domingo, 11 de maio de 2025

Aulas de jazz com Jessica Wiliams *

Por Edmilson Siqueira



O álbum "...And Then, There's This!" de Jessica Williams, lançado em 1990 pelo selo holandês Timeless Records, é uma obra marcante no cenário do jazz contemporâneo. Gravado em 1º de fevereiro de 1990 no Paradise Studios, em Sacramento, Califórnia, o disco apresenta Williams ao piano, acompanhada por John Wiitala no contrabaixo e Kenny Wollesen na bateria .  
Após seu álbum anterior, Nothin' but the Truth (1986), Williams lançou diversas gravações ao vivo e de estúdio por seu próprio selo, Quantum. Essas produções, muitas vezes distribuídas em fitas cassete, demonstram sua independência artística e dedicação à música. Em 1990, ela teve a oportunidade de gravar um álbum em trio para a Timeless Records, consolidando sua posição no jazz internacional.  
Jessica nasceu em Baltimore, Maryland, em março de 1948. Começou a tocar piano aos quatro anos, teve aulas de música com um professor particular aos cinco e, aos sete, matriculou-se no Peabody Preparatory. Estudou música clássica e treinamento auditivo com Richard Aitken e George Bellows no Conservatório de Música Peabody. 
Aos doze anos, já com o gosto apurado pelo jazz, ouvia Dave Brubeck, Miles Davis e Charles Mingus. Começou a tocar jazz na adolescência, com Richie Cole, Buck Hill e Mickey Fields. Em uma entrevista de rádio com Marian McPartland no programa Piano Jazz da NPR, em 1992, ela afirmou que suas principais influências não eram pianistas, mas Miles Davis e John Coltrane. 
Em junho de 1976, Jessica começou a se apresentar regularmente com a banda "Philly Joe Jones", em Nova Jersey e com Lex Humphries na Filadélfia e em Nova York, antes de se mudar para a Costa Oeste em outubro de 1976. 
Em 1977, Jessica mudou-se para São Francisco, onde tocou em bandas locais no Keystone Korner. Trabalhou com Eddie Harris, Tony Williams, Stan Getz, Bobby Hutcherson e Charlie Haden, liderando seu próprio trio de jazz.


 
Dois anos depois, fundou sua própria gravadora, a Red and Blue Recordings. Ela também fundou sua editora, a JJW Music/ASCAP, e um negócio de vendas por correspondência pela internet.
O álbum em questão "...And Them, There's This!"é composto por dez faixas, incluindo seis composições originais de Jessica e interpretações de obras de Thelonious Monk, George Gershwin e Irving Berlin. A seleção demonstra sua habilidade em equilibrar composições próprias com clássicos do jazz: 
"Bemsha Swing" (Thelonious Monk)
"...And Then, There's This!" (Jessica Williams)
"All Alone" (Irving Berlin)
"Nichol's Bag" (Jessica Williams)
"The Child Within" (Jessica Williams)
"Elaine" (Jessica Williams)
"The House That Rouse Built" (Jessica Williams)
"Newk's Fluke" (Jessica Williams)
"Swanee" (George Gershwin, Irving Caesar)
"I Mean You" (Thelonious Monk) 
As composições originais de Williams, como "Nichol's Bag" e "The House That Rouse Built", mostram sua criatividade e domínio da linguagem jazzística. Sua interpretação de "Bemsha Swing" e "I Mean You" presta homenagem a Monk, um de seus principais influenciadores. 
Conforme assinalaram os críticos, "a performance de Williams é caracterizada por um senso rítmico apurado e técnica impressionante. Sua capacidade de alternar entre passagens vigorosas e abordagens delicadas confere profundidade emocional às interpretações. A interação com Wiitala e Wollesen resulta em uma coesão sonora que destaca a sensibilidade do trio." 
Steve Loewy, crítico do AllMusic, atribuiu quatro estrelas ao disco, destacando-o como "um dos melhores exemplos de performance criativa ao piano da década de 1990". A obra também é bem avaliada por comunidades de jazz online, com uma nota média de 4,5 em 5. 
"...And Then, There's This!" solidificou a reputação de Jessica Williams como uma das principais pianistas de jazz de sua geração. O álbum exemplifica sua habilidade em fundir tradição e inovação, oferecendo uma experiência auditiva rica e envolvente. Mesmo décadas após seu lançamento, a obra continua a ser referência para apreciadores e estudiosos do jazz. 
Jessica Willians morreu em março de 1922, aos 73 anos.
 
O disco está à venda na Amazon. Não encontrei no Mercado Livre. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=hVbxtUM1bv4&list=PLP3iBlP8Vd2O2JlPpBs1Vhwl07NuHTQd5 .
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Funk Como Le Gusta

 Por Ronaldo Faria


Ferdinando, no comando de sua vida, como manda o livro de regras da sobrevivência e da subserviência letal, senta na mesa do bar e começa a falar tresloucadamente o que vem e vê na sua mente. “Silêncio, silvo de cobra, obra inacabada, foda na malfadada fada, febre sem termômetro alto, salto no precipício que o prepúcio nos dá, drama misturado com qualquer lugar, Leocádia e Dagmar.” Quem o ouvia diria logo que é um louco desvairado, desses que fugiu há pouco do hospício e escalou o frontispício pra cair de cabeça no asfalto logo depois. Entretanto, no tanto que delirava soltava também frases desconexas e complexas. “Se Einstein tivesse razão, não haveria no universo em reverso lugar para o tesão. Sem discussão, seu bando de cuzão!”
Quem o via ou ouvia já sabia que o Samu logo iria chegar. “Coitado, transtornado desse jeito, o sujeito deve ter saído de um bordel que cobrava os olhos da cara para liberar os ‘olhos’ do lugar”, pensou o garçom maçom. Para outros, Ferdinando só podia ser um malandro que viu os meandros dos seus planos desandarem andares abaixo no arranha-céu da dor. “Isso é coisa de quem está com o coração cravejado de filigranas de findo amor”, disse a senhora que na penhora da vida devia até as calcinhas no eterno torpor. Mas, como a noite e a madrugada são tragadas nos tragos de um Martini ou de um licor, aos poucos as pessoas deixaram Ferdinando ao seu desmando. O mundo tem mais coisas a se preocupar. Nas mesas é preciso curtir cada centavo dado. Amanhã, quando o sol devorar o luar, os poetas e profetas verão o inferno, por fim, proliferar. Em derredor, sugam os resquícios de ar.

