terça-feira, 27 de maio de 2025
Na dor, minha dor primeiro e só
domingo, 25 de maio de 2025
Teatro, jazz e obras primas: West Side Story *
sexta-feira, 23 de maio de 2025
Carne e osso com Xangai
Por Ronaldo Faria
Louco e trôpego, no tropel do gado que caminha em quatro patas para logo ser dependurado e rasgado de cima a baixo, Mariano tosse engasgado com a poeira que sobe do chão em grãos invisíveis ao olhar. “Logo tudo isso irá acabar”, pensava. A partir daí será Mariana, sua amada. Aos dois, na cama do colchão de espuma de capim, o introito roto e saudoso mesmo longe do mar desagua na sanfona primeira ou derradeira. À turbulência da ausência, a premência urgente que a gente nem sabe dizer e se faz paulatina na latina crença de que a felicidade será prenha para um dia nascer. Ser no próprio ser, o enternecer libertário da razão de crer. Na latrina, desce a crina do cavalo que trota casco depois de casco no cascalho. Tosco e absorto em si, transverso e no amplexo reto e ereto no sublimar de desejos e ensejos, Mariano faz da sua voz a derradeira trama do fim do drama que é viver num mundo fecundo de abortos de ser...
quarta-feira, 21 de maio de 2025
Nos desenhos da vida com Alceu Valença
-- Lembro até hoje daquele beijo. Foi tipo goiabada e queijo. Causou beleza, casou feito pedaço de laranja, línguas fundidas que pareciam uma foda só. Ao menos essa lembrança ficou.
Retumbante, feito hino de nação, Cauby entoava seu pensar. “Gastar um gole de cerveja pra adentrar um comprimido? Que coisa mais sem graça...” Logo perto, no perpétuo lunar, o vaqueiro trazia seu gado no aboiar.
Maria do Socorro, no púlpito de sua vida tardia, urdia clemência aos pecados e ardia de febre nas doenças que existem desde os tempos glaciais. Ex-amada de Cauby, dissonante no arfante arfar delirante pela saúde que se esvaía pelos poros de suor e promessas dispersas, ela ainda sentia o passado claudicante que teimava em voltar.
-- Relembro do pedido negado para ser feliz. Ou felicidade é romper a orfandade e depois acordar cercada de cifras e cifrões que brotam em contas e contágios mil?
Cauby e Maria, um casal a mais no amazônico e atônito milenar espaço que separa a mão do braço, moravam no sertão da Paraíba. Sob um sol inclemente que impedia qualquer semente de brotar, ambos eram resistentes renitentes e tementes a Deus. Afinal, em tal lugar, em quem mais crer ou temer?
Na praça diante da igrejinha pequena e efêmera, dessas que o Criador sequer sabe que existe, o padre pedia o perdão por ter pensado de forma pecaminosa sobre o coroinha. “Prometo, Senhor, ao invés de vinho colocar suco de uva na taça.” Defronte da capela, iluminados por velas, Fabrício e Anita se achegam e se colam numa coisa só. Açodados de saber que o corpo traz tatuagens e feridas que nem a maior da querência os livrará do destino, os dois se beijam e se retorcem de lamentos e lamúrias, injúrias nunca ditas e desejos imortais.
Na estrada de barro batido e uma ou outra planta resistentes à seca, o carro de boi segue sua sina na ruma de animais com nomes de servis seres imorais, amorais quiçá. “Queria lembrar deles, sendo levados rota acima e ferroados com a vara que trazia à ponta de ferro o sangrar cada um”, relembra a eterna criança a soprar lembranças que ao forno das cinzas irá se levar e relevar cada segundo perdido no acreditar.
