. Como ainda tem estrela no céu, deve ser tarde pra ser dia e cedo pra ser madrugada.
-- Bem pensado.
-- Se é escuro, vamos seguir o desejo. Afinal, um dia ele não existirá. Num caixão fechado e colocado debaixo de tudo, só a certeza de que se fez, fez. Se não fez, não mais fará!
Nas calçadas e esquinas, casas e janelas que rodeavam os amigos na busca de viver, olhares e suores, mãos e respirar sôfrego se misturavam com as gargalhadas do pequeno e grande exército de retintos e brancos leões.
-- Será que a Carolina vai estar lá?
-- Não sei. Mas deve estar. Ela não perde festa que tenha erva e cerveja.
Esse era o amor maior de Zeus: Carolina, Carol para uns e Lina pra outros mais. Mulher de cabelos que voavam negros entre a pela branca e os olhos que misturavam verdes e azuis todos límpidos, corpo que nem mesmo Michelangelo saberia esculpir, boca de lábios vermelhos em carne e prazer, era a musa que nem mesmo o próprio Zeus terá encontrado em Atenas ou Tróia. Carolina, vaticínio que o Vaticano assinaria como determinante e digno de alfarrábios bíblicos, era sua razão de existir.
-- Zeus, você é vidrado nessa mina...
-- Vidrado? Não. Vidro quebra. E ela é muito mais.
Por fim o grupo chega ao folguedo na pequena casa que se escondia numa rua pequena, pacata, estrábica à loucura da cidade, impávida no seu nenhum colosso.
-- Porra, encheu pra caralho! Como essa moçada toda soube do que ia rolar aqui?
Para Zeus, pouco importava. O importante era cruzar com Carolina. E assim se foi, a esbarrar com loucos desvairados, transviados, alucinados, calcinados de tanto queimar, bastardos e futuros contadores de histórias que se vale relembrar. E assim, de repente, de frente a frente, se dá com a amada. Sob a luz das velas que enlevam a cena, a agarra de presto. A beija com carinho e saciez como se logo mais não houvesse resto. E se deixam partir ao quintal que respira brisa e maresia ao luar que afugenta o tempo de passar. Neste momento, sem pecado, lamento ou perdão, se entregam em desvario e servidão. Dentro da casa, cálices se veem atirados no chão ao escaparem de mãos trêmulas e incertas. Alheio a tudo, o universo, em verso poético, pede que o mundo pare de girar.
 
(A ouvir Caetano Veloso em seus/meus Anos 80) 

