quinta-feira, 20 de julho de 2023

Com Fé na Festa do Gil a rolar

Por Ronaldo Faria

 O som rola enrolado na voz do cantor e se arrasta num arrasta-pé que viaja na noite fria e famélica de emoções que brotam no coração que espera o São João. Quando virá? De fato chegará? Quem sou eu para prever?

 


O homem quase garoto, garoto ainda menino, infante e libertino, olha sua amada a rodopiar na fogueira, livre e tardia, com os seios a balançarem na roupa de chita e colorida feito o pássaro que passeia no céu e proseia com a solidão para ela acabar.

Depois a vê dançar num terreiro largado em Pernambuco como fosse um capuco daqueles que a criança carrega no carro de boi de madeira que se esgueira na terra carcomida da seca. E vai a rumar sem prumo àquilo que o futuro nem sabe se um dia existirá.

Agora, como uma rês que se afugenta naquilo que nem ela sabe para onde irá, longe de seu rebanho, o homem, hominídeo há milhares de anos, está desamparado, esquartejado, vivo apenas por memórias insanas e bêbadas, coisas desconjuradas em si.

E o frio? Ele apraz? Se desfaz? Viaja como andorinha em busca do novo ninho, com uma cadela a vociferar? Quem poderá responder? O rio defronte da fazenda matou o avô que tirava bicho de pé do neto sob a luz do lampião que tem cheiro de querosene e canção.

Agora eu vejo o pequeno poço que sobrevivia à seca e trazia no lombo de um jumento a água para o mínimo da casa fazer. Vejo ainda o mandacaru que nunca deixou de brotar e sinto o cheiro que invade os poucos neurônios que teimam em ficar e se interligar.

Ouço também o enxame de abelhas africanas a passar milímetros acima da morte certa. Um zumbir ou zunir em suas asas negras e rápidas. Ávido de algo ser, o menino nunca esquecerá essa cena obscena e cenográfica, nunca captada em lentes ou mesmo sofreguidão.

Sinto o cheiro de farinha na casa onde um tacho quente a faz virar comida e percorro trilhas de cruzes de anjinhos nunca nascidos. Tudo como a descoberta incerta de brincadeiras de alguém que acredita ser um defunto de férias pronto para somente descansar enfim.

Na dança que se encanta na noite sem lua, o aluar de uma saudade que nunca findará. E o pasto esquecido no quarto do milho colhido e seco. A certeza incerta de uma marcha que vai de um lugar a outro qualquer sem nem saber se existirá quando a lucidez voltar.

Hoje, agora, sem aforismo e festa, apenas a incerta certeza de que o que se foi nunca voltará. Sem odores e visões. Tudo apenas como quânticas alucinações em insana lucidez. Com certeza de que uma vela acesa na capela conseguirá em si virar algo que valha lembrar.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Sertão em flor junina

 Por Ronaldo Faria


A noite no sertão nordestino traz rimas e lástimas, criaturas mansas ou não, feridas calcinadas e perfídias tresloucadas, todas prontas para uma camisa de força, dessas que forçam a saudade a fugir do peito e ultimar a distância entre a seca e as ondas que beijam a areia do mar. Certamente haverá um altar em algum lugar. E se não houver, a ferida existirá.

Perto, a mulher abre os braços em abraços frígidos e frágeis. Certamente já sabe que o homem, perdido em si mesmo, ensimesmado, se perde entre trilhas e pés trilhados por um andar que nunca sequer sabia que em algum lugar chegaria. Noutro canto, um vaqueiro vigia sua vaquejada, arfada de tanto caminhar rumo à morte que nem sabe que logo chegará.

Embriagado e largado o homem se bole para não dormir na mesa, cheia de garrafas e copos, restos de amores nunca vindos, advindos daquilo que o poeta acha que seja verdade. Mas esta haverá? O que existirá de fato no fátuo resto de infaustos que chega entre cheiros e esgueiro? Saber-se-á que o toque denota outro tocar? Quem, em sã consciência, concederá ao amor a fogueira que arderá para sempre numa metáfora que só a própria pena incendiará?