Ps.: Tem música e músicos locais em Cantares e esquinas

quarta-feira, 7 de maio de 2025

A unha

 Por Ronaldo Faria


Um pedaço de unha dorme quieto no chão do quarto. Cortado dos pés de Amália, em pleno calor de fornalha e um verão em que as galinhas já colocavam os ovos fritos na manteiga, a minúscula estrutura composta por queratina jazia aos pés da cama. No meio de tudo, um drama. Da janela do quarto, aquífero de lágrimas mil, a visão da lua a se admirar nos olhos molhados de filme lacrimal. Calixto há muito havia deixado a vida de Amália, mas ela, extenuada de viver nua de si mesma, desacreditava da realidade. “Ele ainda voltará.” Em volta, a cidade fragilizada pelas histórias da metrópole, acrópole volátil, continuava seu frigir de óvulos. Nela, espermatozoides enlouquecidos corriam em busca de um lugar para ficar antes da morte.
-- Seu Antônio, alguém me procurou?
Atônito com a pergunta, o porteiro nordestino, que saiu do meio da caatinga e caiu na catinga da Capital por um mero destino, não soube responder. Na verdade, ele estava ali só pelos míseros reais que caíam em seus bolsos rotos e rasgados a cada fim de mês. Logo, que cada um dos condôminos se virasse com seus cada quais.
Sem resposta posta, Amália sobe as escadas do prédio. O elevador, no seu eterno tédio, estava quebrado. Do apartamento 203 saía o som de um tango. Gardel gritava que era preciso viver por uma cabeça. A dela, porém, há muito só servia para ligar os fios de cabelo ao pescoço. Extenuada, depois de subir onze andares e vários minutos com trajes diminutos, abre a porta. Se joga no sofá de chenille marrom, larga o corpo quase roto e descobre que é hora de tentar dormir. Levanta, vai até o banheiro e pega comprimidos espremidos num frasco de tranquilizantes comprados na promoção. Toma oito para garantir uma boa noite de sono.
No dia seguinte, quando a moça do tempo na tevê diz que um novo recorde de calor será batido graças ao El Niño, o corpo de Amália é encontrado caído no meio da sala, sem vida para sentir o calor ou se ressentir da dor. Quem o encontrou? Calixto, que tinha a chave do apartamento, resolveu voltar para pedir um empréstimo porque o seu cacau tinha se derretido no jogo do bicho. Na rua, encruada e largada nos pingos de suor dos trabalhadores e atores da vida, uma pomba caga na cabeça do guarda que guarda o local até o carro do legista chegar. Feliz de tudo, contudo, o vendedor de picolé vibra com o seu lucro. Ia vender todo o carrinho sem precisar sequer chegar no viaduto.

Ps.: Tem música e músicos locais em Cantares e esquinas

terça-feira, 6 de maio de 2025

Billie Holiday, a dama em cetim*

Por Edmilson Siqueira

 
Ela morreria no ano seguinte, mas, em 1958, gravou um dos discos mais emocionantes e comoventes da história do jazz: "Lady in Satin". Foi o penúltimo álbum de estúdio de Billie Holiday e seu último trabalho concluído antes de sua morte, em 1959. A obra se destaca não apenas pelo talento vocal da cantora, mas, também pela carga emocional de sua interpretação, que reflete sua vida marcada por adversidades e sofrimento.Ao contrário dos álbuns anteriores, que frequentemente traziam o acompanhamento de pequenos grupos de jazz, "Lady in Satin" aposta em uma sonoridade orquestral sofisticada, conduzida pelo arranjador Ray Ellis. A seleção de canções enfatiza temas de amor, perda e resignação, sendo um espelho da própria vida de Billie Holiday. Algumas das faixas ressoam como confissões dolorosas da artista.
O maestro e arranjador Ray Ellis, no relançamento do disco em CD, em 1997, escreveu um texto para o rico folheto que acompanha a obra. Nele, Ellis se recorda do choque que levou ao ouvir o playback da primeira música gravada: "Quando começamos a gravar e eu ouvi o primeiro playback, fiquei chocado. A qualidade da voz de Billie estava realmente deteriorada. Isso ficou evidente para mim depois de ouvir todos os seus discos anteriores. Eu me lembro quão intimidada Billie parecia quando chegou para a primeira sessão e viu uma orquestra de 40 músicos esperando por ela. Eu a apresentei e os músicos todos deram a ela um educado round de aplausos. O que pareceu acalmá-la". 
E talvez essa fragilidade vocal - aos 42 anos, sua voz estava visivelmente desgastada devido ao abuso de drogas, álcool e anos de dificuldades pessoais - seja o que torna "Lady in Satin" uma obra tão impactante. A rouquidão, a respiração ofegante e as notas por vezes falhas se tornam parte da narrativa do álbum, conferem uma sinceridade brutal a cada palavra cantada. Se tecnicamente sua voz não tinha mais o brilho dos primeiros anos, emocionalmente ela nunca havia sido tão expressiva.