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Caetano e Londres

 Por Ronaldo Faria


-- No more, Along...
A voz de José saiu tímida, frígida, pensada em si mesmo, num sussurro rouco e calado. De certo, decerto, nunca mais falaria com Marília, que fez questão de dizer que não conseguia com ele conversar. Se assim fosse, fazer o quê? Se jogar na fossa de emoções que toda a fossa mental traz? Esquecer que Londres, Montevidéu e o mundo próximo e próprio não estão ali do lado? Aliado de seus versos, transfixados na glote que teima em respirar, ele prefere entrar num pub e ver o tempo passar até o sino que pede a saída de todos tocar.
-- Get me a beer. In fact, several.
A tarde lá fora caía mais londrina do que nunca: lúgubre, com uma névoa em penumbra cinza, uma chuva de poucos pingos, dessa que vem só para compor quadro de pintor fractal. Na rua, uns e outros, umas e outras, passavam rápido em direção ao metrô mais próximo. Um ou outro ônibus dispara seus gases de metano na atmosfera. As cabines de telefone que resistem ao tempo sequer serviam de abrigo para os desavisados da rotina londrina. “Sorte - dizia um - tem a rainha, agora embalsamada e quentinha.”
José, perdido entre oceanos e dramas, volátil nas chaminés que misturam fuligem e saudades, toma outra caneca e pede a próxima.
-- Waiter, don't forget me. I'm here to go staggering around.
O gringo, na verdade dono da terra e da ilha desde há séculos atrás, lhe atende solícito. Talvez fosse irlandês ou escocês e só quisesse acompanhar o delírio do exílio de um coitado que veio fugitivo de outro mundo.
-- Just be careful not to fall into the street. The dogs here don't just urinate on their faces.
José ri e agradece a dica.
-- I will remember this.
Mas, como estará Marília? Algum Dirceu estaria a amá-la? Ter-se-ia largado às loucuras outra vez? Terá resistido aos conluios que o desejo e a sorte trazem e dão? As cartas que lutam contra correntezas e incertezas dos Correios certamente não responderão. Afinal, ele sequer tem um lugar certo onde colocar o corpo para dormir. Vive de casa em casa, quarto em quarto, subsolo em subsolo a se prostrar e ter seus pesadelos e esmeros na busca de si. Na road que não para de rodar em movimento lá fora, fórceps de paulatinas futuras anginas e desejos de que logo depois da porta surgisse um sertão a queimar de sol e seu gado a brotar modorrento do chão. Senão, uma praia com areia branca e branda, com seus coqueirais a deixarem os corpos quentes a descobrirem que o amor vai terminar numa rede ou no chão.
-- It's sad to know that our desire will never be full and we will have to survive on an ultimate dream...
O garçom ouve José, faz um sinal de OK e pergunta se ele quer outra cerveja. Daqui a dez minutos, na forma mais britânica de expulsar as pessoas do lugar, irá acontecer o fechamento do bar.
-- A saideira!
Falou em português para crer que os continentes pudessem num momento se juntar.
-- What did you say?
José, lembrando então que ali não era pub de português, pede desculpas. Diz que se fez marujo em terras distantes.
-- I'm sorry. I just wanted the last one. I promise to drink quickly.
Promessa feita, promessa cumprida. Saiu no horário marcado e determinado. Na rua, a se esconder do frio que qualquer sertanejo viraria picolé de umbu, seguiu destino abaixo. Do outro lado da via, uma moça da vida, seja essa vida aquela que fosse ter que ser, lhe dá um tchau. Feliz, vê nela Marília. Atravessa a rua a sorrir.
-- What's your name?
-- Whoever you want it to be.
-- Marília, eu estou aqui...
Amaram-se num hotel barato, se entregaram e se entrelaçaram, se fizeram um só corpo, integral e volátil num nó. Pela janela o sol pálido e matinal os cobre de luz e realidade. Mas, no abrir da porta a ranger o dono da pensão pede seus cobres de antemão;.
-- The time is over. Time to go out and find your way!

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Stanley Jordan, um clássico

Por Edmilson Siqueira



Stanley Jordan, aos 63 anos, é considerado um dos melhores e mais completos guitarristas do mundo. É tão bom na guitarra que seu lado pianístico nem sempre é citado, mas ele começou na música aos seis anos de idade aprendendo justamente piano. Porém, aos onze anos, iniciou os estudos de guitarra, seu principal instrumento até hoje. Mais tarde, começou a tocar em grupos de rock e soul. Em 1976, portanto aos 16 anos, ganhou um prêmio no Reno Jazz Festival de Nevada.
E andou por vários festivais de jazz ao mesmo tempo em que estudava teoria musical e composição da Universidade de Princeton, se formando por lá. Mas, mesmo tempo diploma de músico e podendo partir para uma carreira acadêmica mais sólida, preferiu continuar na rua, onde sua incrível técnica chamou atenção de ninguém menos que o executivo Bruce Lundvall, então no selo Elektra Music. Lundvall era, antes, da Blue Note. O convite a Jordan foi recusado - ele achava cedo demais para gravar um disco. 
Um ano e meio depois, Lundvall foi convidado para reativar o lendário selo Blue Note e convidou novamente Jordan para gravar. E desta vez ele aceitou. O disco "Magic Touch" que saiu dessa união, foi o primeiro da nova fase da Blue Note e chegou ao topo das paradas de jazz, tendo vendido mais de 500 mil cópias, sendo aclamado nos Estados Unidos e na Europa.
Foi uma estreia impressionante e, a partir daí, Stanley se consagrou definitivamente, exibindo sua técnica diferenciada de tocar guitarra - ele queria levar a complexidade sonora do piano para a guitarra e, por isso, criou o o que ele chamou de "técnica do toque", que consiste em tocar as cordas pressionando-as rapidamente contra a madeira do cabo da guitarra, tanto com a mão direita como com a esquerda. Claro que precisa ser um gênio para tocar assim e ele toca com a maior tranquilidade. 
O disco que estou ouvindo de Stanley Jordan é um que une o gosto pela arte de tocar guitarra com prazer de tocar à frente de um público, pois foi gravado ao vivo e ele mesmo já disse que nessas horas ele se sente mais à vontade ainda para exibir suas qualidades.