(Ainda a ouvir São João Carioca)

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Santo Antônio

 Por Ronaldo Faria


A fagulha se espalha no céu e emparelha com as estrelas perdidas e ardidas feito xote ou baião. E haja xaxado. No terreiro, casais se acasalam antes de acasalar corpos e desejos. Há ensejos, decerto. Mas antes que o deserto da solidão de faça final há a faca do amor, letal, a dor despudorada e desprovida de uma canção qualquer, insana unção que junta zabumba e triângulo, sanfona e cantoria.

A árvore de gravetos, antes viva, agora carvão torrando no fogo, desarvora a desandar em pares emparelhados que logo serão um só, unidos entre beijos e ensejos, trejeitos inúmeros entre corpos e úmeros colados e deitados, num sobe e desce indecente para crentes que não sabem o que é viver. Na noite fria, frígidas mulheres pedem a Santo Antônio o amor que nunca chegará nem aqui ou acolá.

A festa que incesta e se presta ao único calor que vem de corpos e copos de quentão, mistura homens e mulheres num desvirginar de clarividências e cadências, todas harmônicas com as notas que enchem ouvidos e elimina pruridos que ainda possam existir. No frigir da quase madrugada, uma mandrágora floresce entre pântanos e enche ânforas que irão derramar suor e acalantos calados no futuro chegar.

A rebolar, a morena faz do gingado o afago desnecessário. O frio, senhor de tudo, une e junta, unta, casais que se aconchegam a fugir dos tremores que invadem corações e cópulas tardias, vazias, prontas para se achar. Loucas para achegar, chegar, chorar juntas, uníssonas, sobremaneira fatais. Assim, quiçá bisonhas, aninharão sonhos e corações. Do altar, Santo Antônio pede o fim de tantas orações vãs.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Seu Lua, Luiz Gonzaga

Por Ronaldo Faria

O bom da vida às vezes é sequer relembrar seja o que for que tiver de lembrar.

 No rádio de galena à base de gerador a gasolina, onde o som saía sei lá em que rotação, à luz de um lampião de querosene que cheira inesquecível, a saudade de uma infância que hoje até parece nunca ter existido. Do brincar com um carro de boi em que os sabugos de milho compunham as parelhas de oito. E como era bom buscar na casa do milho, depois de debulhar, aqueles que eram quase vermelhos, “bois” pintados. Como era felicidade ter oito, cada um com seu nome, a correr nas trilhas feitas por pisadas na terra calcinada e sem nada dar. Depois, um caminhão de madeira puxado com corda e embalar pão a correr pela imensidão. Senão, o odor inebriante da bosta de gado, das queimadas para fazer a vida rebrotar, do fogão de lenha a crepitar. Os banhos de cuia, as cuias para o banho que foi aquecido nas chamas de vida morta, a rede onde o corpo descobria que dormir sem pesadelo até que é bom (e como é), O amanhecer do gado que pasta sem mundo, do galo cantando, do despertar entre um gosto de achocolatado e leite de peito da vaca que nunca mais vi. Talvez, até, do carro de boi de verdade com seu chiado a transpor as estradas cravadas pelo suor de sertanejos que marcaram e demarcaram um universo paralelo, que até hoje faz lembrar e chorar, coisa atávica e cravada numa eternidade que não há. Como alguém nascido nos Anos 50 e meio preso na temática da alma do brasileiro que se perdeu sabe-se além em que momento. Sem lamento, me resta apenas rever algo que poucos viveram ou viverão (cada um com seu cada qual). Ou um lugar sem luz elétrica, sem água corrente, sem “internet”, sem celular ou algo mais pode ser lugar? Creiam e acreditem, do que existe hoje era bem melhor...