A milhares de quilômetros dali, na eterna crença estradeira, outro casal trepa na rede e se esmera em brincar que a felicidade é verdadeira. Mera besteira. No regaço do regato que há muito secou, afônico cantador faz promessa, infundada, de que o santo da poesia e da blasfêmia deixará a fêmea livre dos erros cardeais que a balada sempre traz. Cauby e Maria, feito acauã na dor da secura, creem que a cura da separação se dará em terços de beatas e trouxas de roupas lavadas no rio que, mesmo seco, escorre em frouxas ondas de chegar. Sem tradução àqueles que não enxergam a loucura como salvadora, existirá sempre a próxima aurora.
terça-feira, 20 de maio de 2025
Zé da Velha e Silvério Pontes celebram a MPB *
segunda-feira, 19 de maio de 2025
Na meia luz (ao som de Roberto Menescal)
Bar a meia luz, como já mostrou o profeta. Na garganta e nas bocas, goles de bebidas se enroscam na língua enrolada do fim de noite etílica. Casais embriagados de desejos e amor, que usarão as mesmas gargantas para tantas coisas mais, como beijos, arrotos, vômitos, juras de amor eterno e terno. Solitários também estão a se entregarem à volta para seus mundos solitários, assim como garçons a pedirem que Deus expulse do lugar todos os restantes. “Já coloquei todas as vassouras, rodos e escovões detrás das portas. O que mais faço pra fazer esses merdas partirem daqui?” – perguntava a garçonete novata desesperada para conseguir pegar o último ônibus de linha antes do amanhecer, algumas poucas horas logo, perto e depois. Sem apóstrofe para conseguir escrever ou descrever a métrica cena, o poeta risca no guardanapo todo o papo que depois relatará ao fim.
No delírio das borbulhas que sobem nos copos, soçobram delírios, lírios nunca plantados, átomos de células dispersas sem pressa de chegar. Sentado num banco de praça que descansa corpos saídos do bar e já viu até alguns dormirem a ressonar o sonhar daquilo que poderia ter sido, cadências surgem a povoar a imaginação. Vagamente, como deve ser toda a mente carente de semente a brotar do amor, os minutos vão rareando, pombas fazem seu barulho de arrulhos e mendigos, dignos de sua função, não interrompem a cena finda. “Graças aos céus o último pediu a conta. Acho que ainda dá tempo, se correr, de pegar o busão”, fala a moça que espera ver a filha acordar antes da escola de manhã. Na cozinha, Dona Graça, cozinheira e mãe de santo, agradece às entidades o fim do expediente.
No céu, a lua, se a poesia parnasiana ainda estivesse em voga, enterneceria até o coração mais rude. Ao léu, na utopia do sol que quer retornar pé no ante pé, penalizado com a conta de luz que os pobres mortais pagam no final do mês, as encostas e morros se cobrem de nuvens no arrabalde da fase romântica da vida literária. Na rua e nos olhos circulam a morena de Ipanema a viajar delirante na sua loucura nunca refeita, feito personagem prostrada na estrada cercada de mata virgem. Na loucura que a ternura posta feito meliante diante da prisão inevitável, o afável soluço do luto inenarrável. No meio de tudo, as letras que escurecem a tela branca de milhões de pontos ligados ao criar. O mar? Este, longe, sombreia de maré e maresia a orgia que não aconteceu. Tardia, a rebeldia de pensar fez antever e ver o prólogo que a cortina fechada do final não deixou o pano baixar.
sábado, 17 de maio de 2025
Piramboia da parafuseta
Por Ronaldo Faria
Será aqui o final do meu lugar?
Cheiro de unção na voz silenciosa e ciosa.
Belicosa gramatura de papel.
Sob o véu, há beijo ou fel?
Encoberta, a vértebra é mel.
Mas, ao fundo, dói pra dedéu.
Ao preço da cerveja antevejo virar pinéu.
Cobrir vício sem sevícia é só léu.
Justiça existe? Só se for chegar no rio em chiste.
Nalgum bolso os dedos se cobrem de cobres.
Neles está a magnânima fragrância.
Poucos, porém, a podem borrifar.
Vilipêndios nos compêndios.
A estátua de olhos cobertos chora sem dó.
Na faculdade o menino treme de medo.
“Será que vou dar jeito por aqui?”
Mal sabia que somos todos só ironia.
Entre tantos 171 viraria quase supremacia.
Lembrança ancha a segurar o copo que caía.
Na rede a embalar o bel prazer de Bel.
Pichações de ações e canções ultramarinas.
Nomes, sobrenomes e pronomes.