 
Trata-se do "Stanley Jordan Live in New York", gravado em 1989 no Manhattann Center e lançado nove anos depois justamente para celebrar os 60 anos da gravadora Blue Note. E é o próprio Bruce Lundvall que assina o texto do encarte do CD, onde, entre outras coisas, assinala: "Esse concerto captura Stanley no auge da forma. Considere como um artista pode remodelar padrões com seu solo próprio e virtuoso, transformando as músicas de Coltrane e reconstruindo uma canção pop de Rod Temperton com suas próprias características. Stanley Jordan é realmente um artista singular."
Sobre o disco, que era para ser uma gravação em vídeo, a critica especializada disse o seguinte: "Sua justa seção rítmica — com Jeff "Tain" Watts na bateria, Kenny Kirkland no piano e Charnett Moffett no baixo — conduz a complexa e comovente execução de guitarra de Jordan através das faixas acústicas de destaque como "Impressions" e "Cousin Mary", ambas de John Coltrane. Mas os destaques do show são as duas peças solo de Jordan, o blues "Willow Weep for Me" e o clássico "Over the Rainbow", onde ele se apresenta com uma liberdade e virtuosidade estimulantes. Jordan resiste à tentação de deslizar para o então onipresente som de jazz suave, tornando este um lançamento atemporal."
Ou seja, ele pode ser ouvido a qualquer tempo que sempre levará prazer aos ouvidos mais exigentes. 
Além das quatro já citadas, as seguintes músicas compõem o disco: "Autumn Leaves" (Jacques Andre M. Prevert, John H. Mercer e Joseph Kozma); "For You" (Charnett Moffett); "Flying Home" (Stanley Jordan); "Still Got The Blues" (Stanley Jordan) e "The Lady In My Life" (Rod Temperton). 
Ah, os próximos discos do grande guitarrista terão música brasileira. Ele tem andado por aqui (aliás, já esteve muitas vezes no Brasil, desde 1985), diz que sua música foi muito influenciada pelos ritmos brasileiros e os próximos álbuns da carreira, inclusive, têm participações especiais de Milton Nascimento e Jorge Ben Jor. Quem venham logo!
O CD está à venda no Mercado Livre e pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=UooBC2Ti3Cs&list=PLMYJI0hHMCKIjS0V3hl04a6UkwqV-Lixg

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Festejo no mesmo lugar

 Por Ronaldo Faria

 


Nesse tempo que nos resta no meio da fresta, fazer a festa. Eternizar felicidades no meio da tristeza. Vaguear e vagar nas estradas do sertão, cheias de pó e luares proscritos nas vozes que saem com o acordeão que fala pelo fole o mesmo que o peão traz no alforje para o dono de tudo, senão. No mundo, nessa brincadeira de eira e beira, feira e frieira, o homem desgarrado sai a achar que a próxima légua lhe trará clarão. Qual bobo, desses que a gente pede pra não chegar no alpendre do sertão e afastar feito cortejo de leprosos a tocar o sino ao longe, mal sabe que nada sabe. Com suas bandeiras e desejos os leprosos ao menos pedem, num só ensejo, pouco de comida sem mostrar sua dor. Com distância certa, recebem o louvor e seguem, sem partes do corpo e feridas à mostra, sua sina. Do alto, o tal Senhor os abençoa em torpor.
Nesse destempero que nem o melhor tempero traduz, a luz chega frígida e fraca entre nuvens que mentem que vão se fazer em chover. A seca continuará altaneira. Os pequenos santos que recebem cocô de morcegos na cabeça na igrejinha perdida no meio do nada apenas sabem que nalgum dia irão valer cada centavo atávico que a lida se profetiza. Como chinelos trocados na noite vendida são soluço que Pafúncio das tiras antigas nunca conceberia. Mas, rima desmedida, folha renascida do tronco que a realidade carcomida dá, tudo segue na pantomima que o palco sem atores e o teatro sem plateia dão. Patética, a frenética alvorada se faz ligeira. Bordadeiras costuram seus mantos e buscam onde perderam as agulhas no meio do palheiro ou do pardieiro. Sonhadora, a infausta e linda senhora, jovem ademais, sabe que a vida foge para além dos arames cravados entre pausa e morte. A ver a lua crescente e sentir o cheiro do cipreste, se regozija de ainda poder sonhar.
 