 No bailar do mundo, faça-se apenas uma imortal vaquejada.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Já que é junho, que venha Fulô de Mandacaru

Por Ronaldo Faria

 


A quebra da taça de vinho mal usada (culpa de um DVD) em pleno junho de festa nordestina e sertaneja é mau agouro ou a bênção de que algo novo vai chegar? 

Na madrugada tragada de faíscas e ciscas de fuligem que permeiam beijos e lábios sedentos o casal roda em volta da fogueira revoltada por ter sido morta para virar carvão, para ela com certeza em vão. Mas, creiam, os amantes nem sequer ligam e bebericam línguas e rodopios, pé de lá e de cá, sorvem de si mesmos o líquido que precisam para a vida. No vai e volta que revolta o forró para quem não conhece a prece de quem sabe tracejar suas pernas e bofes.

No meio do dia que a noite faz escurecer para saber que pode clarear, o homem olha ao longe a amada que ainda não é ou nunca foi. E se esbanja de desejos e falta de amor, fornica em pensamento com a menor formiga que corre desesperada para o formigueiro e vê, ao longe, o sertão calcinado e queimado como fosse certeza a finita prece de ser feliz na mansidão. Lá longe da colina o vaqueiro busca o gado perdido do patrão que vocifera na sua escuridão.

Mas na cidade que se ilumina de lampiões de querosene há o cheiro de festa, zabumba, sanfona e triângulo. Tem o limite entre a crença e a certeza, entrementes, quem sabe, da própria vida. Meio perto e saber-se-á na trilha, bêbados se juntam numa mandrágora em que o fim é irreal. Mas ficarão sons, zumbidos, cheiros e tons urdidos, ardidos, coisa que crava no coração e caminhadas em perfídias tresloucadas e ensandecidas no candeeiro sem luz.

Por fim, se algum fim existe entre o começo e o derrear, ficam o som do carro de boi, o aboiar do vaqueiro, o acordeom a tocar defronte o casario, o tomar de banho em cuia, a areia branca do rio que morre e mata a cada estação, a sensação de paz, encontro e solidão que permeia até hoje. Senão, existirá a chama que se inflama em quadros que percorrerem neurônios e insônias, como um junho de notícias infames e felizes de forrozar em algum efêmero lugar.

sábado, 8 de julho de 2023

Celso Fonsequeando 3

 Por Ronaldo Faria

 


Como será o amanhã? Que ressacas serão? Terão nome de mulheres, paixões, emoções, dores de cabeça ou apenas desaparecerão? Comerão um meia-lua no bar que não mais existe? Andarão em andrajos e pés trôpegos nos sonhos calcinados? Brincarão de dois num corpo só, solitário e em sofreguidão? Saberão ou saber-se-ão? Sei lá...

Quem de fato, ser fátuo, saberá? Será como o sopro de um saxofone no meio de uma música do Chico? Ou apenas um verso requenguela, daqueles que cai da página pela janela? Como o jogador maior de futebol de mesa dedicado à iugoslava que no continente era alemã? Na verdade, essa vida é só mera esfera de sequer poder brincar?

Por que vivemos numa vivenda esférica de onde a água não cai se sequer sabemos quando cairemos quicando para um mundo melhor? A pedir logo à madrugada que se esfalfa para chegar fechamos um saco de lixo reciclável para sermos um ser a mais afável ao mundo que não depende daquilo que acreditamos sermos nós no logo após.

 

Na foz da poesia, a azia se faz profana, ainda mais para quem nem vesícula tem mais... Obrigado Celso Fonseca por ser eterno e terno professor.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Celso Fonsequeando 2

Por Ronaldo Faria


Quem faz bem a quem? Estará tal ser aqui ou no além?