O maestro Ray Ellis expressou admiração pela maneira como Billie Holiday interpretou as canções. A combinação entre os arranjos exuberantes e a voz frágil e cheia de experiência de Holiday criou um efeito contrastante que dividiu críticos e público na época do lançamento. Muitos estranharam a abordagem orquestral, considerando-a uma moldura inadequada para a voz marcada pelo tempo da cantora. Outros, no entanto, reconheceram no álbum um testamento artístico incomparável. 
Ray Ellis, ao se recordar das gravações encerra assim seu pequeno artigo escrito 39 anos depois: "Olhando pra trás, eu sinto que tive muita sorte ao ser envolvido nesse álbum. Eu nunca havia notado o impacto que o disco teve até quando estive em Madri, na Espanha, em 1990. Um amigo me apresentou a um conhecido seu que não falava inglês. E eu não falo espanhol. Mas quando ouviu o meu nome ele disse: 'Ray Ellis? Billie Holiday?'"
Com o passar dos anos, Lady in Satin foi sendo redescoberto e reavaliado. Hoje, é considerado um clássico, reverenciado por sua autenticidade e pela maneira como captura a essência de Billie Holiday em seus momentos finais de estúdio.
Os críticos à época escreveram que "Lady in Satin" não é apenas um álbum de jazz: "É uma experiência emocional profunda, um testemunho da resiliência de uma artista que transformou sua dor em música." 
Eu já ouvi o disco muitas vezes, mas a cada audição, se percebe não só a genialidade de Billie, mas ouve-se a própria vulnerabilidade humana transformada em arte. 
O CD que tenho foi lançado em 1997, numa edição caprichada. São 13 músicas, sendo que duas delas tem 3 versões cada. E uma delas mostra as tentativas de gravação, com Billie errando e acertando o tom e a afinação. Essa versão tem 9 minutos e 49 segundos. É uma preciosidade. Sendo assim, o disco acaba tendo 16 faixas.
- I'm A Foll To Want You (J. Wolf, J. Herron e F. Sinatra)
- For Heaven's sake (S. Edwards, E, Bretton e D. Meyer)
-You Don't Know What Love Is (D. Raye e G. Depaul)
- I Get Along Without You Very Well (H. Carmichael)
- For All We Knoiw (J.F. Coots e S. Lewis)
- Violets For Your Furs ((Addair e Dennis)
- You've Changed (M. Carrey e C. Fisher)
- It's EasyTo Remember (B. Rodgers e L. Hart)
- But Beautifuk (J. Burke e J. Van Hausen)
- Glad To Be Unhappy (R. Rodgers e L. Hart)
- I'll Be Around (A. Wilder)
- The End Of A Love Affair (E. Redding)
- I'm A Fool To Want You (Take 3)
- I"m A Fool To Want You (Take 2)
- The End Of A Love Affair: The Audio Story)
- The End Of A Love Affair (Stereo)
O disco pode ser ouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=gncbydxqE4Y . E pode ser comprado, tanto em LP (mais caro) como em CD nos bons sites do ramo.
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Na pele, a brotoeja da peleja

 Por Ronaldo Faria


-- Ele não é muito seguro no que diz ou faz. Carnívoro, vegano, depois de novo carnívoro voraz. Ou seja, Humberto é aquilo que no momento o satisfaz!
-- E não é isso que é bom? Como diz o poeta, uma metamorfose ambulante. E ululante!
-- Pode ser, desde que para o Flamengo não deixe de torcer...
-- Ô português dos Açores, cure nossas dores. Desce mais!
Na velha máquina de fichas a tocar CDs, um chorinho diz que nada é maior do que o amor por você.
-- Tem dó, quem pode dizer algo assim?
-- Talvez alguém que acredita em destino e peleja para que tudo vire certeza um dia.
-- Esse é um tonto. Vai morrer que nem veio ao mundo: cheio de brotoeja!
Na tevê que está pendurada detrás do balcão, o rubro-negro leva uma sova do Fogão.
-- Mas aí já é merda demais para essa noite!
-- Calma, como disse a freira da catedral toscana, nem sempre se ganha!
-- Caguei pra trocadilhos. E se quiser um: pau no cu dos seus fundilhos!
E aí, no logo mais perspicaz que a prosopopeia faz quimera de poeta loquaz, o empregado pregado na cozinha grita que vai apagar o fogão.
-- Até você, Paraíba? Vai tirar sarro tomando formicida!
-- Calma, mano. Foi só uma derrota. Na próxima a gente faz samba dessa nota.
-- Quer saber, talvez você tenha acertado a canção. Vamos voltar a falar do Humberto, aquele vacilão. Foi no churrasco, com as carnes contadas porque ele só comia folha picotada, e devorou metade da churrasqueira. Ou seja, neguinho que ajudou na vaquinha ficou pistola com razão.
-- É. Mas ainda bem que ele voltou pro grupo. Achei que se ele continuasse igual ia encontrá-lo plantado num vaso a dividir espaço com vidro de colorau.
-- Já pensou ele servido como salada?
-- Ia fazer vomitar até a Salete, nossa fada.
Da caixa registradora, Adamastor se relata: “Moçada, a festa acabou! Amanhã tenho que ir logo cedo na Ceasa!”
-- Pelo menos sai a última?
Com a presteza de quem tem pressa para fechar ela logo chegou.
-- Agora, só de sacanagem, vamos enrolar pra tomar e pagar...
-- Melhor não, amanhã vamos ter de acabar voltando pra cá.
-- É justo. Afinal, vai que ele diz que a cerva está no final...
-- Ou nos serve só garrafa quente...
Indulgente, o tempo finda ao seu casual. No The End, os letreiros mostram que o técnico pediu desculpas pelo vexame e disse que foi tudo circunstancial. No próximo mês, milhares de caixas de Brahma ou Eisenbahn cairão na sua conta feito cifrão.

sábado, 3 de maio de 2025

Choramingando no choro

 Por Ronaldo Faria


O lampião aceso, com odor de percevejo queimado pela luz, ilumina a cena da praça e do coreto. Valfrido, mítico tocador de violão, chora quieto. Seu choro sai baixinho, com direito a se escutar os relâmpagos que surgem no negror. Nalguma tipografia clandestina a hipocrisia da Corte está sendo descrita. Se tal escrita chegará em pasquim aos raros leitores alfabetizados, saber-se-á. Do alto de um sobrado, Faustina espera o pai ir dormir para a seresta que o seu amado lhe prometeu. “Mesmo com esse tempo a prometer chuva e lamaçal no seu chegar, ele virá” – pensa a jovem no seu virginal penhoar. Mas o seu consorte, infausto ser que se perde nas tabernas entre as pernas das moçoilas que se vendem a vinténs, está largado a ver lágrimas baterem nos degraus do coreto. Agora, nem um minueto o fará lembrar da promessa. Certamente, insone e descrente defronte da rua encharcada de tudo que desceu morro abaixo, Faustina será apenas uma donzela frágil, sem rima.