(Ao Renato Teixeira)

sábado, 26 de outubro de 2024

Na validade

 Por Ronaldo Faria


-- Mesmo a alma não sendo pequena, acho que vale a pena.
A frase de Alcebíades soou profética, hermética, digna de uma hemeroteca. Dessas que a tinta da impressora não se perdeu em vão. Em desvão, a ouvir Paulinho Pedra Azul, mandar voar, cantar, sofrer e sobreviver, se entrega às falácias que mostram que a vida corrói. A relembrar a sordidez que a vida dá quando os anos destrói, sabe apenas que os pássaros sem penas nunca poderão revoar.
-- Daqui, desta distância equânime e tântrica do bem-querer, vale-me apenas escrever. E valha-me Deus se algo mais quiser viver. Para tal ser, hoje já é muito sobreviver.
Entre os poucos dentes, ardentes de tanto querer e perder, Alcebíades vai a beber a si próprio no imbróglio de sobreviver. E transita nos pesadelos e desmazelos que cada noite traz entre temor e azia. Onde ele nunca saberá onde estar, com quem forjará fugas, rusgas, atropelos, trôpegos zelos, infaustos termos, desmazelos, singelos e frugais jograis. Mero peão num jogo de xadrez que o xeque-mate há décadas já matou o coração que sangra sem parar esperando apenas a hora de estagnar, se desmazela na inglória paz.
 
II
 
-- Mais outra?
-- Fazer o quê, Livânio? Seria leviano abrir mão do desejo de um copo vazio a pedir para descer e nos fazer encontrar.
O dedo em riste, como um chiste, chama o garçom.
-- Meu irmão, traz pra nós aquela que você estava guardando pra levar embora.
Num jardim que qualquer fantasia criaria, a ternura de um bem-te-vi voa à busca da certeza de que não há para onde voltar. O tempo expropriou emoções, forjou sensações, aquiesceu sordidez. Nele mesmo não se fez. Brincou de ser extemporâneo, caminhou em ruas escuras, lambeu corpos em turras, regozijou-se de ainda crer. Foi na incongruente e inglória glória de uma roupa a voar no varal que se esconde da tempestade que quer chegar.
-- Por que perdemos a noção de antemão da pouca lucidez que ainda nos resta? Pra que viramos festa de nós mesmos, embriagados de folguedos que sabemos no amanhã serão algo a profanar, xingar e execrar?
-- Boa pergunta, Livânio. Essa eu deixo sem resposta posta. Nem tudo nesse mundo saberemos profetizar. Vivamos o momento somente. Quem sabe será este nosso derradeiro tormento?
Na rua que vira avenida de repente a noite já se faz, sobremaneira, onde casais se misturam em beijos e toques, vilipêndios mil. Se fazem boiadeiro a levar as reses que desconhecem seu inexistente céu, viram luz de lampião no querosene a queimar. No lugar, certamente, em sangue a cair no chão de cimento branco, irão se largar. Afinal, como papagaio de papel, não conseguirão sequer voar.
-- Sabe, Livânio, seria bom se pudéssemos o tempo voltar. Enlouquecer e não prever o futuro que o presente nos trouxe. Que conseguíssemos reescrever erros, normatizar desesperos, somatizar ensejos, esperar e implorar aos deuses inexistentes que beijos sob escadas nunca deixem de lamber lábios e se fazer nunca mais.
-- Aí você está querendo demais. Menos, menos. Fique aqui na mesa, pois dependo de você pra rachar essa conta que se antevê logo mais.
Nos devaneios de Livânio, o estrupício de um ser solitário, errante, segregado de si. Mas, naquilo que o pífio vazio traz, o garçom, amigo, chefia ou irmão, diz que o bar vai fechar. Uma água corre entre os pés e a conta brota no lugar. Os amigos se despedem e, apiedados de si mesmos, seguem seus rumos no prumo de um Uber. Do alto, a lua pede tempo ao sol para não desdizer o que o poeta infante pensou escrever.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Sons e coisas