O homem, na aquiescência que o abstrato no substrato de nós dá, caminha nas areias de Ipanema como se fosse na eternidade um simples fonema. Algo que brinca de tracejar pra lá e pra cá aquilo que não sabe denotar de par. Já andou por sobre trilhos de trem, escapou de pivetes, correu ladeira abaixo de um ladrão do Méier, vagou embriagado onde o diabo jogou o pão que amassou, se escondeu em colcha de retalhos para crer que não seria estraçalhado. Foi, fortuito, fugitivo, famélico de querer. Quem sabe, quilombola de um quilombo perdido nas perfídias de história qualquer, encontrou, por fim, sua derradeira mulher. E deitou quieto, aquietou num lugar apócrifo e, creiam, sequer vomitou. Foi apenas ele, enlouquecido e aquecido de goles ou roupas do Vietnã. Foi viajar na Jamaica, baseou seu universo num pedaço de papel o seu véu e se esvaneceu de porvir seu por vir numa data inusitada da menor fé.

O homem, menino na verdade de quem quiser crer, até acreditou pudesse domar os ventos, a foz do rio, falar com Deus. Mas qual, era apenas ínfimo ser, sem palco, orquestra e vocal. No desterro do fugaz enterro frugal, a fragilidade que sequer a maldade sabe desenhar ou desdenhar. Afinal, qual será o lugar final e fetal? À espera da próxima música, a versejar, o aprendiz a sonhar descobre que nem o mais pobre dos mortais se enternece da noite clarear.

Celso Fonsequeando

 Por Ronaldo Faria

 


Venham sombras da noite e os açoites que nos percorrem em pesadelos sem zelos num tentar dormir em paz. Cheguem, porém, na aquiescência da vida, generosos e zelosos. Deixem-nos, ao menos, memorizar em mármore de carrara a fugaz fervura de algo ser. Afinal, quantos anos, dias ou minutos mais? De quanto tempo a eternidade se perfaz?

No canto do bar que se derrama na esquina onde qualquer quina serve de anteparo para um bêbado trôpego poder viver, o pranto não tem lugar. Talvez saudades travestidas de mulheres vestidas de lingerie e toques de almíscar a esvoaçar nas nuvens que esperam gotas de chuva chegar para parirem seu viver.

-- Tocar violão de ser bão. Tentei aprender para viver o mundo de uma morena clássica. Não consegui. Hoje resta babar por quem sabe fazê-lo...

Na imensidão que um quadrado dá, sob a luz de milhares de pontos de uma tela esteta, o pseudo poeta vai a vomitar saudades, calamidades e chamados vãos, em vão. Quem sabe um dia uma nova anestesia não permita tudo esquecer, reencontrar o rabinho peludo a balançar, saber que nada mesmo há de saber.

-- Cantar, como é bom cantar. Desopila o fígado, tira as rugas do rosto, oxigena a frágil mente, deixa a gente a crer que vale a pena ser.

Na ilusão premente que cada um mente pra si, os dormentes de um trem que nunca chegará na falta de casais a chorarem o despedir, na loucura daquele que busca o vagão de onde chegará seu repente, quiçá réquiem e refém. E assim, assintomático, em sofisma, vamos a ouvir quem nos diz que ela é carioca...

terça-feira, 4 de julho de 2023

Paulo Freire e São Gonçalo

 Por Ronaldo Faria

 


Com a lua cheia no céu, seara qualquer, num canto recôndito São Gonçalo faz abençoar o violeiro que dedilha sua música e seu cantar. Num lugar onde o lagar e só o largar da pinga goela a dentro, adentro a vida como fosse fermento a ver o bolo sovar. Como fosse um ébrio que se desgarra da reta e cai, soberbo, num meio fio que apenas frio tem. Tênue, o homem busca o hímen notívago que não existe e persiste solitário riste e firme. Como um marujo perdido no derradeiro cais do porto. Talvez um atávico ser que tenta apenas, a duras penas, sobreviver com altivez. Senão, um inócuo binóculo que apenas enxerga entre lentes, vidros e frigidez.