Votos, vestes e loucos revezes de vezes perdidas.
Na festa louca, até fezes no quarto escuro de fotos.
No não voltar, não há como retornar.
Mesmo que agora falte um tanto de ar.
Jaca mole, tanto se come até que se empanturra.
No reco-reco, batuca o tico sem o teco.
Como diria no passado, milorde é picardia. E que se foda!
Kriptonita no Super-Homem dos outros é refresco.
Versos no guardanapo da água furtada.
Na fruta comida, formicida do depois solitário.
Refratário, o poeta sofre com aquarela transversa.
No esquecer, o foder com o sofrer ao alvorecer.
Feito bicho da seda, falta seda para enrolar.
Na festa se atesta a testa colada no testículo.
No sertão o luar agrada até sapo que vai morrer no sal.
A ver o boi mugir, saudade do filho perdido.
Na verdade, só a vaca com as tetas de leite lembra dele.
E como é bom relembrar a lenha no fogão a crepitar.
A brincar de carro de bois em sabugos de milho.
Fugir das abelhas da África prontas para picar.
E saber e crer que em algum momento fui feliz.
No barulho da cachoeira a beijar a índia finda.
A descer a floresta e cobrir de corpo desnudo a amada.
Ser dono de si e também nada conseguir ser.
Mas, para quê serve essa vida sem amanhã?
No deletério etéreo de bolas a balangar, o criar.
No som, Caymmi diz que vai só, mas vai. Eu idem.
Afinal, no final só nós iremos saber-se-á pra aonde.
Nas sobras e sombras das luzes e dos minutos, seguiremos.
Aos amores antigos e lúdicos, meu eterno amor.
Até dedicação na lembrança do infortúnio do coração.
Lúcido ou embriagado, tragado e chinfrim, estarei aqui.
E se me sobrarem segundos sem dor, escreverei.
Escribas de nós mesmos, aprendemos a cada dia a sermos.
Nos cadernos de caligrafia sem rima, subverteremos.
Enganaremos a nós burros mesmos, a esmo.
Mas, tontice da vida, viveremos mesmo assim.
Com sangrias, entranhas múltiplas, estranhas luas.
Pororocas múltiplas nos faremos rio e enchentes.
Nas muitas gentes travestidas de nós, renasceremos em flor.
Brincaremos de ser e crer, malfadados e dados retardados.
Como dardos, seremos lançados no destino.
quinta-feira, 15 de maio de 2025
Na citronela sem ser vela
Por Ronaldo Faria
Quase noite ou quem sabe madrugada, citronela queima na procela da vida. “Quem sabe ela espanta o mal do meu sorriso?” Marcos, marco próprio do impropério etéreo ser, esperava que o incenso sem senso ou marca ao menos impedisse que o pernilongo barulhento dos ouvidos alheios o deixasse em paz. “Mas, agora, tanto faz... Meu amor, mordaz, já não me apraz.” Teclado nos dedos sem enredo, seguia seus santos vorazes e tantos exus sagazes. No exangue sangue que corria entre o coração e as veias, jatos de versos e canções jogavam poesia nas suas desilusões. A todas ou todos, as melhores e predestinadas unções.
No mar silencioso e cioso de amores que chegarão com a madrugada deitados em camas de algodão ou estofados de carros populares, o cheiro e a brisa de cigarros mil. Nas ervas que dizem ser das trevas, a liberdade da nostalgia que flui sem parar. Certamente, em algum lugar do mundo, Efigênia, Lucrécia ou Valentina estarão a sonhar sua própria ilusão. Já noutro, inverossímil e torto, Honório, Tarcísio e Otílio se embriagarão de desejos e sofreguidão. Cáusticos, todos eles e elas, nas procelas, povoarão seus vinténs e infaustos em único porém.
terça-feira, 13 de maio de 2025
Nome composto pra abastecer no posto ou bater no poste
Por Ronaldo Faria
Na dimensão entre a loucura e a razão, como camaleão que se equilibra para não despencar do galho fragilizado no chão, Diogo Baltazar, que creditava ao seu nome composto todo o azar, caminhava ao lado de Beatriz, sua nova fada. Linda, sensual, mulher dessas que depois do primeiro beijo tem que se levar sem pensar para o altar, ela completava e locupletava cada trama alternada do seu jeito bipolar. Diogo Baltazar sabia que agora, se chovesse canivete, ele pegaria cada um e usaria como gilete no barbear. Beatriz tinha gosto de anis, seus olhos brilhavam como luar cris, seu corpo não precisava nunca que se passasse um mero esmeril. Era perfeito. Cada curva, cada pedaço, cada minúsculo detalhe, todos eram aquilo que o escultor mandava sua estátua de mármore falar. Impossível melhorar.