 Por Ronaldo Faria


No som rola lamento astral. Mas lá fora voa um vento anormal ou sepulcral? Juvêncio Silva, por quem entre os dentes as palavras silvam desde a perda de todos da frente, não sabia responder. O sorver de emoções e unções era pouco para tão pouca e louca solidão. Plácido, como se fosse parte de um hino nacional, irracional, caminhava na avenida onde a aplicação de formicida matou todos os ratos. Agora limpa, não fossem os papéis e restos de comida que os transeuntes atiram das janelas dos prédios e dos ônibus, do pisar in loco no local, poderia dizer que estava no céu. Mas qual... Era apenas um esperma esperto e rápido natimorto que, depois de nove meses, descobriu que se deu mal.
-- Porra, José, minha mãe tinha que dar logo para aquele pé de chulé?
-- Sei lá, Juvêncio, amor e tesão não têm explicação.
Mas, absorto e trôpego, seguia a pé até o ponto de ônibus mais perto. Ao derredor, como fosse uma orquestra em mi menor, ouvia um gato miar em desespero. “Espero que não queiram pegar seu couro pra tamborim.” Mas, o gato, que tem sete vidas, que cuide das outras seis, elucubrou. A sua única há muito já tinha se esvaído numa dessas enchentes que o Rio de Janeiro vez ou outra vê. “Se não comeu o rato da leptospirose, que se foda esse incompetente.”
Ao chegar o ônibus, faz sinal e sobe ligeiro. Passa o cartão e senta num banco livre. Foi parar do lado de uma mulher que devia ter 30 ou 40 anos. Mas era linda, inverossímil, perturbadora. De quem a idade era eterna puberdade. Ou a cana que lhe foi dada pelo Manoel do bar estava adulterada de etanol. Não. Era linda! Todos os homens da condução a olhavam com olhares de desejo, desses que traduzem a servidão. “Para ela e por ela seria o escravo que a Lei Áurea não se fez em realidade até este rincão.”
Mas a donzela, na formosura que a faz mais do que a virgem em pedestal mais singela, está absorta, solta nos seus devaneios. Nada vê. As ruas, com seus trajetos e pórticos, esquinas e asfaltos negros e quentes, janelas fechadas e meninos delinquentes, nem sequer passam na velocidade do fumacê que sai do escapamento que polui o mundo que foge entre quilômetros e rodas carecas. Para ela, a paralela realidade é mera inverdade. Sequer há ou existe saudade. Logo o ponto findo chegará e irá descer. Sublime, senhora dos próprios portais, dará adeus aos mortais que a desejam ademais. E ficará, em cada um, como delírio passageiro, talvez fruto de um gole desatento, de um nariz a cheirar violento, de um rebento que nasce da erva queimada antes da madrugada. Tanto faz.  Que o fim da finitude declarada saiba dormir em paz quando o motorista, suado e catatônico, afônico e cansado, proferir que é o ponto final. Dentro do coletivo restarão apenas ilusões e as babas que os bois-humanos deixaram verter em vão.
 