Mas a lua cheia que se esgueira no céu escuro se faz calada, sob uma árvore caiada e quase caída, de branco, sombreia a luz que o luar irreal derrama na terra onde brota o impassível amor. Em flor, as plantas transplantadas em fulgor se espalham no chão que espelha o rosto da moça mais fagueira que a figueira centenária viu. Como um socó que dorme e ressona na copa esverdeada, o sonhador olha para o céu e vê pequenos pontos de luz, clarões esparsos e dispersos como disparos de um bacamarte qualquer. Não muito ao longe, o rosto avistado da mulher. Lívida, quieta, faz-se presta ao violeiro que anuncia o amor altaneiro, primaz e primeiro.

Contudo, creiam, a lua de São Gonçalo haverá de reaver a fé na infinda e benfazeja crença do novo alvorecer. Quem sabe não existirá um louco a gritar nalgum lugar feito profeta de um esteta a voar e revoar seus incertos incestos entre a poesia e o jogral que desvanecem na voz do imberbe que crê no mero flerte. Na praça onde o coreto deixa a banda tocar, um bêbado lança seu olhar além-mar, mesmo que as ondas batam somente milhões de pés após. E pensa o escrevinhador: “caberá apostrofe só para rimar?” No dedilhar da viola, formosa moda se faz em corda. E lá onde o mundo se acaba a festa e se refastela de crenças, descrenças, inhambu chitão e xororó.

sábado, 1 de julho de 2023

Nordestino Jovino Santos Neto

Por Ronaldo Faria

Ah, meu Nordeste... por quê estás tão longe milimetricamente se existe em mim na carne que ainda bate simultaneamente? Onde estão teus cheiros, esmeros, fontes de água límpida e risos destravados de dor, como imagina o filho desterrado de cá?

 


Embriagado de desejar ser e estar, a vagar, Juvêncio corre entre árvores mortas, capim seco, cabeças de gado já descarnadas por carcarás, pequenas covas que guardam corpos de gente que nem vingou. Seu cavalo percorre picadas, foge de espinhos que sangram o mais forte dos vaqueiros, vira sem eira e nem beira à vontade das mãos que o chicoteia. Para ambos, uma estrada à vista, onde a vista anseia caminhos nunca trotados, tratos nunca criados, vontades nunca feitas. Em cenas refeitas e desfeitas, a fresta de uma porta esconde a mulher posta em trejeitos nus e beijos perdidos e urdidos, ardidos, feito a ferida que vislumbra, translúcida, a certeza de nunca sarar.

Mas Juvêncio não para. Segue em frente sempre, fronte molhada de suor e rasgada de rugas profundas que lhe correm a face. Sabe que em algum momento, nem que seja em lamento, seu destino chegará. “Ave Maria de lá”. No alpendre da fazenda deixada para trás, o pai dorme na rede dependurada de acordo com o lastro de sol. No poço logo perto, de água salobra e quente, os animais matam a sua sede de querer na Terra ainda ficar. O vento traz uma brisa tênue e fugaz. Em algum lugar deve haver o nunca mais. Resta somente saber se será aqui e agora ou para depois de algo que se esvai. Na crina molhada do cavalo descem gotas que abrandam a chegança mansa.

Feito ser imperfeito, Juvêncio trilha um universo onde há de tudo, menos verso. Talvez sílabas soltas, rotas, feito louças que se quebram em translúcidos cacos que cortam o quase anoitecer. O sol lhe queima os olhos, a poeira traz uma névoa dispersa que parece ter pressa de dispersar. Seu cavalo, único amigo de agora, corre enlouquecido nas derradeiras forças que restam. Mais um pouco, cairá decerto. Feito decreto divino de algum feitor, roubará os últimos minutos, nas notas de uma canção dedilhada em anginas mortais, desfará as certezas que nem o maior ébrio do lugar poderia crer. Cansado, depauperado, Juvêncio para seu animal e, descrente, nada mais anseia.