“Meu nome que rima com azar, depois de Beatriz, nunca mais me incomodará. Posso me chamar Cagalhão Dramalhão, Lupércio do Trapézio Cortado, Joselito Piroca Murcha, tanto faz. Nada mais me faz deteriorar”, pensou no seu métrico pensar. Estar ao lado daquela deusa era tudo que poderia sonhar. Afinal, ele sabia que se Vinicius e Tom estivessem vivos a garota trocaria de Ipanema sem pagar aluguel ou mesmo seguir além-mar. Beatriz seria a musa difusa de todos poetas, profetas, pragmáticos estetas. Nela, nas suas curvas nunca turvas mesmo sob a escuridão de um eclipse lunar, a vida depositaria todo sonhar. E ele, logo ele, era quem tocava o violino principal na orquestra temporal das coxas que levavam ao lumiar.
E assim, de forma assimétrica e similar, Diogo Baltazar e Beatriz juntaram pernas e espermas, bocas e comédias, salivas e clamídias, sevícias perfumadas e dragadas nas drogas que a paixão dá. Serviram-se de afagos e fátuos clamores, cheiraram pós e flores, viveram paixões e amores. Dores? Tiveram dores. E tomaram remédios e chás alucinógenos para tratá-las. Táteis, se tocaram por inteiro, com esmero e tiro certeiro. Conheceram cada milimétrico e tétrico lugar que aos guias, compêndios, tratados e catálogos de anatomia passariam despercebidos. Foram, se furtaram e foram-se. Se foderam e fornicaram como mandam os dez ou doze mandamentos da felicidade. Fizeram pós-graduação na faculdade da carência finda e se doutoraram em escatologia. No todo, doutrinaram as mais carolas beatas da frigidez feminina e os mais estúpidos machos em seus púlpitos de garanhões. Foram mestres e aprendizes. Em restaurantes de estrelas até comeram perdizes.
Um dia, porém, Beatriz cansou de viver feito abelha, a voar e sugar flor murcha e carente de mel, em pleno fel. Decidiu que era hora de recomeçar, de brotar em terra seca, carcomida de comida e prazer fugaz. Queria somente rever o suor que escorria apenas por rever aquilo que logo poderia ser: o toque certeiro, o beijo feito centeio a embebedar a cerveja de álcool e loucura às bicas e bocas cheias de sede e sedentas de querer sorver. O tocar dos seios pelas mãos trêmulas do amante primeiro, o anseio do gozo vadio e derradeiro, no carro a romper estradas e quadras que se deixam para trás. O parar no gole de gim, da tônica que o novo amante bebe feito Coca-Cola. Pois Cuba ainda será livre!
Sem Beatriz, Diogo Baltazar voltou a ser o mero ser de azar. Nada mais lhe servia. A esquina ou a rua logo ali, ele não via. Nem sequer antevia a ressaca que batia mais forte do que a mesma das ondas no mar. Litros e litros, postes eletrificados e santificados a lhe segurar da queda certa, limites entre a loucura e a lucidez, nada se comparava a perder a tez de Beatriz diante de seu rosto. Torto, cambaleante, infante de si mesmo, pecador de um confessionário ordinário que era o banheiro do bar mais fétido de qualquer lugar, Diogo Baltazar seguia na tragicômica e icônica estrada que traçou para si. Picardia tardia de uma efeméride que fez realidade da vida, não pensava em mais nada. Melhor logo morrer. Até que numa madrugada, dessas tragada na desilusão de asfalto infausto onde se cai bêbado em bênção, ele viu Violeta, nome de flor, crente de cabelos longos e ensebados que saía da igreja “O Senhor é Primeiro”. Foi amor à primeira vista estrábica em cataratas fluídas esbranquiçadas, senão. Logo chegou na frente dela e disse, resoluto e vendilhão: “Quer casar comigo?” Ela, com sua Bíblia encardida e nunca lida, disse logo sim.