(A ouvir o segundo CD Ouro Negro, do Maestro Moacir Santos)

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Reencontro em dois ainda com o Maestro Moacir Santos

 Por Ronaldo Faria

 


-- Jussara é você?
-- Claro. O tempo passou tanto que não dá nem pra me reconhecer?
-- Não é isso. É que você, eu, nós mudamos. Aos trancos e barrancos.
-- Sei não. Engordei muito? Os preenchimentos se perderam?
-- O quê? Que preencher é esse? Pra mim só é o do imposto de renda.
-- Você parou no tempo? É a ressignificação do rosto.
-- É, com certeza. Afinal, o paraíso, mesmo em seus percalços, é onde estamos felizes...
-- É harmonização facial.
-- Claro. O importante é estar de acordo com os contornos que o desejo nos dá.
-- Gostou?
-- Quem sou eu pra gostar? Pouco ou nada conheço desse troço. E, sem troça, não sou expert em beleza.
-- Eu sei. Você é geneticamente limitado externamente, mas a mente pode ir além e ver o belo do outro como se fosse você o mais belo.
-- Infelizmente eu acho que faltei nessa aula de psicologia e autoestima próprias.
-- Tudo bem.
-- Mas e o compadre Edivaldo? Vai bem?
-- Larguei daquele traste. Resolvi ser um novo alguém.
-- Sei. Mas o que ele fez?
-- Nada.
-- Nada e você largou quase 40 anos de casada?
-- Foi. Achei que ele não me acompanhava mais no rejuvenescimento interior e exterior. Hoje eu sou como uma flor, a rebrotar.
-- Como assim?
-- Eu estou em contagem regressiva. Não faço mais anos há algum tempo. Volto dois ou três anos a cada semestre.
-- Sei. Entendi. Então, com quantos anos você está agora?
-- Acho que 28 ou 29. Parei de contar quando cheguei nos trinta.
-- Certo.
-- Quer dizer, não queria dizer, mas vou falar: completei 18 ontem.
-- Sério?
-- Seríssimo. Virei menina-moça!
-- Sei. Que bom.
-- E você?
-- Eu, pela certidão de nascimento, continuo com 72.
-- Nossa, tem idade para ser meu avô!
-- É. Fazer o quê? Sou das antigas, ainda sigo o calendário gregoriano.
-- Se eu fosse você, e vai aqui um conselho de amiga na flor da juventude, entrava na faca e remoçava uns trinta ou quarenta anos. Você ainda pode dar uma canja... É só se abrir para a vida.
-- Não, obrigado. Meu plano não cobre e eu vivo de aposentadoria do INSS.
-- Tadinho... Valeu pelo papo, mas eu tenho que ir. O Paulão, o salva-vidas do Posto 8, tem que me dar aulas de respiração boca na boca.
-- Claro. Foi bom te reencontrar.
-- Claro que foi. Mas não se anime. Não sou dessas sugar baby. Não preciso de daddy mais. Meu divórcio me deu independência total.
-- Parabéns. Valeu.
-- Fui. Beijinhos pra você!
Enquanto Jussara, na verdade agora Juju, se afastava o senhor septuagenário que o tempo procrastinou olha para o calçadão e revê, num delírio de sol a 48 graus, o sorveteiro oferecer Chicabon.
-- Me vê um e outro pra bombonzinho que se foi. Mas eu só tenho dez cruzeiros...

(Em homenagem a Nicole Kidman)

domingo, 20 de outubro de 2024

Diana Krall again

Por Edmilson Siqueira

 