Lembra o passado, sua filha a buscar os raios da manhã, num olhar distante de quem sabe a morte infame e sórdida logo chegará. Seu mundo desgarrado, destratado e desamparado, partido entre meios, entremeio atado, parece um poema que nem em prece perceberá ser sagrado. Untado de pó marrom e segregado, Juvêncio já não cavalga. Apenas senta, encarquilhado, e vê as primeiras estelas chegarem. Achega-se a si mesmo e, a esmo, dilacera o que, além da serra, pode se ser vida ou vastidão. E apenas fecha os olhos, chora seu mundo final e descobre, afinal, que tanto trilhar termina sempre, invariavelmente, num escuro, infértil, inexistente e inócuo lugar.

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Em cantos e poesia

Por Ronaldo Faria


Vem meu anjo ou santo da poesia e letras, acordes e alforjes do passado, e me tragam do que falar ou vociferar. A ouvir um perdido Em cantos e poesia volto à minha tese de que Pernambuco é, sem dúvidas, o maior berço musical do Brasil.

E o tempo? O que é? Tão rápido e inócuo, desses que vem e voltam em invólucros que nunca saberemos, é somente um parágrafo ágrafo num turbilhão de letras e sílabas, balbuciadas e expostas em postas de carne viva e viúva numa esquina qualquer.

Talvez uma filigrana de emoção, uma inaudita razão sem amores em cisão. Quem sabe a calada e tardia madrugada que se expõe, os corpos que latejam em ilusões. Às açucenas ou falenas, a certeza de que inebriantes canções se abraçarão na noite.

A sentir o sabor das ruas de Olinda, dos seus casarios e ladeiras nos tambores da madrugada, da dança descoordenada, a incerteza profética de que o fel pode dar mel. Do vinho à cevada, a certeza de que no mundo, inócuo, há fantasmas e também fadas.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Daquilo que virá

 Por Ronaldo Faria


 O poeta/aprendiz profetiza na insígnia do amor que em algum lugar existirá a continuidade da vida antes da eternidade. “Menos um órgão para falhar”, pensa o escritor enquanto preenche de letras pretas o branco da tela a piscar. Aos ouvidos, Zé Renato a trocar audição e poemas tresloucados, daqueles que surgem do nada e para nada vão. Certamente não em vão...

Afinal, haverá algo depois daqui? Só saberemos após fugirmos daqui. Se fuga há, saber-se-á. Certamente, pelo que já vi e vivi, não. Só um juntar de cinzas pai e filha, nada mais. Mas, como diria qualquer ébrio recente, haveremos de nos enganar. Na noite quase fria que chega, o aconchego trôpego da amante que nunca se dá, a paráfrase do que não se abstrai jamais.

Nas plêiades da vida (eita palavra velha), a performance de uma peça que resistirá ainda até a cortina derradeira baixar. Mais alguns atos performáticos, aplausos de casa cheia, merda no camarim, bilheteria chinfrim e sem aplausos do depois. Mas, foda-se! Cada um em seu cada qual, desigual, informal, impreciso e abismal. Apenas um na noite que enseja o amor.

Na mesa de canto, quieta e tresloucada, onde dois se fazem um e perfazem o suor que virá no depois do ser nenhum, só dois, a nuvem de cigarros acesos tem acesso ao ar fresco da quase madrugada que afaga a cena translúcida à vida. Como qualquer paixão, a insana cena flui entre um misto de tristeza, perda e tesão. Às próximas horas caberá a derradeira sofreguidão.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Arlindo Ricarte Jr

 Por Ronaldo Faria

Descobri que sobre ele pouco há, mas o seu CD já é cotado a R$ 45. Ou seja, quase uma dúzia de cerveja em lata. Contudo, não vale vendê-lo além de ouvi-lo. É pouco dinheiro para tanta poesia. Assim como é pouca a certeza de que haverá quase nenhuma leitura de texto escrito além de parca legenda. É foda o tempo passar tão ligeiro que não deixe nem quase baião ou mera canção ficar no derradeiro centeio de um trigo que não florescerá. Daqui, às três horas e algo de um domingo feminino e de mães, mamo outra vez a revelia da sangria que desabrocha na flora que aflora nalgum lugar. Do seu canto (coisa de lugar) Arlindo Ricarte Jr há de tal lembrança reverberar. Senão, fica a declaração de amor à Iolanda.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Billy Blanco