Um pouco distante, no matadouro do lugarejo, um porco dá seu último respiro de dor. Suas tripas caem na gamela. Seu sangue deixa retinto o chão de tijolos queimados. Um pouco mais de tempo e estará na venda ou na feira antes de ferver nas panelas de barro. Seu novo cheiro, cercado de temperos e esmero da mucama, irá se sobrepujar ao da lenha que chora num crepitar de cor brilhante e pujante. Chegará à mesa dos comensais com a destreza da receita para ninguém reclamar da falta de sais. Irá forrar estômagos e, nas sobras, aliviará a fome daqueles serviçais que não têm com o que sonhar. Seus ossos, atirados ao léu, irão virar manjar aos cães das ruas. E seu destino estará feito. Com rabo, orelha e focinho...

Mas e Valfrido e sua Faustina? Que infausto destino o mundo lhes dará? Na pequena igrejinha (na redundância de sua pequenez), o sacerdote conta o dote que o barão, morto e enterrado, deixou à irmandade. “Devia ter buscado servir a Deus numa melhor cidade”, pensa o enviado de Deus. Com as portas abertas, aos poucos velhas beatas, com seus véus sujos e encardidos de promessas vãs, se sentam para ouvir as palavras divinas. A maioria, já surda pela idade, se satisfará em comer a hóstia. E todas voltarão para suas casas irmanadas como filhas de Maria. Menos Isaltina. Essa tentará mais uma vez, em vão, sentir o padre fungando no seu cangote. Ele, porém, tem mais o que fazer na sacristia. A balançar o incenso está Desidério, o coroinha. Assim, na ignóbil fé das verdades que permeiam livros sagrados, o ágrafo parágrafo que diz que a verdade é coisa de cada um no seu quadrado.

Mas e Valfrido e sua Faustina? Que infausto destino o mundo lhes dará? Devagar, o sol surgiu ensimesmado e redondo para expulsar as poucas nuvens negras que teimavam em lavar o chão encharcado e enxaguado. No aguardo inútil e fútil, a formosa dama, ainda virgem e carente, dorme num sono que não há gente que a desperte. Já seu poeta e esteta, depois de encher de tristeza a escadaria sombria do coreto, decide ir para baixo da janela da petiz já mulher. Mas, para azar o seu, Major Clemêncio, já desperto e com seu revolver à mão, sem clemência o expulsou a tiros do local. “Se voltar aqui eu prometo te acertar e, depois de catar o seu corpo morto, arrancar os bagos e dar para o bicho que quiser comê-los!” Passada a cena, a jovem apaixonada, agora acordada,  teve a notícia de que estava prometida a Galhardo, filho de um conde de título comprado mas que tinha a galhardia de um nunca bastardo. Sem poder sequer contestar, calou-se e foi para seu quarto chorar. Já o antigo e nunca apaixonado no aguardo, que fugiu dos tiros como um tornado, desagua a certeza de estar vivo na casa de Filomena, a amena dona do bordel fatal. No derredor, há quem diga que tudo está melhor...

quinta-feira, 1 de maio de 2025

“Bota na tua cabeça que isso aqui vai render” (Ou à Letrux)

Por Ronaldo Faria


Na aurora que o dia antecipa feito pipa no alto do morro, na mira do fuzil em íris dos olhos da amada, a fada dos dentes que faltam na boca voa doida entre prédios cinzas e janelas entreabertas de dor e corpos suados de calor. Um ou outro vagalume (eles ainda existem?) tentam iluminar a escuridão que cobre a cama onde amantes sussurram em tesão. O verde do seu rabo contrasta com o vermelho do batom de Alice que suja os lençóis de cetim. Junto dela, porém, Germano pensa em Doralice e nos gerânios que comprou e nunca entregou. No meio da Tijuca, na Rua das Flores, pessoas passam a cheirar crisântemos e rosas. E deixam perpassar seus passos rasos nas rajadas que cobrem de barulho algum lugar do céu.
Translúcido no púlpito da igreja forrada de bancos de madeira, imagens de santos e orações fálicas, o padre ora pela salvação dos transeuntes que passam depressa pela rua na pressa de quem sabe que o próximo minuto será menos um.  Nas praças prosaicas se misturam mães, babás, bebês e bêbados largados nos bancos. Os cheiros de almoço futuro permeiam tudo. Haverá peixes fritos, linguiças picantes, bifes e fritas, feijão por cima ou debaixo do arroz. Teremos também sinas insolúveis: “Odeio jiló, você sabe! Quer me foder ou se separar?” No final, uma xícara de café solúvel. Sofrível, um solilóquio se fará de duas vidas. Para quantificar tudo que acontece no lugar, somente o ganido do cão abandonado pelo tutor.
Nos pudores da Tijuca, tragicômica pantomima de um passado desgarrado da sina, Germano lambe Alice, mas se pensa no meio das pernas de Doralice. A se entregar ao furor do sabor do sexo e volatilizar sua solidão sem nexo por onde for. A migrar de cinema em cinema, nas sessões ininterruptas e góticas, a chupar dropes de anis ou hortelã. Em casa a sua avó tenta terminar o cachecol de lã. “Mas o que é correr entre máquinas do elevador emperrado depois de subir paredes feito lagartixa com medo da morte?” Na esquina o pipoqueiro deixa o pipocar do grão do milho estourar no desejo de quem ainda enseja o ensejo derradeiro. Sorrateiro, o pivete apenas espera alguém marcar ao tirar a carteira do bolso para pagar. No céu, o sol sombreia a pereira que resiste no quintal da casa que pede para não cair. Nela, um cacho, maduro, espera algum dente lhe mostrar que valeu brotar...

terça-feira, 29 de abril de 2025

Sim e não

 Por Ronaldo Faria

 