Já escrevi sobre alguns CDs de Diana Krall aqui e, se hoje repito a dose, é porque a moça, que já está beirando os sessenta, continua ótima. Foi assim com os dois últimos lançamentos dela, "Love Is Here to Stay" (2018) e "This Dream of You " (2020). E o que me levou a escrever sobre ela de novo, foi o antepenúltimo lançamento, ""Turn Up the Quiet", de 2017.
Apesar da foto da capa do CD não ser lá essas coisas (segundo meu velho e saudoso amigo, Tadeu Costa, "o fotógrafo deixou a moça com um cabeção"), o resto do encarte é bonito e o conteúdo musical é, mais uma vez, coisa finíssima.
Diana Krall, como quem acompanha a carreira da moça já sabe, toca piano desde os quatro anos e, ainda jovem, já tocava e cantava em grupos de jazz em casas noturnas de Nanaimo, uma cidade canadense com menos de 90 mil habitantes, na província de Colúmbia Britânica, onde nasceu.
Sua carreira foi meio meteórica: aos 17 anos, ganhou uma bolsa para estudar no Berklee College Of Music em Boston, Massachusetts. Passado algum tempo, mudou-se para Los Angeles, Califórnia, passando a estudar com Jimmy Rowles, com quem ela começaria a cantar. Em 1990, Krall foi para Nova York, gravando alguns álbuns e finalmente alcançando sucesso internacional. 
Depois foram dezessete discos de carreira, três DVDs (um gravado no Brasil), shows pelo mundo todo e inúmeras participações em discos de diversos astros do jazz.
"Turn Up the Quiet" (algo como "Aumente o Silêncio"), é um disco essencialmente de jazz e seus standards, e nessas águas Diana navega tranquilamente com muita qualidade. Ela mesmo explicou como chegou a esse disco: ""Eu pensei sobre essas músicas por um longo tempo. Estar na companhia de alguns dos meus maiores amigos na música me permitiu contar essas histórias exatamente como eu pretendia. Às vezes você só precisa aumentar o silêncio para ser ouvido um pouco melhor."
Algumas informações da Wikipédia são importantes para se compreender o disco: "Alan Broadbent conduz três faixas no álbum que reúne Krall com Christian McBride e Russell Malone para algumas composições junto com o baterista Jeff Hamilton e o baixista John Clayton Jr., este último creditado junto com Krall em seu álbum de 2005 "Christmas Songs". "Turn Up the Quiet" também marca seu último álbum com seu produtor e amigo de longa data Tommy LiPuma, que morreu em março de 2017. LiPuma trabalhou pela primeira vez com Krall em seu segundo álbum de estúdio, "Only Trust Your Heart" (1995)."
Como se vê, é um álbum mais que especial e seu repertório, todo de clássicos do jazz, reafirma essa característica. E a crítica o recebeu muito bem.
Christopher Loudon do "Jazz Times" declarou: "Tocando e cantando em todas as faixas e reunida com o coprodutor Tommy LiPuma, que morreu semanas antes do lançamento do projeto, Diana Krall está no mais suave dos humores. Ela raramente levanta sua voz acima de um sussurro, seu auto acompanhamento está igualmente contido. Até mesmo as músicas tipicamente tratadas com bastante entusiasmo e verve, como "Blue Skies", "L.O.V.E." e "Sway" - são temperadas de forma suave. Vocalmente, ela cresceu um tom mais escuro, um ou dois graus mais granulado e, no processo, tudo ficou mais atraente. Já Maertin Townsend do "Daily Express" chamou o álbum de uma "joia de disco".



Bobby Reed, da "DownBeat", escreveu: "Para este álbum, Krall selecionou as músicas, escreveu os arranjos do conjunto e supervisionou três formações diferentes de conjunto. Neste ponto de sua carreira, Krall sabe como colocar sua própria marca distinta em padrões de décadas, fazendo-os soar frescos e vibrantes, ao mesmo tempo em que honra as melodias que os fãs do Great American Songbook conhecem tão bem." 
Jim Hynes, da "Elmore Magazine", comentou: "Coloque seus fones de ouvido à noite e ouça a sutileza e a nuance de Krall aqui no silêncio. Você não pode deixar de ficar impressionado"
Os 48 minutos e 18 segundos do disco estão divididos entre as seguintes faixas:
"Like Someone in Love" (James Van Heusen e Johnny Burke)
"Isn't It Romantic"          (Richard Rodgers e Lorenz Hart)
"L.O.V.E." (Bert Kaempfert e Milt Gabler)
"Night and Day" (Cole Porter)
"I'm Confessin' (That I Love You)" ('Doc' Ralph Edward Daugherty, Al J. Neiburg e Ellis Reynolds)
"Moonglow" (Irving Mills, Edgar Delange e Will Hudson)
"Blue Skies"       (Irving Berlin)
"Sway" (Norman Gimbel, Pablo Rosas Rodriguez, Luis Demetrio e Traconis Molina)
"No Moon at All" (Redd Evans e David A. Mann)
"Dream" (John H. Mercer)
"I'll See You in My Dreams" (Gus Kahn e Isham Jones)
O CD está à venda por aí, nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na integra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=1MjEcvI5ePQ&list=OLAK5uy_nwNBNhifXhIkIl2fl8On5lq8YOpMmTaFs&index=2

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...