Hoje, Diogo Baltazar é funcionário público, evangélico e famélico de viver. Volta e meia, no meio da inócua volta, lembra de Beatriz, atriz principal de um musical sensacional na Broadway dos EUA. Ela se casou com um produtor norte-americano de talento. Teve um filho de rebento e ligou as trompas para não atrapalhar mais a carreira. É pop star internacional. Seu nome artístico é Beatrix do Mix. Mas Diogo Baltazar não tem tempo para ouvir ou ver isso. Seus oito filhos, vindos graças ao bom Deus e a fertilidade de Violeta, esperam que ele possa lhes prover de alimentos reais, substratos da falência total. Na volta da feira dominical, ele deixa na mesa da cozinha um tanto de verduras, legumes e lágrimas a sobrar. Do quarto, a sua nova e velha flor marital diz apenas “Dô, estou fértil! Deus disse crescei-vos e multiplicai-vos!” Ao ser fulminado de si só resta ao Criador obedecer. Dos seus solhos caem gotas de sangue. E milagre não há. Outro rebento logo irá arrebentar.
domingo, 11 de maio de 2025
Aulas de jazz com Jessica Wiliams *
sexta-feira, 9 de maio de 2025
Funk Como Le Gusta
Por Ronaldo Faria
Ferdinando, no comando de sua vida, como manda o livro de regras da sobrevivência e da subserviência letal, senta na mesa do bar e começa a falar tresloucadamente o que vem e vê na sua mente. “Silêncio, silvo de cobra, obra inacabada, foda na malfadada fada, febre sem termômetro alto, salto no precipício que o prepúcio nos dá, drama misturado com qualquer lugar, Leocádia e Dagmar.” Quem o ouvia diria logo que é um louco desvairado, desses que fugiu há pouco do hospício e escalou o frontispício pra cair de cabeça no asfalto logo depois. Entretanto, no tanto que delirava soltava também frases desconexas e complexas. “Se Einstein tivesse razão, não haveria no universo em reverso lugar para o tesão. Sem discussão, seu bando de cuzão!”
Quem o via ou ouvia já sabia que o Samu logo iria chegar. “Coitado, transtornado desse jeito, o sujeito deve ter saído de um bordel que cobrava os olhos da cara para liberar os ‘olhos’ do lugar”, pensou o garçom maçom. Para outros, Ferdinando só podia ser um malandro que viu os meandros dos seus planos desandarem andares abaixo no arranha-céu da dor. “Isso é coisa de quem está com o coração cravejado de filigranas de findo amor”, disse a senhora que na penhora da vida devia até as calcinhas no eterno torpor. Mas, como a noite e a madrugada são tragadas nos tragos de um Martini ou de um licor, aos poucos as pessoas deixaram Ferdinando ao seu desmando. O mundo tem mais coisas a se preocupar. Nas mesas é preciso curtir cada centavo dado. Amanhã, quando o sol devorar o luar, os poetas e profetas verão o inferno, por fim, proliferar. Em derredor, sugam os resquícios de ar.
quarta-feira, 7 de maio de 2025
A unha
Por Ronaldo Faria
Atônito com a pergunta, o porteiro nordestino, que saiu do meio da caatinga e caiu na catinga da Capital por um mero destino, não soube responder. Na verdade, ele estava ali só pelos míseros reais que caíam em seus bolsos rotos e rasgados a cada fim de mês. Logo, que cada um dos condôminos se virasse com seus cada quais.
Sem resposta posta, Amália sobe as escadas do prédio. O elevador, no seu eterno tédio, estava quebrado. Do apartamento 203 saía o som de um tango. Gardel gritava que era preciso viver por uma cabeça. A dela, porém, há muito só servia para ligar os fios de cabelo ao pescoço. Extenuada, depois de subir onze andares e vários minutos com trajes diminutos, abre a porta. Se joga no sofá de chenille marrom, larga o corpo quase roto e descobre que é hora de tentar dormir. Levanta, vai até o banheiro e pega comprimidos espremidos num frasco de tranquilizantes comprados na promoção. Toma oito para garantir uma boa noite de sono.