-- Vale a pena a ressaca do amanhã?
-- Sim e não. É foda, mas quem disse em sã consciência que foda é ruim? Além disso, quem foge do seu destino, dizem, é um fraco. Logo, que possamos cair lutando.
-- Tem razão. Deoclécio, manda mais uma, daquelas de canela de pedreiro...
Os amigos, triviais seres fortuitos, se jogam à resenha feito mulher prenha de primeira vez a tirar as dúvidas com o obstetra. Na destrambelhada avenida que corre na noite que permeia o lugar, gente trafega e se esfrega na retreta ofegante de um lumiar.
-- Dizem que o dia amanhã vai nascer mais cedo.
-- Não creio. Por quê?
-- Só pra dizer que mais um dia soube raiar. Nos raios de sol ou fim do luar...
-- Desde quando você virou poeta?
Fabrício tinha virado escriba do amor desde a chegada de Maria na sua vida. Morena de olhos com cor de marrom claro feito barro lavado de chuva matinal, dessas que mata a sede das árvores sedentas de vida, ela tinha refeito seu desejo de viver.
-- Sabe, Porfírio, a rima e a poesia surgem assim: botam pra foder a cabeça da gente, de repente, num rompante ou num repente, e brotam feito planta invasora de vaso, pilantra da botânica.
-- Sei. Coisa de nordestino perdido em São Paulo.
-- Pode ser. Pau de arara também encontra o galho onde botar o seu ninho.
-- Com certeza. Afinal, ovos têm que se colocar nos cestos...
-- Se bem que eu prefiro os cor de rosa. Deoclécio, manda ver dois ovos coloridos que vão apodrecer aí!
Numa mesa logo perto, um desafeto da vida espera que a chuva desabe torrencial, feito juízo final. A felicidade dos outros é limiar sob um fio. A esse, até mulheres que se vendem teimam em chamar de tio. Fim de carreira. Como solução da cisão, carreiras batizadas de gesso ou farinha na farinha pura são a solução nos soluços solitários da falsa orgia.
-- Me diz, de verdade, tem coisa melhor do que um amor?
-- Tem. Dois!
-- Aí não tem coração que aguente...
-- Mas não é quando o coração para que a gente morre? Então que se morra de paixão.
Os dois, calejados na vida, com seus cajados quase gastos de tanto buscar o lado certo da metade de uma laranja lima, agora só divagam e vagam nas vagas que levam as caravelas com suas velas rasgadas na busca de um porto que nunca se revela.
-- Acho que já deu...
-- Sério?
-- Amanhã tem trampo. Hora de pegar o trem lotado, virar sardinha sem óleo, que esse está custando caro.
-- Então valeu. Deoclécio, fecha a comanda!
Ao comando da voz, o ensimesmado dono do bar traz a dolorosa.
-- Tem certeza de que a coisa de servir duas e marcar três não virou?
Deoclécio nem responde. Recoloca o pano de prato no ombro e vai em direção ao balcão.
-- Se tiver dúvida da minha honestidade, não pague. E vá se juntar à sua mãezinha...
Conta paga, os amigos caminham trôpegos e voláteis pela rua encruada na metrópole atropelada pelo tempo. Quando o novo dia chegar, quando o cartão bater no som da fábrica que fabrica luxo para o patrão, eles seguirão seu destino como a dúvida entre o sim e o não. Mas, quem foge do seu destino, diria o senhor da eternidade, no depois e após das nuvens claras, puto da vida de nada ter ensinado: “Não fode!”

domingo, 27 de abril de 2025

Tony Bennett desplugado *

Por Edmilson Siqueira



Tony Bennet nos deixou em julho de 2023, depois de uma das carreiras de maior sucesso na música norte-americana e, consequentemente, na música mundial. Sua trajetória foi singular, repleta de elegância, técnica refinada e, claro, uma paixão inabalável pela música. 
Ele deixou uma vasta e de ótima qualidade discografia, em 61 álbuns de estúdio, 11 ao vivo, 33 de compilação, três de vídeo e 83 singles. 
Um dos mais vendidos, premiado com o Disco de Platina, foi "Tony Bennett Unplugged", gravado em abril de 1994 para a renomada série MTV Unplugged. Além desse prêmio, recebeu também o Grammy por melhor performance vocal e também com álbum do ano.  
O disco acabou representando um marco na carreira do artista, ao demonstrar como a simplicidade dos arranjos acústicos pode revelar a profundidade emocional e a autenticidade de sua interpretação. Em meio ao cenário musical dos anos 90, quando o gênero pop dominava as paradas, a proposta de uma performance desplugada serviu para reafirmar a relevância de um legado que transcende modismos e gerações.
Acompanhado apenas de piano (Ralph Sharon), contrabaixo (Doug Richeson) e bateria (Clayton Cameron), o show gravado ao vivo para a MTV se transformou num dos melhores discos de pop e jazz do ano. 
 No ambiente intimista criado pela MTV Unplugged, Tony Bennett se permite explorar os clássicos de seu repertório com uma abordagem mais pessoal e direta, deixando de lado os artifícios tecnológicos para valorizar, sobretudo, a pureza de sua voz e a sensibilidade de suas interpretações. Cada canção é tratada com um cuidado especial: os arranjos simples destacam os detalhes de sua performance, ressaltando nuances e inflexões que, em gravações mais elaboradas, poderiam até passar despercebidas. 
Então, o que temos é um Tony Bennett praticamente reinventado, mas sem abandonar as raízes de sua carreira, mantendo-se fiel à tradição do jazz e da música popular americana.
Outro detalhe importante é que a produção do álbum foi cuidadosamente planejada para criar uma atmosfera de proximidade com o público. O público ao vivo, que o aplaude com prazer, faz com o que ouvinte do disco se sinta inserido na plateia do palco onde o lendário cantor se apresenta. 
 


