Por Ronaldo Faria
Tango e flamenco se misturam entre guitarras e bandoneón. Há pares a
bailar no salão. Há frio, muito frio escondido sob as luzes da noite. Existe
mistura de candelabros que luzem amarelo com um resto de lua cheia a brincar
de céu. Vê-se bocas e braços entrelaçados. Suores e afagos. Temos vozes longe
de algozes. Alforria de casais a beber-se de línguas molhadas e se embriagar
de copos que passam de mão em mão sem vazar.
Há milagrosas pernas a se enroscarem e se jogarem entre pernas. Um
cantar de impropérios vagos, um prelúdio de corpos a encorparem o pedaço de
cama entre quatro quadrados. Em cada canto, um pesadelo guardado. Uma cortina
fechada que descortinar um umbral fugitivo e solitário. Há saudade do que ainda
há por vir.
Há saudade de dias que deixarão ambos longe, longitudinalmente largados,
cansados de seguir esquinas e ruas translúcidas nos olhares promíscuos de
prostitutas e precipícios. Como num porto onde poetas e profetas se deixam a
navegar sem destino, sem tino, sem ir ou chegar. Por isso, no salão, a ordem é
somente rodopiar para cá e para lá. Entre ter e largar. Sentir os pés no chão,
anchos em parcimoniosas ilusões. Sentir o corpo do outro colado, lado a lado.
Sem o gosto, amargo, da remissão. Por isso, nos salões ninguém fala. Há um
silêncio ensurdecedor na sala. Como se a amada saísse pela porta rumo à
eternidade com sua mala. No meio de tudo, o casal mudo. Apenas notas e acordes
se entremeiam sonoros e sinistros. Todo o futuro ficou perdido lá na frente. Os
músicos, à meia luz, se fazem em dó maior. Embriagados e roucos, não cantam
mais. E assim homem e mulher transitam somente no universo próprio, loucos.
Daqui, vejo apenas a morte como primeira e última consorte.
II
Um baião faz bailar sob o som da sanfona. Entre a lua e a luzidia chama
do lampião, um triângulo e uma zabumba batucam os pés que mexem sem parar. Há
versos no ar. Nordestinamente largados estão os corpos. Na peleja do suor e do
toque, uma língua ou outra a se atracarem. Prometo, menina, dona da minha
eterna sina, sempre te amar.