No dia seguinte, quando a moça do tempo na tevê diz que um novo recorde de calor será batido graças ao El Niño, o corpo de Amália é encontrado caído no meio da sala, sem vida para sentir o calor ou se ressentir da dor. Quem o encontrou? Calixto, que tinha a chave do apartamento, resolveu voltar para pedir um empréstimo porque o seu cacau tinha se derretido no jogo do bicho. Na rua, encruada e largada nos pingos de suor dos trabalhadores e atores da vida, uma pomba caga na cabeça do guarda que guarda o local até o carro do legista chegar. Feliz de tudo, contudo, o vendedor de picolé vibra com o seu lucro. Ia vender todo o carrinho sem precisar sequer chegar no viaduto.
terça-feira, 6 de maio de 2025
Billie Holiday, a dama em cetim*
segunda-feira, 5 de maio de 2025
Na pele, a brotoeja da peleja
Por Ronaldo Faria
-- E não é isso que é bom? Como diz o poeta, uma metamorfose ambulante. E ululante!
-- Pode ser, desde que para o Flamengo não deixe de torcer...
-- Ô português dos Açores, cure nossas dores. Desce mais!
Na velha máquina de fichas a tocar CDs, um chorinho diz que nada é maior do que o amor por você.
-- Tem dó, quem pode dizer algo assim?
-- Talvez alguém que acredita em destino e peleja para que tudo vire certeza um dia.
-- Esse é um tonto. Vai morrer que nem veio ao mundo: cheio de brotoeja!
Na tevê que está pendurada detrás do balcão, o rubro-negro leva uma sova do Fogão.
-- Mas aí já é merda demais para essa noite!
-- Calma, como disse a freira da catedral toscana, nem sempre se ganha!
-- Caguei pra trocadilhos. E se quiser um: pau no cu dos seus fundilhos!
E aí, no logo mais perspicaz que a prosopopeia faz quimera de poeta loquaz, o empregado pregado na cozinha grita que vai apagar o fogão.
-- Até você, Paraíba? Vai tirar sarro tomando formicida!
-- Calma, mano. Foi só uma derrota. Na próxima a gente faz samba dessa nota.
-- Quer saber, talvez você tenha acertado a canção. Vamos voltar a falar do Humberto, aquele vacilão. Foi no churrasco, com as carnes contadas porque ele só comia folha picotada, e devorou metade da churrasqueira. Ou seja, neguinho que ajudou na vaquinha ficou pistola com razão.
-- É. Mas ainda bem que ele voltou pro grupo. Achei que se ele continuasse igual ia encontrá-lo plantado num vaso a dividir espaço com vidro de colorau.
-- Já pensou ele servido como salada?
-- Ia fazer vomitar até a Salete, nossa fada.
Da caixa registradora, Adamastor se relata: “Moçada, a festa acabou! Amanhã tenho que ir logo cedo na Ceasa!”
-- Pelo menos sai a última?
Com a presteza de quem tem pressa para fechar ela logo chegou.
-- Agora, só de sacanagem, vamos enrolar pra tomar e pagar...
-- Melhor não, amanhã vamos ter de acabar voltando pra cá.
-- É justo. Afinal, vai que ele diz que a cerva está no final...
-- Ou nos serve só garrafa quente...