Acho até que ao optar por não recorrer a arranjos grandiosos (ele poderia botar ali uma orquestra completa que continuaria "unplugged"), Tony Bennett reforça a ideia de que a música pode se expressar também de forma simples, mas com muita emoção e qualidade. 
E a presença de um artista consagrado, cujo público à época já era bem mais idoso que a moçada que assistia à MTV, acabou proporcionando que novos admiradores se incorporassem à sua legião de fãs. Para tanto, o palco foi preenchido com uma iluminação suave e um cenário despojado, ressaltando a figura do cantor. 
Mas, talvez o ponto de maior destaque - além da performance perfeita de Tony - foi o repertório escolhido para a gravação. Foram selecionadas canções que marcaram sua história pessoal e profissional, mesclando clássicos que se tornaram hinos de gerações com interpretações que, mesmo revisitando o passado, ganharam novo fôlego na performance acústica. A universalidade dos temas abordados, que falam de amor, saudade e esperança, contribuiu para que o álbum ultrapasse barreiras temporais, reafirmando a música (a boa música, diga-se) como linguagem universal. 
Resumindo, Tony Bennett Unplugged não é apenas um registro de uma apresentação ao vivo; é uma obra que celebra a perenidade da boa música e a habilidade única de um artista que soube, ao longo dos anos, reinventar-se sem jamais perder sua identidade. 
O prazer de ouvir esse disco é dividido em nada menos que 20 faixas, todas elas magnificamente interpretadas. A lista é seguinte:
"Old Devil Moon" (E.Y. Harburg, Burton Lane) 
"Speak Low" (Ogden Nash, Kurt Weill) 
"It Had to Be You" (Isham Jones, Gus Kahn) 
"I Love a Piano" (Irving Berlin) 
"It Amazes Me" (Cy Coleman, Carolyn Leigh) 
"The Girl I Love" (George Gershwin, Ira Gershwin) 
"Fly Me to the Moon" (Bart Howard) 
"You're All the World to Me" (Lane, Alan Jay Lerner) 
"Rags to Riches" (Richard Adler, Jerry Ross) 
"When Joanna Loved Me" (Jack Segal, Robert Wells) 
"The Good Life" / "I Wanna Be Around" (Sacha Distel, Jack Reardon)/(Johnny Mercer, Sadie Vimmerstedt)
"I Left My Heart in San Francisco" (George Cory, Douglass Cross) 
"Steppin' Out with My Baby" (Irving Berlin)
"Moonglow" (Eddie DeLange, Will Hudson, Irving Mills) Participação especial de k.d. lang
"They Can't Take That Away from Me" (G. Gershwin, I. Gershwin) Particiapção especial de Elvis Costello
"A Foggy Day" (G. Gershwin, I. Gershwin) 
"All of You" (Cole Porter) 
"Body and Soul" (Frank Eyton, Johnny Green, Edward Heyman, Robert Sour) 
"It Don't Mean a Thing (If It Ain't Got That Swing)" (Duke Ellington, Mills)
"Autumn Leaves" / "Indian Summer" (Joseph Kosma, Johnny Mercer, Jacques Prévert / Al Dubin, Victor Herbert)
O disco ou o DVD podem ser comprados nos bons sites do ramo e pode ser ouvido – e visto – na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=eTwxh3heBEs&list=PL3ME_UgKBYJ9BtKYU3RMXW8STg24www4D .
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Destino em desatino

 Por Ronaldo Faria


 
-- Passei defronte da casinha de sapé no alto da serra hoje. Foi difícil ficar em pé. Tem dia que até os santos conspiram.
-- Não sei. Acho que eles inspiram. E expurgam nossos pecados. Se é que eles existem no amor. Pra mim, não há nada a se arrepender quando o destino junta dois e decide nunca deixar largar de mão a estrada desconjurada que segue lado a lado, mesmo que em direção oposta.
-- Tudo como uma aposta da vida?
-- Acho que não. A posta do peixe que nada na correnteza contrária e pega uma calmaria ou tempestade está na mesa de qualquer jeito. Destino em desatino... não aposta.
-- Parece fácil falando assim.
-- Mas quem falou que seria fácil? Os grandes romances, os épicos, os que valeram história, livros e peças, são um enrosco só. Quase uma tragédia, não terminassem bem. Pode demorar o tempo que for, mas a coisa se ajeita. De um jeito ou de outro, tudo se ajeita. Difícil, talvez. Impossível, nunca. Feito beijo na nuca.
-- Torço por isso.
-- Não precisa torcer. Sabe aquele ditado de o que é do homem o bicho não come? Pois é a mais pura verdade. Ele vence tempo, ausência e saudade. Mas finda em chegar no lugar.
-- Espero, de coração aberto, que sim.
-- Pois será...
O casal, no seu castelo de sonhos e realidade, desses que se constrói com cada pedra de beijos longos, longas noites, longínquas falácias que a vida dá, amores de camas e sofás, pés na areia e no asfalto, entre entremeios de vozes e meios escritos de tinta em rotativas que escorrem histórias e histriônicas crônicas que só quem ama sabe contar está, a saber. Na solidão que põe os dois em portos opostos, a solicitude da atitude que deixa o tempo, em ampulhetas, sorver o que tiver de ser, até a hora chegar.
-- Quer outro vinho?
-- Prefiro um beijo, com gosto de vida...
No apartamento pequeno, largado entre outros tantos apartamentos igualmente diminutos, vivem seus minutos em fim de tormento. A paz se transborda de carícias e gozos, num unir que se mastiga feito pimenta ardida, coisa urdida para sempre ficar. De mãos dadas e entrelaçadas, na caçada de entrega ao outro, dois rostos se entreolham em olhos sedentos pelos dentes que as línguas lambem sem fim. Do lado de fora, no aforismo final, outros tantos casais tateiam as ruas escuras na esperança de que um pedaço do amor dos dois tenha escorrido pelo ralo para onde escorrem canções e unções que habitam seus corações.