 Por Ronaldo Faria


Ele subia o moro quando parou, entre a bebedeira da madrugada finda e a feira que já se montava, para garantir centavos e alguns avos tardios na caderneta do homem que vendia desde a mãe até a vadia que nele grudara pelo insensato feto que paria. Subia e parou porque um sambista sorvia um gole de cachaça e entregava ao vento sua voz que cantava a derradeira morte na horizontal.

Mas ele continuou a subir. Cambaleante e trôpego, translúcido ao último luar e itinerante de emoções sem noção, coisa de quem titubeia em praguejar nas mesas de bar e o inaudível cantor da própria solidão. Em vão, dá bom dia à lua tardia que se esconde e sequer sabe que há desvão. Certamente, no barraco, uma morena o espera para redescobrir o amor que ama em apenas ser bom.

E assim continuou, nas sinuosas ruelas cercadas de tijolos e telhas de amianto, como tudo fosse um simples pranto disperso. Um subir quieto feito incesto e cataclismo, perplexos de sê-lo. Tem vontade de lamber um selo e mandar carta à amada para que ela o receba com carinhos e beijos, café quente na mesa e desejos de “rolar”. Mas, qual nada, há somente a chegada do mesmo nada.

Mas lá foi ele, a pensar que um Deus que deixa tantos morrerem à mingua, ainda pode existir ser bom. Mas, ao menos, tem o lampejo de ver que está sob o domínio de goles e golfadas e diz com sua razão: “Fodam-se as regras do mundo, já que estamos lá no fundo”. E subiu os últimos metros de terra, cheirou os derradeiros cheiros que o dia que nasce dá e brincou de poeta ainda poder ser.

Parou defronte ao barraco que teimava em não descer ligeiro morro abaixo e agradeceu o pouco que derramava dos olhos encharcados de saudades e riquezas inexistentes. Por sorte, a birosca do Noca estava a fechar as toscas portas. Pediu a última cachaça, sorveu o penúltimo gole e deitou sob a árvore morta no tempo a ver o sol que rebrilhava no chegar qualquer que vertia num sequer.

Começou a cantar sem uma letra saber e fez-se Pavarotti num samba eclético e profético nunca cantado antes ou decantado entre alas e baianas cariocas na avenida. Apenas o foi, nas falácias que a vida dá. Achou que era, viu-se em quimeras, sorveu o fel e o mel que a vida dá. Porém, sem saber, morreu. No jornal popular do dia que enxugava o suor, virou pé de página: “Malaco torra na dor”.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Cazuza na madruga

 Por Ronaldo Faria


Cazuza na madruga. Mandrágora que dá gargalhadas diante do nada da troca de óculos e da falta de ósculos da amada. Uma ou outra sensação na pulsão do coração. Que o assim seja e se anteveja nas vestes largadas e tragadas das ilusões que invadem corpos e mentes nos espaços e percalços que a vida dá. Que os panos da derradeira cortina do palco que impõe tragédias e comédias no teatro atávico da casa/maternidade até a sepultura/forno venda seus ingressos pregressos e futuros para a plateia ateia e crente de que cada “verdade” emergente é real ou ausente. Se for ou não, que o falsete das notas e versos se faça num aríete que destrua minaretes sem fim... ou a fuinha que tem no focinho o saber de morrer ou amar. Madrugadas, botecos, poesias e afins, um dia chegaremos ou findaremos lá.

Ps.: as melhores camas não são as hospitalares, mas as que dão paixão ao invés de drenos e as que se enrolam de corpos, peles e suores ao invés de pessoas de branco em cancros de parecer de boa para pagar as contas que irão cair.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...