Indulgente, o tempo finda ao seu casual. No The End, os letreiros mostram que o técnico pediu desculpas pelo vexame e disse que foi tudo circunstancial. No próximo mês, milhares de caixas de Brahma ou Eisenbahn cairão na sua conta feito cifrão.
sábado, 3 de maio de 2025
Choramingando no choro
Por Ronaldo Faria
O lampião aceso, com odor de
percevejo queimado pela luz, ilumina a cena da praça e do coreto. Valfrido,
mítico tocador de violão, chora quieto. Seu choro sai baixinho, com direito a se
escutar os relâmpagos que surgem no negror. Nalguma tipografia clandestina a
hipocrisia da Corte está sendo descrita. Se tal escrita chegará em pasquim aos
raros leitores alfabetizados, saber-se-á. Do alto de um sobrado, Faustina espera
o pai ir dormir para a seresta que o seu amado lhe prometeu. “Mesmo com esse
tempo a prometer chuva e lamaçal no seu chegar, ele virá” – pensa a jovem no
seu virginal penhoar. Mas o seu consorte, infausto ser que se perde nas
tabernas entre as pernas das moçoilas que se vendem a vinténs, está largado a
ver lágrimas baterem nos degraus do coreto. Agora, nem um minueto o fará lembrar
da promessa. Certamente, insone e descrente defronte da rua encharcada de tudo que
desceu morro abaixo, Faustina será apenas uma donzela frágil, sem rima.
Um pouco distante, no
matadouro do lugarejo, um porco dá seu último respiro de dor. Suas tripas caem
na gamela. Seu sangue deixa retinto o chão de tijolos queimados. Um pouco mais
de tempo e estará na venda ou na feira antes de ferver nas panelas de barro.
Seu novo cheiro, cercado de temperos e esmero da mucama, irá se sobrepujar ao
da lenha que chora num crepitar de cor brilhante e pujante. Chegará à mesa dos
comensais com a destreza da receita para ninguém reclamar da falta de sais. Irá
forrar estômagos e, nas sobras, aliviará a fome daqueles serviçais que não têm
com o que sonhar. Seus ossos, atirados ao léu, irão virar manjar aos cães das
ruas. E seu destino estará feito. Com rabo, orelha e focinho...
Mas e Valfrido e sua Faustina?
Que infausto destino o mundo lhes dará? Na pequena igrejinha (na redundância de
sua pequenez), o sacerdote conta o dote que o barão, morto e enterrado, deixou
à irmandade. “Devia ter buscado servir a Deus numa melhor cidade”, pensa o enviado de Deus. Com as
portas abertas, aos poucos velhas beatas, com seus véus sujos e encardidos de promessas
vãs, se sentam para ouvir as palavras divinas. A maioria, já surda pela
idade, se satisfará em comer a hóstia. E todas voltarão para suas casas irmanadas
como filhas de Maria. Menos Isaltina. Essa tentará mais uma vez, em vão, sentir
o padre fungando no seu cangote. Ele, porém, tem mais o que fazer na sacristia.
A balançar o incenso está Desidério, o coroinha. Assim, na ignóbil fé das
verdades que permeiam livros sagrados, o ágrafo parágrafo que diz que a verdade
é coisa de cada um no seu quadrado.
Mas e Valfrido e sua Faustina? Que infausto destino o mundo lhes dará? Devagar, o sol surgiu ensimesmado e redondo para expulsar as poucas nuvens negras que teimavam em lavar o chão encharcado e enxaguado. No aguardo inútil e fútil, a formosa dama, ainda virgem e carente, dorme num sono que não há gente que a desperte. Já seu poeta e esteta, depois de encher de tristeza a escadaria sombria do coreto, decide ir para baixo da janela da petiz já mulher. Mas, para azar o seu, Major Clemêncio, já desperto e com seu revolver à mão, sem clemência o expulsou a tiros do local. “Se voltar aqui eu prometo te acertar e, depois de catar o seu corpo morto, arrancar os bagos e dar para o bicho que quiser comê-los!” Passada a cena, a jovem apaixonada, agora acordada, teve a notícia de que estava prometida a Galhardo, filho de um conde de título comprado mas que tinha a galhardia de um nunca bastardo. Sem poder sequer contestar, calou-se e foi para seu quarto chorar. Já o antigo e nunca apaixonado no aguardo, que fugiu dos tiros como um tornado, desagua a certeza de estar vivo na casa de Filomena, a amena dona do bordel fatal. No derredor, há quem diga que tudo está melhor...
Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito
Por Ronaldo Faria Óculos trocado porque o outro estava embaçado. Na caça da catraca de continuar a viver ou da contradança do crer vai ag...

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