(Ao som de Elis Regina)

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Perguntinhas tacanhas e tontas

 Por Ronaldo Faria


A trágica realidade do derradeiro pulsar? A sentença da perfídia que qualquer clamídia traz? A incerteza trágica do vangloriar por nada conquistar? E a pipoca do colégio na Tijuca, como comprar sem ter grana, saber-se-á qual seja ela? E tem o pirulito do Zorro, a bala assassina Soft, o chocolate comprado antes de pagar o barbeiro e quase levar a sova única que era, talvez, melhor do que o olhar severo. Mas e a parede que se abriu para nos levar no berço do quarto do casal casual? Foi sonho? Se o tivesse sido, por que permanece vivo até hoje? Saber-se-á. Saberemos um dia, no acolá. Agora, prestes a lembrar que apertei a mão de Luís Carlos Prestes no auditório da PUC, formato da formatura sem fotos ou gramaturas. Se muito a brisa no apartamento de Ipanema em meio a entremeios fugazes. Depois, cada um com seu cada qual infame ou não como inhame que brota do chão. Assim, por fim, de saudades e efemérides casuísticas e cáusticas, vivamos cantigas de paz.  Afinal, que tempo diferente era esse há quase 70 anos? Pra nós, quase 50. Com certeza um tempo de cartas demoradas, talvez um telegrama fugaz, um telefonema de fichas às dezenas a pingar no aparelho maldito, a incerteza célere de momentos felizes, como diria o poeta maior, no penar. E como saberíamos que agora viajamos pelo universo do verso em devaneios bêbados sem destilados tragados? Tempo, senhor da vida, nos traga o trago ensandecido que, como diz a música, já sabemos que descolorirá...

terça-feira, 22 de abril de 2025

O blues elétrico em estado puro*

Por Edmilson Siqueira


"The Super, Super Blues Band" é um álbum que reúne três lendas do blues de Chicago: Bo Diddley, Muddy Waters e Howlin’ Wolf. A proposta era simples, mas ambiciosa: juntar três dos maiores nomes do gênero para uma sessão de blues incendiária, recheada de improvisos, trocas de provocações musicais e uma química sonora inigualável. O resultado? Um disco, lançado em 1967, que se tornou um clássico do blues elétrico, capturando a essência do gênero com energia e espontaneidade.
Na década de 1960, o blues passava por uma transformação. Enquanto o rock absorvia sua essência e a cultura jovem se voltava para novas sonoridades, os grandes nomes do blues tentavam se manter relevantes. Chess Records, gravadora fundamental para blues elétrico, resolveu apostar em projetos que reuniam seus maiores artistas para atrair a atenção do público e não perder de goleada para as bandas de rock que surgiam e estavam dominando as paradas.
O produtor Marshall Chess teve a ideia de ressuscitar uma outra ideia, baseada no sucesso do álbum Super Blues (1967), com Muddy Waters, Bo Diddley e Little Walter. A proposta era repetir a fórmula, mas substituindo Little Walter por Howlin’ Wolf, um dos mais carismáticos e intensos vocalistas do blues. Era um encontro delicado, pois Waters e Wolf eram conhecidos por sua rivalidade dentro da Chess Records, o que prometia ou elevar ainda mais o nível das gravações ou...
O resultado é que o álbum é um verdadeiro campo de batalha sonoro, como afirmam os críticos. As faixas, quase todas reinterpretações de clássicos do blues, são conduzidas por um instrumental pulsante e pelo duelo vocal entre Howlin’ Wolf e Muddy Waters, com Bo Diddley adicionando sua marca registrada no ritmo.
A primeira faixa, "Long Distance Call" (McKinley Morganfield), já define o tom do disco. Waters, com seu vocal melancólico e guitarra característica, se contrapõe à rouquidão poderosa de Howlin’ Wolf, enquanto a batida de Bo Diddley adiciona um som hipnótico. "Ooh Baby/Wrecking My Love Life" (Ellas McDaniel e Clifton James e Kay McDaniel), a segunda faixa, segue a mesma linha, explorando os vocais intensos e guitarras vibrantes.


 
"Sweet Little Angel" (Robert McCollum) é daqueles blues onde a guitarra e o piano se divertem enquanto o cantor sofre expondo seus amores e sofrimentos. Um prato cheio para os amantes do gênero.
"Spoonful" (Willie Dixon), outro hino do blues, apresenta uma interpretação visceral, onde Wolf praticamente rosna as letras, enquanto Waters responde com sua voz lamuriosa.
A quinta faixa é "Diddley Daddy" (Ellas McDaniel e Harvey Fuqua) e é a amostra eloquente de os roqueiros dos anos 60 nasceram todos apaixonados pelos blues.
"The Red Rooster" (Willie Dixon), um dos maiores clássicos de Howlin’ Wolf, ganha uma nova versão com a participação de Muddy Waters, transformando a música em uma conversa acalorada entre os dois. 
Por fim, o disco traz uma versão de "Goin’ Down Slow" (James B. Oden), onde os três músicos se revezam nos vocais, construindo um clima de tensão e emoção que é amplificado pelo poderoso instrumental.
Apesar de ser um álbum de jam sessions e improvisos, "The Super, Super Blues Band" conseguiu capturar a essência do blues de Chicago, reforçando a importância de seus três protagonistas. A reunião de Waters, Wolf e Diddley gerou um registro que, mesmo sem grandes inovações, tem um valor histórico imenso.
O álbum também se tornou um marco na carreira dos três músicos. Muddy Waters continuou sua trajetória influenciando o blues-rock, sendo regravado por bandas como The Rolling Stones e Led Zeppelin. Howlin’ Wolf manteve sua posição de gigante do blues, e Bo Diddley seguiu deixando sua marca no ritmo e na guitarra elétrica.
Com o tempo, "The Super, Super Blues Band" ganhou status de culto, sendo lembrado como um dos últimos encontros de titãs do blues em sua forma mais pura. O disco é uma celebração do gênero e uma amostra da energia inesgotável desses três mestres. Para quem busca entender o blues em sua essência, este álbum é uma audição obrigatória.
Howllin" Wolf morreu em 1976; Muddy Waters em 1983 e Bo Diddley em 2008.
O disco pode ser comprado nos bons sites do ramo e o preço é meio salgado. E pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=UKOFN4Ky7UM&list=PL1_xC3Lcwoh5fC9-R0oJ__OFhYHeUGDHo .
 
*A pesquisa para este artigo foi auxiliada pela IA do ChatGPT.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

À Rita eterna Lee e tantos mais

 Por Ronaldo Faria


-- Se a Rita Lee estivesse aqui, o que ela faria?
-- Ronaldo, isso é pergunta a se fazer?
Porra, surge Toquinho a tocar.
-- E se Vinicius de Moraes estivesse vivo?
-- Aí seria o paraíso em Terra!
-- E se Adoniran estivesse aqui?
-- Nesse caso seria sacanagem para virar eternidade de bar.
 
Num canto qualquer, a presença constante da mulher amada, forma da fórmula que o receituário do farmacêutico terapêutico não traduz em luz. Aquela dos lábios mordidos, ardidos, lambidos, traduzidos em coqueirais desvanecidos à negação de uma dancinha de Vanderléa. Compêndio urdido em separações forjadas e unções promulgadas e devastadas faça-se na alforria da vida os grilhões que é se viver. Por um triz a cada respirar fortuito e quem sabe último, o importante, como diz o porteiro de café matinal, é acordar. E quiçá, ser feliz.
 
-- E se o Toquinho não tivesse pisado na bola?
-- Mas qual bola? Tudo no fim não vira a mesma merda?
-- Infelizmente. Parece que sim...
-- Então é o passado que conta?
-- Parece que sim.
 
Daqui, enfornado num canto quadrilátero, o poeta, profético, profilático e hermético, vai a crer que num asilo nascido na nascença, como disse Cazuza, tudo se resolverá enfim.

sábado, 19 de abril de 2025

Trovadores urbanos

 Por Ronaldo Faria


O lampião de gás mal ilumina a calçada em que está. Nela, casais voltam do cinema com ódio dos lanterninhas a irritarem e evitarem o primeiro beijo fortuito roubado. Mas, agora, defronte do portão, ninguém impedirá os lábios de se tocarem. Porém, como um sortilégio do destino, a mãe espera quase de véspera a moçoila chegar.
-- Gabriela! Já pra dentro!
A menina quase mulher feita de todo, obedece a matriarca. O jovem, rapaz que ainda irá demorar a virar um homem inteiro, sai de fininho do lugar. Ele sabe que é hora de esperar. A boca de Gabriela ainda lhe voltará ofegante a chegar. De tantos dias que faltam para a vida virar, é certo que isso acontecerá.
Na rua, chorões tocam para a amada que, deitada na cama com lençol de cetim, sonha em ser como as mulheres que se escondem na casa de luzes vermelhas e sons de vitrola de 86 rotações esganiçada e real. No poste prostrado até que a rua vire avenida e seja derrubado, o cachorro vira-lata urina um mijo quente e fortuito. No boteco perto, amigos se embriagam em tragos homéricos. Logo, em périplo, seguirão para suas casas. Todos soturnos e macambúzios chegarão decerto nalgum lugar. Sobre eles, um utópico e róseo luar. Talvez a estrada que trilhamos, mas nunca conseguiremos findar. Ao meio dela haverá um coração que irá parar, uma poesia taciturna que não findará, um amanhecer que chegará sem o respirar. No largar do tempo, o lagar fugidio e misterioso que as respostas que fazemos no “se fosse diferente” não têm respostas postas.
-- Gabriela, te amo!
O grito, entre quatro paredes, paradoxo da paixão, surge surdo para aquela que se deseja. Mas ela saberá do que foi dito e redito. Famigerado e esfomeado de línguas e cuspes que adentram a garganta infanta, o poeta ouve o tango cantado de um paulistano que ouvimos sem saber o destinatário real. Sem olvidarmos o mal, translúcidos e lúcidos ao dia que logo irá raiar sem muito a dizer ou virar, ficamos à espera de um alvorecer disseminado de lampejos de canções.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Sem remediar o futuro

 Por Ronaldo Faria


-- Reduzi o remédio do tédio ao meio. Descobri que ele atacava o fígado. Pode um fármaco ser tão famigerado?
-- Não, não pode.
Quase de bode, Belisário, emissário de si mesmo, concorda com tudo que ainda o faz acordar. De acordo com as premissas que nem o padre consegue dissecar na missa, segue impoluto. Um mero puto, diriam.
-- Lembrar do Leblon, do Méier, da Tijuca, das desventuras e bem-aventuranças do passado é um erro?
-- Acho que não. Mas quem sou eu, um não-sonhador, para responder?
Cheio de nenhuma resposta e postas de peixe que nunca chegaram para ele comer, Belisário é apenas uma pena volátil que cai do céu onde nunca saberemos o fim. O pássaro que a largou em pleno voo poderá ser uma mera pomba pública e voraz ou um beija-flor no seu parar de asas a rimar poesia e fútil cruz.
-- Amanhã será já sabemos como. Mas fugir do seu destino em desatino é muita covardia?
-- Essa eu sei responder. É!
Menino e solitário, no sacrário que o destino concebeu, Belisário permanece concebido e enternecido, renascido, no silêncio que a noite traz. O que lhe apraz? Pouco ou nada. Rouco quando redescobre a alegria de viver nas mesas de bar, cercado de gente que à pena ser, seu caminho é um desritmado surgir de tempos em tempos, transversos caminhos fúteis, famigerados e famélicos aninhos entre os seios da amada, a acordar na madrugada para fazer a cama, enlouquecida, viajar e rodar no quarto.
-- O amor pode resistir à distância, mesmo que ela esteja perto?
-- Com certeza. Na frieza da realidade, a fugidia ternura dormirá retinta de sangue que o coração apaixonado ainda tinge a cada madrugada vadia.
Depois de tal explicação, Belisário, arcaico senhor de suas saudades suadas e ímpias, entre lagoa de sapos e porres de vodka nas ondas do mar, se submete à vida. Logo mais dormirá, terá pesadelos, anginas, prazeres refeitos. Será, enfim, um ser normal. No local, ninguém, em sã consciência, dará aval.

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

 Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...